Do Empirismo | à Ciência
Até ao aparecimento do Espiritismo em forma de doutrina
filosófica, bem definida, apoiada num sistema científico de observação, de
pesquisa e de experimentação, as questões relativas à sobrevivência do homem e
ao seu destino no além-túmulo pertenciam exclusivamente ao empirismo. E nem se poderia
esperar outra coisa, de um mundo que estava a sair inteirinho do empirismo, e
que mal começara a trilhar, com Galileu, o terreno das
ciências positivas. Se em medicina, até Claude Bernard, a clínica
se fazia ao sabor de velhos tabus e sistemas quase instintivos, como se desejar
que, em matéria muito mais subtil, difícil e complexa, como a ciência do
espírito, pudessem os homens se ter adiantado mais rapidamente?
O Espiritismo abriu
a primeira picada no matagal cerrado das superstições, derrubando a
golpes de bom senso, como diz o poeta leproso Jésus Gonçalves,
os tabus do velho misticismo imponente, enclausurado nas igrejas dominantes. Graças
a ele, ao formidável surto de fenómenos que se verificou por toda a parte, na
ocasião do seu aparecimento – como os rubores do horizonte e a brisa matinal
aparecem no momento de raiar o sol –, foi possível, embora com as maiores
dificuldades, um rápido avanço nesse terreno. O ambiente, aliás, já estava
preparado, através das lutas cada vez maiores e mais sérias contra a dominação
clerical e as absurdas imposições de uma crença destituída de qualquer base
racional. As igrejas estavam, na verdade, vacilantes nos seus alicerces
seculares, incapazes de resistir à investida arrasadora do raciocínio
científico, que parecia destinado a desnudar por completo as formas
mumificadas da religião, mostrando-as ao povo na hediondez de sua esterilidade
e do seu artificialismo de sarcófago.
Allan
Kardec, o bom senso encarnado, compreendeu prontamente o
alcance da tarefa que os espíritos lhe depositavam nas mãos. Ele ia
enfrentar o mundo, ia enfrentar todo o convencionalismo da época, desde os mais
velhos sistemas da liturgia religiosa, até aos mais modernos princípios
afoitamente proclamados pelo materialismo nascente. Cabia-lhe uma luta
gigantesca, tinha ele de enfrentar, em campo raso, sem auxílio de uma única
fortificação, o exército dos padres, dos cientistas, dos filósofos, dos
jornalistas e escritores, dos intelectuais e dos crentes, o bombardeio dos
púlpitos, das cátedras e das tribunas. Mas era preciso enfrentar a tarefa, não
havia por onde fugir. Como Galileu, ele havia
tocado fundo o mistério, sabia que as mesas giravam e sabia
por que o faziam. Como Pasteur,
ele tinha visto a acção física, discreta, concreta, dos agentes invisíveis. E
contava, além disso, com o auxílio dos companheiros espirituais, sempre
dispostos a ampará-lo e esclarecê-lo. Foi por isso que, sem nenhuma atitude
espectacular de vidente ou predestinado, sem qualquer encenação oracular, o
sereno professor de pedagogia iniciou o seu trabalho, na cidade de Paris,
centro do mundo e da cultura, que ele transformaria, para escândalo dos
judeus, como diria Paulo,
no quartel-general do Espiritismo.
No seu pequeno livro O que é o Espiritismo,
Kardec revela a natureza da doutrina e mostra-nos mais uma vez a firmeza e a
serenidade de sua atitude, dizendo claramente que o Espiritismo não veio ao
mundo para se transformar num sistema novo de religião ou se constituir numa
nova igreja.
“O Espiritismo – diz ele – é ao mesmo tempo, ciência
experimental e doutrina filosófica. Como ciência prática, tem a sua
essência nas relações que se podem estabelecer com os espíritos. Como
filosofia, compreende todas as consequências morais decorrentes dessas relações. Pode
ser definido assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e
destino dos espíritos, bem como das suas relações com o mundo corporal.”
Assim definida a natureza da doutrina, Kardec reafirmava que
não pretendia convertê-la numa escola religiosa. As religiões estavam ameaçadas
e tinham o flanco descoberto. Que podiam elas opor aos ataques arrasadores do
racionalismo a todos os seus dogmas, cânones e sacramentos? Como se
desenvencilharem da acusação de que não eram outra coisa senão as antigas
superstições tribais revestidas de aparatos modernos? O Espiritismo surgia
como tábua de salvação para todas elas. Era o meio de que elas podiam se servir
para justificar racionalmente os seus velhos princípios, e mais do que isso –
maravilha! –, para o demonstrar cientificamente, objectivamente,
experimentalmente, aos homens da era científica a existência da alma, a
realidade demonstrável da sobrevivência. Demonstrado isso, estavam salvas as
religiões. Provada a existência da vida depois da morte, quem se atreveria a
negar a necessidade de um preparo do homem, nesta vida, para enfrentar depois
os problemas da outra, quando se desenvencilhasse do corpo material?
Os homens de cultura desertavam dos templos. Apenas o povo,
na sua simplicidade natural, continuava apegado, pelo coração, às velhas
crenças. Mas esse mesmo povo começava a ser trabalhado profundamente por
ideologias revolucionárias, que lhe ofereciam, em lugar de um paraíso depois da
morte, outro paraíso, muito mais apetecível, nesta própria vida, aqui mesmo, na
Terra. Para que os homens cultos voltassem aos templos, era necessário que a
religião lhes oferecesse uma arma nova, com que pudessem justificar a sua
crença diante da zombaria dos novos profetas da razão. Para que o povo não
se desviasse, era preciso mostrar-lhe que o paraíso, no espaço ou na Terra, não
se conquista por meros actos exteriores. Essas respostas – que as velhas
religiões não possuíam – O Espiritismo trazia-as na palma da mão,
como um anjo salvador.
Mas... Sim, havia um “mas”. Para que as religiões
pudessem utilizar-se do Espiritismo, era também necessário que aceitassem uma
modificação de atitude, em face dos problemas da razão. O Espiritismo
nascia com características nitidamente racionais. As religiões eram ilógicas,
irracionais, dogmáticas. Vacilaram, a princípio, mas terminaram, como a igreja
judaica diante do Cristianismo nascente, recusando-se a mudar de atitude. E,
por fim – ironia da ingratidão e do egoísmo humano! – quando o Espiritismo, por
si só, independente de qualquer auxílio, levou de vencida os primeiros
obstáculos, reuniu os primeiros sábios e obteve os primeiros êxitos, arredou de
sua atitude negativista e agressiva os primeiros materialistas, as
igrejas, já então, reforçadas pela evidência dos factos, que ele e só ele
produzira, despejaram sobre ele os raios outrora fulminantes da sua maldição.
Os espíritas, que haviam aberto a possibilidade de retorno dos homens, cientes
e inscientes, ao recinto dos templos, foram corridos dali como os apóstolos das
sinagogas foram expulsos como inimigos e hereges. E foi então, só então,
diante da repulsa cada vez mais forte das religiões constituídas, que
as consequências morais da doutrina, de que fala Kardec,
começaram a levar os homens para um novo conceito de religião, para o terreno
mais amplo e livre da religião espírita. Esta não é, propriamente uma
religião, no sentido clássico do termo, que implicaria organização
sacerdotal, sistema litúrgico e sacramental, mas é religião no
sentido natural do termo, como norma espiritual de conduta humana.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do Empirismo à Ciência 1 de 2, 11º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles,
pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)
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