Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


fonte do bem e do mal ~

  Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo este princípio toda a sabedoria, toda a bondade, toda a justiça, tudo o que daí procede deve partilhar estes atributos, pois o que é infinitamente sábio, justo e bom, não pode produzir nada de insensato, mau e injusto. 

  O mal que observamos não pode portanto ter nele a sua origem.

  Se o mal fizesse parte das atribuições de um ser especial, quer lhe chamemos Arimane ou Satanás, das duas uma: ou esse ser seria igual a Deus e, por consequência, tão poderoso como ele e para toda a eternidade como ele, ou ser-lhe-ia inferior.

  No primeiro caso, haveria duas forças rivais lutando constantemente, procurando cada uma desfazer o que a outra fez e confrontando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de concepção que se revela na ordenação do Universo.

  No segundo caso, sendo esse ente inferior a Deus, estar-lhe-ia subordinado; não podendo ter estado, como ele, por toda a eternidade sem lhe ser igual, teria tido um princípio; se tiver sido criado, só o pode ter sido por Deus; Deus teria assim criado o espírito do mal, o que seria a negação da infinita bondade. (Ver O Céu e Inferno, Capítulo IX, Os Demónios.)

  No entanto, o mal existe e tem uma causa.

  Os males de todos os géneros, físicos ou morais, que afligem a humanidade apresentam duas categorias que interessa distinguir: são os males que os homens podem evitar e os que são independentes da sua vontade. Entre estes últimos, temos de situar as calamidades naturais.

  O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar nem abarcar a totalidade das ideias do Criador; avalia as coisas segundo a sua personalidade, os interesses fictícios e de convenção que imaginou e que não estão de maneira nenhuma na ordem da natureza; é por isso que, muitas vezes, acha mau e injusto o que acharia justo e admirável se lhe percebesse a causa, a finalidade e o resultado definitivo. Ao procurar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz a marca da sabedoria infinita e inclinar-se-á perante essa sabedoria, mesmo para as coisas que não perceba.

  O homem recebeu em herança uma inteligência, com a ajuda da qual pode esconjurar ou, pelo menos, atenuar grandemente os efeitos de todos os flagelos naturais; quanto mais sabedoria adquire e mais avança em civilização, menos desastrosos são estes flagelos; com uma organização social sabiamente previdente poderia até neutralizar as consequências quando elas não possam ser totalmente evitadas. Assim, para esses mesmos flagelos que têm a sua utilidade na ordem geral da natureza e para o futuro, mas que ocorrem no presente, Deus deu ao homem, através das faculdades com que lhe dotou o espírito, os meios para lhe neutralizar os efeitos.

  É assim que saneia regiões insalubres, que anula os miasmas pestíferos, que fertiliza as terras incultas e se esforça por as preservar das inundações; que constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera, que se coloca ao abrigo das intempéries; é assim, enfim, que pouco a pouco a necessidade o fez criar as ciências com a ajuda das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o somatório do seu bem-estar.

  Devendo o homem progredir, os males a que está exposto são um estímulo para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o à procura de meios para os evitar. Se não tivesse nada a temer, nenhuma necessidade o levaria à busca do melhor; o seu espírito amoleceria na inactividade; não inventaria nada e não descobria nada. A dor é o aguilhão que empurra o homem para a frente na via do progresso.

  Mas os males numerosos são os que o homem cria com os seus próprios vícios, os que resultam do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, dos seus excessos em todas as coisas: reside nisso o motivo das guerras e das calamidades que arrastam consigo, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte; enfim, da maior parte das doenças.

  Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria que só têm como objectivo o bem; o homem encontra em si mesmo o que lhe falta para as seguir; o seu caminho é traçado pela sua consciência; a lei divina está gravada no seu coração; e, além disso, Deus lembra-lhas constantemente através dos seus messias e dos seus profetas, de todos os Espíritos encarnados que receberam como missão esclarecê-lo, moralizá-lo, aperfeiçoá-lo e, nestes últimos tempos, através da quantidade de Espíritos não encarnados que se manifestam por todo o lado. Se o homem se conformasse rigorosamente com as leis divinas, não restam dúvidas de que evitaria os males mais pungentes e que viveria feliz na Terra. Se não o faz, é graças ao seu livre-arbítrio e sofre disso as consequências (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, nºs 4, 5, 6 e segs.).

  Mas Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal. Quer dizer que, o próprio mal, faz sair o bem. Chega uma altura em que o excesso de mal moral se torna intolerável e faz com que o homem sinta a necessidade de mudar de caminho; ensinado pela experiência, é levado a procurar remédio no bem, sempre como consequência do seu livre-arbítrio; quando entra num caminho melhor é por ser essa a sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro caminho. A necessidade obriga-o então a melhorar moralmente para ser mais feliz, tal como esta mesma necessidade o obrigou a melhorar as condições materiais da existência.

  Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, tal como o frio é a ausência do calor. O mal não é um atributo distinto, tal como o frio não é um fluido especial; um é a negação do outro. Onde o bem não existe, existe forçosamente o mal; não praticar o mal é já o começo do bem. Deus só quer o bem; só do homem vem o mal. Se houvesse na Criação um ser predisposto ao mal, nada o poderia evitar; mas tendo o homem a causa do mal EM SI MESMO e tendo ao mesmo tempo o seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitá-lo-á quando quiser.

  Tomemos um facto vulgar como comparação. Um proprietário sabe que, na extremidade do seu campo, existe um sítio perigoso onde se poderia ferir ou morrer quem ali se aventurasse. Que faz ele para evitar os acidentes? Coloca junto ao local um cartaz com a proibição de avançar mais por causa do perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente não ligar e passar para lá e se lhe acontecer um acidente, a quem poderá culpar senão a si mesmo?

  Assim é com todo o mal; o homem evitá-lo-ia se observasse as leis divinas. Deus, por exemplo estabeleceu um limite à satisfação das necessidades; o homem é avisado pela saciedade; se ultrapassar esse limite, fá-lo voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte que podem ser disso consequência são portanto resultado da sua imprevidência e não de Deus.

  Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem e sendo o homem criado por Deus, Deus, dir-se-á, se não criou o mal, criou pelo menos a causa do mal; se tivesse feito o homem perfeito, o mal não existiria.

  Se o homem tivesse sido criado perfeito, seria fatalmente levado para o bem; ora, devido ao seu livre-arbítrio, não é fatalmente levado para o bem nem para o mal. Deus quis que fosse submetido à lei da evolução e que essa evolução fosse o fruto do seu próprio trabalho, para que o mérito fosse seu, assim como é responsável pelo mal que é resultado da sua vontade. A questão é então saber qual é, no homem, a fonte da propensão para o mal. (*)

(*) O erro consiste em pretender que a alma saiu perfeita das mãos do Criador, enquanto este, pelo contrário, quis que a perfeição fosse o resultado da purificação gradual do Espírito e sua própria obra. Deus quis que a alma, por virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e que chegasse aos seus fins últimos por via militante e resistindo ao mal. Se tivesse feito a alma perfeita como ele e se, ao sair das suas mãos, a tivesse associado à beatitude eterna, tê-la-ia feito não à sua imagem, mas igual a si mesmo. (Bonnamy, juiz de instrução, A Razão do Espiritismo, Capítulo VI). (N. do A.)

  Se estudarmos todas as paixões e até todos os víciosverificaremos que têm a sua origem no instinto de conservação. Este instinto está em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos que se aproximam mais da animalidade; aí domina sozinho, porque neles não existe ainda como contrapeso o sentido moral; o ser ainda não nasceu para a vida intelectual. Pelo contrário, o instinto enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.

  O destino do Espírito é a vida espiritual; mas, nas primeiras fases da sua existência corporal, existem unicamente necessidades materiais a satisfazer e, com este fim, o exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas saído deste período, tem outras necessidades, primeiro semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria; se lhe sacode o jugo, avança na sua via providencial e aproxima-se do seu destino final. Se, pelo contrário, se deixa dominar por ela, fica para trás, assemelhando-se à besta. Nesta situação, o que outrora era um bem, porque era uma necessidade da natureza, torna-se um mal, não só por não ser uma necessidade, mas porque isso se torna prejudicial à espiritualização do ser. Assim como o que é qualidade na criança passa a ser defeito no adulto. O mal é deste modo relativo e a responsabilidade proporcional ao grau de evolução.

  Todas as paixões têm portanto a sua utilidade providencial; sem isso, Deus teria feito qualquer coisa de inútil e prejudicial. É o abuso que constitui o mal e o homem abusa devido ao seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, escolhe livremente o bem e o mal.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – Fonte do bem e do mal (de 01 a 10), 19º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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