Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 6 de março de 2019

~~~Párias em Redenção~~~


~~~ INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(III)
  Aquele era o estranho mundo dos desencarnados. Sociedade idêntica à terrena, pela proximidade do veículo das sensações, de que somente alguns, poucos, conseguiam libertar-se, continuavam os Espíritos imanados aos hábitos da ociosidade perniciosa e das paixões degradantes.

  Associados em magotes que se caracterizam pelas preferências em que longamente se comprazem, formam bandos e legiões que povoam as cidades, ou se congregam em regiões que infestam de forças deletérias, formando comunidades perniciosas, estabelecendo organizações de mando, nas quais se destacam os mais perversos, que passam à condição de condutores e administradores dos seus destinos.

  Nessas colmeias de suprema miserabilidade moral e espiritual, o regime da força e da degradação consome multidões desvairadas, que se vão reduzindo às mínimas manifestações da racionalidade, em círculo de infelicidade que conduz, incessantemente, à demência, à bestialidade todos aqueles que se vinculam às suas tenazes… Dir-se-ia que ali não penetram a Misericórdia Excelsa do Amor, nem as bagas de luz da esperança. Repetir-se-ia a visão dolorosa das palavras que Dante divisara gravadas à entrada dos Infernos: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!” (*)

  Naquelas desoladas e inenarráveis regiões, em que se aglomeram os trânsfugas, a mais fértil imaginação não concebe os dramas e as tragédias, os suplícios com que se lapidam, auto-afligindo-se e afligindo-se uns aos outros, em sede incomensurável de reparação. O acontecimento, embora inconcebível pela dor que produz, é parte da Divina Mercê, que se utiliza de todas as circunstâncias de tempo e lugar, situação e forma para despertar os profundamente anestesiados nos centros da lucidez, hipnotizados pela febre dos desejos, que gravitam apenas nos instintos, ferreteados pela lancinante agonia, única linguagem que lhes pode chegar à acústica do espírito infeliz, impulsionando-os pelo incontido desejo de paz na desgraça em que padecem, para sair dos bastardos estados de primitivismo.

  Entretanto, até que muitos despertem, passam-se séculos, que não são consumidos nos submundos edificados pelas mentes terreficadas pelo mal e agrilhoadas às sensações selvagens, já que essas esferas de sombra e punição se espalham pela mesma Terra, em purgatórios e infernos temporários, mas de longa duração, justificando as consciências obliteradas e os corações empedernidos.

  Nesses lugares edificam os seus sórdidos e infectos pardieiros, utilizando-se da própria exteriorização mental, carregada de fluidos danosos, em que as emanações pestilenciais formam a atmosfera quase irrespirável para eles mesmos, que assim, lentamente, despertam para valorizar as bênçãos do ar puro da Natureza, nos futuros cometimentos reencarnatórios, a que serão compelidos pelo império da Lei, que um dia os alcançará.

  Ali proliferam subtipos, em experiência nas primeiras tentativas da evasão, infensos ao sentimento, mergulhando no corpo e dele retomando pelo automatismo do Estatuto Divino em funcionamento coercitivo. Os albores da inteligência neles se fazem acompanhar das primeiras experiências na sociedade humana, em cujas oportunidades iniciam o progresso ou se demoram na condição primária. Sempre chega, porém, o momento do despertar e a todos são facultadas sublimes concessões para o aprimoramento e a felicidade.

  Os bandos que se arrastam inermes ou se tragam em fúria, deambulando pelas ruas e lugares onde podem exercitar a vampirização, por sintonia dos propósitos mantidos pelos encarnados, demoram-se entre os homens em perfeita comunhão mental, arrancando-lhes, por exorbitância, as energias físicas e psíquicas, no mais hediondo comércio que se possa imaginar.

  Participando activamente das tragédias que enlutam as criaturas, comprazem-se ante os infaustos acontecimentos, pelos lucros que podem fruir, vampirizando, normalmente, os que partem da Terra sem as armas de defesa da vida – que são as lâmpadas da caridade, as luzes do amor, as bênçãos da honradez, as energias da renúncia, as forças da humanidade, que não conseguem sobrepujar, pois que fogem espavoridos ante o grandioso argumento do valor intransferível. Além disso, os Espíritos felizes, reconhecidos e amorosos, cercam aqueles que se lhes fizeram afins, protegendo-os das surtidas dos salteadores do Espaço, impondo-lhes a retirada…

  Nos suicídios, no entanto, que pressentem, pois que são atraídos pela mente desvairada do desafortunado que o engendra, inevitavelmente se associam para o banquete hediondo da vampirização. O mesmo acontece no homicídio, quando a vítima desguarnecida dos recursos libertadores se vincula, pelo ódio ou pelas vibrações nefastas, ao que lhe arranca a vida, caindo nos círculos desses vândalos desencarnados.

  Girólamo oferecera o corpo em estertores à chusma de vampiros, cujas impressões dolorosas só mais tarde viriam atormentá-lo, adicionadas às supremas aflições que já o laceravam.

  Vivendo no trânsito entre o animal e o homem primário, jamais cuidara da realidade do espírito, não produzindo qualquer fortaleza para se agasalhar, além da sepultura, dos tormentos gerados pela infame tragédia do suicídio em que se atirara. Transladou-se sem qualquer recurso de defesa ou título de merecimento que lhe facultassem repouso. Consciência obliterada para as manifestações do belo, do nobre e da virtude, despertava, agora, no país da realidade, com os destroços acumulados na avareza e reunidos pela criminalidade.

  Na sucessão de vagados em que, alucinado, caía em exaustão, para acordar sob as mós das dores acumuladas, começou a sentir o cadáver no mausoléu em que se desagregava, atado pelos laços poderosos que a rebeldia não conseguiu atingir. Deu-se conta, então, a pouco e pouco, do grotesco infortúnio em cujo fosso se arrojara irremediavelmente…

  Em bestial angústia, percebeu-se no desgaste orgânico que o afectava cruelmente, sentindo os milhões e milhões de vibriões que lhe percorriam as células, voluptuosos, como se estivessem na intimidade do espírito, e, por mais que desejasse evadir-se do local, era compelido a continuar sem o amparo de qualquer lenitivo.

  Simultaneamente, a sufocação, o enfraquecimento pela perda das energias de sustentação das forças psíquicas vampirizadas, as dores na cabeça, que se dilatava grotesca, pelo impedimento da circulação no cérebro, produziam-lhe indizível sensação. Só então, (quanto tempo transcorrera!) experimentou nos ouvidos, que pareciam destroçados por um petardo que espocasse dentro, incessantemente, as objurgatórias, as acusações, a mofa, a zombaria infernal dos que se nutriam da sua desdita.

  – E agora, suicida? – interrogavam em zombaria desrespeitosa. – Para onde vais? Eis aí a morte! Estamos todos mortos. Onde esconderás a vergonha, o cinismo, a hediondez? Fala!

  Gargalhadas de impiedade e cinismo explodiram, ensurdecedoras.

  Pretendeu falar, furioso, açulado em toda a sua miséria, mas não pôde. Os centros da fala haviam sido atingidos profundamente e ele se sentiu impossibilitado de pronunciar qualquer palavra.

  A mente aturdida, no entanto, espicaçada pela gritaria, reflectia: “Morto?! Aquilo era a vida, não a morte. Fora, possivelmente, atirado a um cárcere imundo e estava a apodrecer, ao abandono. Não sabia, no entanto, como tal acontecera. O certo é que a Corda se partira…”

  – Enganas-te, sicário dos outros. Morreste! Isto é a morte. Suicida, suicida! Pagarás, agora, todos os teus monstruosos crimes contra a Humanidade. Nada passa despercebido dos olhos vigilantes da vida. Aqui estamos. Somos a consciência do mundo, em regime de justiça, colhendo os desgraçados como tu para cobrar-lhes os crimes que têm passado impunes. Por que te apressaste em regressar? Não sabias que cada minuto no corpo oferece ocasião de reparar os males praticados? Agora, é tarde. Muito tarde!

  Girólamo rebolcava-se, semi-obnubilado e semiconsciente, sem entender.

  – Desperta para o resgate, infeliz, desnaturado que és, como nós. Desperta para começar o martírio. Estás vivo e pagarás todos os teus crimes.

  Muito lentamente, nas sombras densas passou a ver as figuras hediondas, as formas grotescas e, dominado pelo estarrecimento, planejou fugir, arrancar em disparada loucura. Não pode fazê-lo. As amarras que o jungiam, ao cadáver não o permitiram. Os liames perispirituais restringiam-lhe os movimentos, impelindo-o à participação consciente da responsabilidade. A justiça alcançava o criminoso evadido da organização física, mas não da vida!...

  Nesse comenos, em que se sucedem as volumosas e contínuas desventuras, Girólamo vê, e estarrece-se, as figuras de Dom Giovanni e Assunta, suas vítimas, seus verdugos.

  A máscara de dor e ódio das personagens enfurecidas e descompostas levam-no a demorado desmaio.

  Tão pronto recobra a consciência naquele hórrido martírio, ouve com infinito pavor:

  Somos os teus actuais juízes, – diz-lhe o Duque. – Serás julgado e devidamente punido. Ainda não começaram os teus padecimentos. Disse-te que não ficarias impune, miserável. Acorda, logo, para a recuperação. Seremos os teus acusadores. Esperemos que se afrouxem mais os laços que te atam a esses restos, após o que serás transladado ao Tribunal. Não fugirás, pois não tens onde esconder-te.

  Surpreendi-te, infame. Ninguém ou nada interferirá a teu favor, pois, além de tudo, és suicida. Acorda para pagar!

/...
(*) “Deixai qualquer esperança, vós que entrais!” – Cante III, v. 9 – Inferno – Divina Comédia, Dante Alighieri.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (3 de 3) 36º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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