Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Hippolyte Léon Denisard Rivail

~ O Espiritismo entre os Druidas ~

Há cerca de dez anos, sob o título Le vieux neuf (*), publicou o Sr. Édouard Fournier (i), no Le Siècle (i), uma série de artigos tão notáveis do ponto de vista da erudição, quanto interessantes pelas suas relações históricas. Passando em revista todas as invenções e descobertas modernas, prova o autor que se o nosso século tem o mérito da aplicação e do desenvolvimento, não tem, pelo menos para a maioria delas, o da prioridade. À época em que o Sr. Édouard Fournier escrevia estes eruditos folhetins (i) não se cogitava (i) ainda de Espíritos, sem o que não teria deixado de nos mostrar que tudo quanto se passa hoje é apenas uma repetição do que os Antigos sabiam muito bem, e talvez melhor que nós. E, o que lastimamos por nossa conta, porque as suas profundas investigações ter-lhe-iam permitido esquadrinhar a Antiguidade mística, como perscrutou a Antiguidade industrial; donde, fazemos votos para que as suas laboriosas pesquisas sejam dirigidas um dia para esse lado. Quanto a nós, não nos deixam as nossas observações pessoais nenhuma dúvida sobre a antiguidade e a universalidade da Doutrina que os Espíritos nos ensinam. Essa coincidência, entre o que nos dizem hoje e as crenças dos tempos mais remotos, é um facto significativo da mais alta importância. Faremos notar, entretanto, que, se por toda a parte encontramos traços da Doutrina Espírita, em parte nenhuma a vemos completa: tudo indica, ter sido reservado à nossa época coordenar esses fragmentos esparsos entre todos os povos, a fim de se chegar à unidade de princípio através de um conjunto mais completo e, sobretudo, mais geral de manifestações, que dariam razão ao autor do artigo que citamos acima, a propósito do período psicológico no qual a Humanidade parece estar a entrar.

Quase por toda a parte a ignorância e os preconceitos desfiguraram esta doutrina, cujos princípios fundamentais se misturam às práticas supersticiosas de todos os tempos, exploradas para abafar a razão. Todavia, sob esse amontoado de absurdos germinam as mais sublimes ideias, como sementes preciosas ocultas debaixo de silvado, não esperando senão a luz vivificante do sol para se desenvolverem. Mais universalmente esclarecida, a nossa geração afasta a moita de silvas; tal limpeza de terreno, porém, não pode ser feita sem transição. Deixemos, pois, às boas sementes o tempo de se desenvolverem e, às ervas daninhas, o de desaparecerem.

A doutrina druídica oferece-nos um curioso exemplo do que acabamos de dizer. Essa doutrina, de que não conhecemos bem senão as práticas exteriores, eleva-se, sob certos aspectos, até às mais sublimes verdades; mas essas verdades eram apenas para os iniciados: terrificado pelos sacrifícios sangrentos, o povo colhia com santo respeito o visgo sagrado do carvalho e via apenas a fantasmagoria. Poderemos julgá-lo pela citação seguinte, extraída de um documento tão precioso quão desconhecido, e que lança uma luz inteiramente nova sobre a teologia dos nossos ancestrais.

 “Entregamos à reflexão dos nossos leitores um texto céltico, há pouco tempo publicado, cujo aparecimento causou uma certa emoção no mundo culto. É impossível saber-se ao certo o seu autor, nem mesmo a que século remonta. Mas o que é incontestável é que pertence à tradição dos bardos da Gália, e essa origem é suficiente para lhe conferir um valor de primeira ordem.

“Sabe-se, com efeito, que ainda nos nossos dias a Gália se constitui no mais fiel abrigo da nacionalidade gaulesa que, entre nós, experimentou tão profundas modificações. Apenas abordada ao de leve pela dominação romana, que nela só se deteve por pouco tempo e fracamente; preservada da invasão dos bárbaros pela energia dos seus habitantes e pelas dificuldades do seu território; submetida mais tarde à dinastia normanda que, todavia, teve que lhe conceder um certo grau de independência, o nome de Galles, Gallia, que sempre ostentou, é um traço distintivo pelo qual se liga, sem descontinuidade, ao período antigo. A língua kymrique (**), outrora falada em toda a parte setentrional da Gália, nunca deixou de ser usada, e muitos costumes são igualmente gauleses. De todas as influências estranhas, a única que triunfou completamente foi o Cristianismo; mas não o conseguiu sem muitas dificuldades, relativamente à supremacia da Igreja Romana, da qual a reforma do século XVI mais não fez que determinar-lhe a queda, desde longo tempo preparada, nessas regiões cheias de um sentimento indefectível de independência.

“Pode mesmo dizer-se que os druidas, convertendo-se inteiramente ao Cristianismo, não se extinguiram totalmente na Gália, como na nossa Bretanha e em outras regiões de sangue gaulês. Como consequência imediata, tiveram uma sociedade muito solidamente constituída, dedicada em aparência sobretudo ao culto da poesia nacional, mas que, sob o manto poético, conservou com notável fidelidade a herança intelectual da antiga Gália: é a Sociedade bárdica da Gália que, após se ter mantido como sociedade secreta durante toda a Idade Média, por uma transmissão oral de seus monumentos literários e de sua doutrina, à imitação da prática dos druidas, decidiu, por volta dos séculos XVI e XVII, confiar à escrita as partes mais essenciais dessa herança. Desse fundamento, cuja autenticidade é atestada por uma cadeia tradicional ininterrupta, procede o texto de que falamos; e o seu valor, dadas essas circunstâncias, não depende, como se vê, nem da mão que teve o mérito de o escrever, nem da época em que a sua redacção pôde adquirir a sua última forma. O que nele transpira, acima de tudo, é o espírito dos bardos da Idade Média, eles mesmos os últimos discípulos dessa corporação sábia e religiosa que, sob o nome de druidas, dominou a Gália durante o primeiro período de sua história, mais ou menos do mesmo modo que o fez o clero latino na Idade Média.

“Mesmo que estivéssemos privados de toda a luz sobre a origem do texto de que se trata, estaríamos claramente no caminho certo, tendo em vista a sua concordância com os ensinamentos que os autores gregos e latinos nos deixaram, relativamente à doutrina religiosa dos druidas. Constitui-se esse acordo de pontos de solidariedade que não permitem nenhuma dúvida, porque se apoiam em razões tiradas da própria substância de tais escritos; e a solidariedade, assim demonstrada pelos escritos capitais, os únicos de que nos falaram os Antigos, estende-se naturalmente aos desenvolvimentos secundários. Com efeito, esses desenvolvimentos, penetrados do mesmo espírito, derivam necessariamente da mesma fonte; fazem corpo com o fundo e não podem explicar-se senão por ele. E, ao mesmo tempo em que remontam, por uma origem tão lógica, aos depositários primitivos da religião druídica, é impossível assinalar-lhes algum outro ponto de partida; porque, fora da influência druídica, a região de onde provêm só conheceu a influência cristã, totalmente estranha a tais doutrinas.

“Os desenvolvimentos contidos nas tríades estão de tal modo fora do Cristianismo que as raras influências cristãs, que resvalam aqui e ali no seu conjunto, se distinguem do fundo primitivo logo à primeira vista. Essas emanações, oriundas ingenuamente da consciência dos bardos cristãos, bem podiam, se assim podemos dizer, intercalar-se nos interstícios da tradição, mas nela não puderam fundir-se. A análise do texto é, pois, tão simples quanto rigorosa, visto que pode reduzir-se a pôr de lado tudo o que traz o sinete do Cristianismo e, uma vez operada a triagem, considerar como de origem druídica tudo quanto fica visivelmente caracterizado por uma religião diferente da do Evangelho e dos concílios. Assim, para citar apenas o essencial, e partindo do princípio tão conhecido de que o dogma da caridade em Deus e no homem é tão especial ao Cristianismo quanto o é o da transmigração das almas ao antigo druidismo, um certo número de tríades, nas quais respira um espírito de amor jamais conhecido na Gália primitiva, traem-se imediatamente como marcas de um carácter comparativamente moderno; enquanto que as outras, animadas por um sopro totalmente diferente, deixam ver ainda melhor a chancela da alta antiguidade que as distingue.

“Enfim, não é inútil observar que a própria forma do ensinamento contido nas tríades é de origem druídica. Sabe-se que os druidas tinham uma predilecção particular pelo número três e o empregavam de modo especial, como no-lo mostra a maioria dos monumentos gauleses, para a transmissão de suas lições que, mediante essa forma precisa, se gravavam mais facilmente na memória. Diógenes Laércio conservou-nos uma dessas tríades, que resume sucintamente o conjunto dos deveres do homem para com a Divindade, para com os seus semelhantes e para consigo mesmo: ‘Honrar os seres superiores, não cometer injustiça e cultivar em si a virtude viril.’ A literatura dos bardos propagou, até nós, uma multidão de aforismos do mesmo género, interessando a todos os ramos do saber humano: ciência, história, moral, direito, poesia. Não os há mais interessantes, nem mais próprios a inspirar grandes reflexões do que aqueles que publicamos aqui, segundo a tradução que foi feita pelo Sr. Adolphe Pictet.

“Dessa série de tríades, as onze primeiras são consagradas à exposição dos atributos característicos da Divindade.

É nessa secção que as influências cristãs, como já era de prever, tiveram mais acção. Se não se pode negar ao druidismo o conhecimento do princípio da unidade de Deus, é possível que, em consequência de sua predilecção pelo número ternário, tivesse concebido vagamente alguma coisa da divina trindade. Todavia, é incontestável que o que completa essa elevada concepção teológica, qual seja, a distinção das pessoas e particularmente da terceira, pôde permanecer perfeitamente estranho a essa antiga religião. Tudo leva a crer que os seus sectários estavam muito mais preocupados em estabelecer a liberdade do homem, do que em instituir a caridade; e foi mesmo em consequência dessa falsa posição do seu ponto de partida que ela pereceu. Também parece lógico associar a uma influência cristã, mais ou menos determinada, todo esse começo, particularmente a partir da quinta tríade.

“Em seguida aos princípios gerais relativos à natureza de Deus, passa o texto a expor a constituição do Universo. O conjunto dessa constituição é formulado superiormente em três tríades que, ao mostrarem os seres particulares em uma ordem absolutamente diferente da de Deus, completam a ideia que se deve formar do Ser único e imutável. Sob fórmulas mais explícitas, essas tríades não fazem, afinal, senão reproduzir o que já se sabia, pelo testemunho dos Antigos, da doutrina da transmigração das almas, passando alternativamente da vida à morte e da morte à vida. Pode-se considerá-las como o comentário de um célebre verso da Phrasale, no qual o poeta exclama, dirigindo-se aos sacerdotes da Gália, que, se aquilo que ensinam é verdade, a morte é apenas o meio de uma longa vida: Longae vitae mors media est.

/…
(*) N. do T.: O velho novo. (**) N. do T.: Grifo nosso.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, La Revue Spirite, O Espiritismo entre os Druidas, Jornal de Estudos Psicológicos de Abril de 1858, 1º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

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