INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(II)
Enquanto o suor lhe escorria pelas mãos álgidas, pela face e por todo o corpo, ao colocar a corda de nó corrediço no pescoço enlanguescido, com as artérias intumescidas a se arrebentarem nas têmporas, sob o guante odiento dos sicários implacáveis que o dominavam do Além-túmulo, não podia Girólamo ver nem sentir a turba exaltada de Espíritos infelizes que o seguiam em desordem e vandalismo hediondo, ávidos para se atirarem, tão logo fossem violentados os liames da vida carnal, sobre a energia em desassociação nos despojos, quais abutres ou chacais que apenas aguardam a morte do animal para roubar-lhe as expressões cadavéricas.
A situação ali não diferia muito. Espíritos em
deformações apavorantes, transformados em vampiros sugadores do
fluido vital, em estado de incontinente volúpia, amedrontados ante a
possibilidade de perderem a presa fácil, açulavam o enfermo e transmitiam-lhe
ideias desconexas e deprimentes, a fim de o tomarem nas mãos.
Desse modo, logo o corpo se projectou no espaço e a
constrição da corda impediu a circulação sanguínea, através dos condutos
arteriais, o espírito passou a experimentar imensurável asfixia, que lhe
chegava dos estertores orgânicos, e enquanto se debatia no desespero de
libertar-se da corda assassina, o suicida sentia já o efeito medonho do crime
que acabara de perpetrar. Era como alguém que estivesse metido em roupa de
ferro que possuísse a faculdade de encolher, estraçalhando rítmica,
inexoravelmente o corpo entanguido, dentro de dimensões cada vez menores.
A impossibilidade de expulsar o gás carbónico dos
pulmões e a ausência do ar que lhe accionasse o aparelho respiratório produziam
uma sensação animal de angústia, como se fosse explodir numa imensa agonia que,
a partir de então, não chegaria ao fim, não se consumaria…
A voz estrangulada na garganta, cujo pescoço estava
quebrado; os olhos abertos, sem qualquer visão; a dor na região precordial,
como se estivesse com um punhal transpassado, dilacerante; os músculos
repuxados, a se deslocarem dos invólucros, e os ossos desconjuntando-se,
somavam descomunal intensidade de dor, que o suicida não pôde suportar, sendo
vencido, na superlativa desdita, por um vagado, no qual perdeu a consciência de
si e de tudo.
Logo depois, despertou, encontrando-se na mesma
situação de angústia.
Sucederam-se os intérminos desmaios, sempre
despertado de cada um deles sob o guante do crescente horror, num mundo
espectral de sombras espessas e de frio indescritível, que martelava nos ossos,
parecendo laminas finas e aguçadas a cortarem cada tecido, cada fibra, cada
órgão já agora em desconserto total.
Cessada a irrigação do cérebro pelo oxigénio que o
mantém vivo, começaram a morrer as células encarregadas do milagre da
vida nos sentidos físicos e psíquicos.
Os plexos, violentamente agredidos, arrebataram-se e,
parecendo flores que desabrochassem intempestivamente, deixando escorrer
inexorável o perfume, perdendo o pólen e a seiva, despejando as energias vitais
de que se faziam depositários, atraindo a horda de vândalos espirituais, que se
atiravam vorazes, vampirizadores, desesperados, sugando-as em inimaginável
ferocidade.
Lobos esfaimados arrojando-se uns sobre
os outros, disputando o maior quinhão, a quantidade mais expressiva, enquanto
as amarras perispirituais resistiam
ao impacto do esfacelamento da vida física, sem desligar o espírito dos fortes
vínculos com o corpo.
As funções físicas e mentais ficaram lamentavelmente
interrompidas, avindo a morte da vida orgânica, nunca, porém, o desligamento
espiritual, a libertação do criminoso, que acompanharia, doravante, a
desassociação celular ergastulado no castelo de carne que desrespeitou:
presídio, látego, túmulo a que se fixaria por longo período…
Nos sucessivos delíquios de que era vítima, o suicida
não se apercebia do que se tratava.
Turbilhonavam na mente avassalada pelo estupor
crescente da loucura, na qual não se apagara de todo a consciência, o desejo de
morrer, que lhe armara as mãos com o, laço criminoso, e a voragem do bailado
macabro, em visões tormentosas, num crescendo aterrador, com dores
superlativas.
Naquele martelar das impressões em atropelo
sucessivo, supunha que se houvesse arrebentado a corda, não obstante as dores
da contrição no pescoço e a asfixia… O sonhado esquecimento, que é o grande, o enorme engodo, não chegava. Rebolcava-se, todavia pendendo
no laço, sofrendo o enforcar sem limite, que não atingia o fim.
Sob o impacto de tanto terror, não sentiu nem se
apercebeu das ocorrências que tumultuaram o solar, o desespero da esposa, a
infrene gritaria dos servos amedrontados, na noite tempestuosa, nem o ofício
fúnebre, absolutamente inócuo, que era celebrado em memória do seu espírito,
mas que não significava senão vã homenagem que se prestava aos despojos carnais
em natural decomposição orgânica.
As exéquias, de tanto agrado dos orgulhosos, em
hipótese alguma atingem os objectivos a que parecem propor-se. Realizadas na
frieza litúrgica escrava do ritualismo chão, sem os vigorosos liames da
comunhão pelo amor, não vibram em harmonia com os Planos Divinos da vida,
constituindo antes presunção humana, que pretende, desse modo, subornar a
Consciência Divina, numa aberrante invasão dos domínios superiores, como a
querer modificar a estrutura da Justiça. Sob o amparo dos tesouros terrenos,
que são os promotores das festas de homenagem fúnebre, os cantochãos e ofício
remunerados não produzem qualquer benefício em relação ao espírito
desencarnado, vinculadas essas manifestações pura e simplesmente às
exterioridades mortais…
A chusma de desencarnados em opressiva condição de
miséria interior, vândalos e escravos dos fluidos materiais, acompanhou o
esquife à urna em que foi depositado na capela da família, prosseguindo na
sucção das energias que se exteriorizavam pelo rompimento intempestivo do vaso
carnal.
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (2 de 3), 35º fragmento desta
obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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