(I de II)
Os primeiros cristãos comunicavam-se com os Espíritos dos mortos e deles
recebiam ensinamentos. Não há nenhuma dúvida sobre este ponto, porque são
abundantes os testemunhos. Resultam dos próprios textos dos livros canónicos,
textos que conseguiram escapar às vicissitudes dos tempos e cuja autenticidade
é indubitável. (ii)
O Cristianismo repousa inteiramente em factos de aparição e manifestação dos
mortos e fornece inúmeras provas da existência do mundo invisível e das almas
que o povoam.
Estas provas são igualmente abundantes no Antigo e no Novo Testamento. Num,
como no outro, se encontram aparições de anjos (iii) dos
Espíritos dos justos, avisos e revelações feitos pelas almas dos mortos, o dom
de profecias (iv) e o dom de curar. (v) No
Novo Testamento são referidas as aparições do próprio Jesus, depois do seu
suplício e sepultura.
A existência do Cristo havia sido uma constante comunhão com o mundo invisível.
O filho de Maria era dotado de faculdades que lhe permitiam conversar com os
Espíritos. Estes, muitas vezes, se tornavam visíveis a seu lado. Os seus
discípulos viram-no, assombrados, conversar um dia no Tabor com
Elias e Moisés. (vi)
Nos momentos críticos, quando uma questão o embaraça, como no caso da mulher
adúltera, ele evocava as almas superiores e com o dedo traçava na areia a
resposta a dar, do mesmo modo que nos nossos dias o médium, movido por força estranha, traça caracteres na
ardósia.
Estes factos são conhecidos, relatados, mas muitos outros, relacionados com
esta troca assídua com o invisível, permaneceram ignorados dos homens, mesmo
daqueles que o cercavam.
As relações do Cristo com o mundo dos Espíritos afirmam-se pelo amparo
constante que do Além recebia o mensageiro divino.
Por vezes, apesar da sua coragem, da abnegação que inspiram todos os seus
actos, perturbado pela grandeza da tarefa, ele eleva a alma a Deus; ora,
implora novas forças e é atendido. Um grandioso sopro lhe bafeja a mente. Sob
um impulso irresistível, ele reproduz os pensamentos sugeridos; sente-se
reconfortado, socorrido.
Nas horas solitárias, os seus olhos distinguem letras de fogo que exprimem as
vontades do céu; (vii) soam vozes aos seus ouvidos,
trazendo-lhe resposta às suas ardentes preces. São a transmissão
directa dos ensinos que deve divulgar, são preceitos regeneradores
para cuja propagação baixara à Terra. As vibrações do pensamento
supremo que animam o Universo lhe são perceptíveis e lhe incutem esses eternos
princípios que espalhará e que jamais se hão de apagar da memória dos homens. Ele
percebe melodias celestes e os seus lábios repetem as palavras escutadas,
sublimes revelações, mistério ainda para muitos seres humanos, mas para ele a
confirmação absoluta dessa constante protecção e das intuições que lhe provêm
dos mundos superiores.
E quando essa grande vida terminou, quando se consumou o sacrifício, depois
que Jesus foi
pregado na cruz e baixou ao túmulo, o seu Espírito continuou a afirmar-se
através de novas manifestações. Essa alma poderosa, que em nenhum túmulo
poderia ser aprisionada, aparece aos que na Terra havia deixado tristes,
desanimados e abatidos. Vem dizer-lhes que a morte não é nada. Com a sua
presença lhes restitui a energia, a força moral necessária para cumprirem a
missão que lhes foi confiada.
As aparições do Cristo são conhecidas e tiveram numerosos testemunhos.
Apresentam analogias flagrantes com as que nos nossos dias são observadas em
diversos graus, desde a forma etérea, sem consistência, com que aparece a Maria
Madalena e que não suportaria o mínimo contacto, até à completa materialização,
tal como a pôde verificar Tomé, que tocou com a sua própria mão as chagas do
Cristo. (viii) Daí esse contraste nas palavras de
Jesus: “Não me toques” – diz ele a Madalena – ao passo que convida Tomé a pôr
um dedo nos buracos dos cravos: “Chega também a tua mão e mete-a em mim”.
Jesus aparece e desaparece instantaneamente. Entra numa casa com as portas
fechadas. Em Emaús conversa com dois dos discípulos, que não o
reconhecem e, desaparece repentinamente. Encontra-se de posse desse corpo
fluídico, etéreo, que há em todos nós, corpo subtil que é o invólucro
inseparável de todas as almas e que um alto Espírito como o seu soube dirigir,
modificar, condensar, rarefazer à vontade. (ix) E a tal
ponto o condensa, que se torna visível e tangível aos assistentes.
As aparições de Jesus depois da morte são mesmo a base, o ponto
capital da doutrina cristã e foi por isso que São Paulo disse:
“Se o Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé.” O Cristianismo não é
uma esperança, é um facto natural, um facto apoiado no testemunho dos sentidos. Os
apóstolos não acreditavam só na ressurreição; estavam convencidos dela.
E é por esta razão que a sua prédica adquiria aqueles tons veementes e
penetrantes, que incutia uma convicção robusta. Com o suplício de Jesus o
Cristianismo era ferido em pleno coração. Os discípulos, consternados, estavam
prestes a se dispersarem.
O Cristo,
porém, lhes apareceu e a sua fé tornou-se tão profunda que,
para a confessar, afrontaram todos os suplícios. As aparições do Cristo depois
da morte asseguraram a persistência da ideia cristã, oferecendo-lhe como base
todo um conjunto de factos.
A verdade é que os homens lançaram a confusão sobre estes fenómenos,
atribuindo-lhes um carácter miraculoso. O
milagre é uma postergação das leis eternas fixadas por Deus, das obras que são
da sua vontade e, seria pouco digno da suprema Potência exceder da sua própria
natureza e variar nos seus decretos.
Jesus, conforme
a Igreja, teria ressuscitado com o seu corpo carnal. Isso é contrário ao texto
primitivo do Evangelho. As aparições repentinas, com mudanças de forma, que se
produzem em lugares fechados, não podem ser senão manifestações
espíritas, fluídicas e naturais. Jesus ressuscitou, como
ressuscitaremos todos, quando o nosso espírito abandonar a prisão de carne.
Em Marcos e Mateus e, na descrição de Paulo (l Coríntios, XV), estas aparições
são narradas do modo mais conciso. Segundo Paulo, o corpo do Cristo é
incorruptível; não tem carne nem sangue. Esta opinião procede da mais
antiga tradição. A materialidade só veio mais tarde, com Lucas. A
narrativa complica-se então e é enfeitada com particularidades maravilhosas, no
intuito evidente de impressionar o leitor. (x)
Este modo de ver, como em geral toda a teoria do milagre, resulta
de uma falsa interpretação das leis do Universo. O mesmo acontece com
a ideia do sobrenatural, que corresponde a uma concepção deficiente da
ordem do mundo e das normas da vida. Na realidade, nada existe
fora da Natureza, que é a obra divina na sua majestosíssima expansão. O
erro do homem provém da acanhada ideia que ele faz da Natureza e das formas da
vida, limitadas para ele à esfera traçada pelos seus sentidos. Ora, os nossos
sentidos apenas abrangem uma porção muitíssimo restrita do domínio das coisas.
Além destes limites que eles nos impõem, a vida desdobra-se sob aspectos ricos
e variados, sob formas subtis, quintessências, que se graduam, se multiplicam e
renovam até ao infinito.
A este domínio do invisível pertence o mundo fluídico, povoado pelos Espíritos
dos homens que viveram na Terra e se despojaram do seu invólucro grosseiro.
Subsistem eles sob essa forma subtil de que acabamos de falar, forma
ainda material posto que etérea, porque a matéria afecta muitos
estados que não nos são familiares. Essa forma é a imagem, ou antes, o esboço
dos corpos carnais que estes Espíritos animaram nas suas vidas sucessivas. Eles
passam, mas a forma permanece, como a alma, de que é o organismo indestrutível.
Os Espíritos ocupam posições diferentes em harmonia com a sua elevação moral. A
sua irradiação, o brilho, o poder, são tanto maiores quanto mais alto houverem
subido na escala das virtudes, das perfeições e, quanto maior tiver sido a sua
dedicação em servir à causa do bem e da Humanidade. São estes seres, ou
Espíritos, que se manifestam em todas as épocas da História e em todos os
lugares, tendo como intermediários sensitivos especialmente dotados e que,
conforme os tempos, se chamaram adivinhos, sibilas, profetas ou médiuns.
As aparições que assinalam os primeiros tempos do Cristianismo, como as épocas
bíblicas mais longínquas, não são fenómenos isolados, mas a
manifestação de uma lei universal, eterna, que presidiu sempre às relações
entre os habitantes dos dois mundos, o mundo da matéria grosseira, a
que pertencemos e, o mundo fluídico invisível, povoado pelos Espíritos dos que
denominamos, tão impropriamente, de mortos. (xi)
Foi apenas em época recente que esta ordem de manifestações pôde ser estudada
pela Ciência. Graças às observações de numerosos sábios, a existência do mundo
dos Espíritos foi positivamente estabelecida e as leis que o regem foram
determinadas com certa precisão.
Conseguiu reconhecer-se a presença, em cada ser humano, de um duplo fluídico
que sobrevive à morte, no qual foi reconhecido o envoltório imperecível do
Espírito. Este duplo, que já se desprende durante o êxtase e o sono,
que se transporta e opera à distância durante a vida, torna-se, depois
da separação definitiva do corpo carnal e, de um modo mais completo, o
instrumento fiel e o centro das energias activas do Espírito.
Mediante este invólucro fluídico é que o Espírito preside a
tais manifestações de além-túmulo, que já não são segredo para ninguém, desde
que comissões científicas lhe estudaram os múltiplos aspectos, chegando a pesar
e fotografar os Espíritos, como o fizeram W. Crookes com o Espírito de Katie King, Russell Wallace e Aksakof com
os de Abdullah e John King. (xii)
É provável que o dom das línguas, conferido aos apóstolos, oferecesse analogias
com o fenómeno que, sob o nome de xenoglossia,
actualmente conhecemos. A força ódica de Reichenbach e
a matéria radiante explicam a auréola dos santos; as chamas ou “línguas de
fogo”, que apareceram no dia de Pentecostes, reproduzem-se hoje em dia nos
factos comunicados ao Congresso Espiritualista de 1900 pelo Doutor Bayol,
senador pelo Distrito das Bocas do Ródano, (xiii) e
finalmente as visões dos mártires são fenómenos da mesma ordem que os no nosso
tempo observados no momento da morte de certas pessoas. (xiv) Assim,
também, o desaparecimento do corpo de Jesus do sepulcro em que fora depositado,
pode explicar-se pela desagregação da matéria, observada há alguns
anos em sessões de experimentação psíquica. (xv)
Durante muito tempo os homens não viram nisso senão factos miraculosos,
provocados pelo próprio Deus ou pelos seus anjos, opinião cuidadosamente
alimentada pelos padres, a fim de impressionar a imaginação das massas e
torná-las mais submissas ao seu poder.
Nas Escrituras encontramos exemplos frequentes dos erros de
que foram objecto esses fenómenos. Em Patmos, João vê
aparecer um génio que, a princípio, ele quer adorar, mas que lhe afirma ser o
Espírito de um dos profetas seu irmão. (xvi) Neste
caso, foi dissipado o erro; o Espírito deu a conhecer a sua personalidade; em
quantos outros casos, porém, não foi ele mantido? É o mesmo que se dá com a
intervenção, tão frequente, dos anjos da Bíblia. É preciso pormo-nos em
guarda contra as tendências dos judeus e dos cristãos no sentido de atribuir a
Deus e aos seus anjos fenómenos produzidos pelos Espíritos dos mortos e,
a cujo respeito competia à nossa época fazer luz, restabelecendo-os na sua
verdadeira categoria.
Na época de Jesus, a crença na imortalidade estava enfraquecida. Os judeus
encontravam-se divididos a respeito da vida futura. Os cépticos saduceus
aumentavam em número e influência. Chegado Jesus. Torna mais amplas as vias de
comunicação entre o mundo terrestre e o mundo espiritual. Aproxima a tal ponto
os invisíveis dos humanos, que eles se podem corresponder novamente. Com mão
possante levanta o véu da morte e surgem visões do âmago da sombra; no meio do
silêncio fazem-se ouvir vozes; e essas visões e essas vozes vêm afirmar ao
homem a imortalidade da vida.
O Cristianismo primitivo afecta, pois, este carácter particular de ter
aproximado as duas humanidades, a terrestre e a celeste; tornou mais intensas
as relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Efectivamente, em cada
grupo espírita, as pessoas se entregavam a evocações; havia médiuns falantes,
inspirados, de efeitos físicos, como está escrito no capítulo XII da primeira
epístola de Paulo aos Coríntios. Então, como hoje, certos sensitivos possuíam o
dom da profecia, o dom de curar, o de expelir os maus Espíritos. (xvii)
Na Epístola citada, S. Paulo fala também do corpo espiritual,
imponderável, incorruptível:
“O homem é colocado na terra como um corpo animal e, ressuscitará como um corpo
espiritual; do mesmo modo que há um corpo animal, há um corpo espiritual.” (I
Coríntios, XV, 44)
Fora um fenómeno espírita, a aparição de Jesus no caminho de
Damasco, o que havia feito de S. Paulo um cristão; (xviii) Paulo
não conhecera o Cristo e, no momento dessa visão, que decidiu do seu destino,
bem longe estava de se encontrar preparado para a sua ulterior tarefa.
“Respirando sempre ameaças de morte contra os discípulos do Senhor”, munido
contra eles de ordens de prisão, seguira para Damasco a fim de os perseguir.
Neste caso, não cabe invocar, como a respeito dos apóstolos se poderia fazer,
um fenómeno de alucinação, provocado pela constante recordação do Mestre. Esta
visão, ao demais, não foi isolada; em todo o curso subsequente de sua vida,
Paulo entreteve assíduas relações com o invisível, particularmente com o
Cristo, de quem recebia as instruções indispensáveis à sua missão. Ele mesmo
diz que haure inspirações nos colóquios secretos com o filho de Maria.
/…
(ii) Ver nota complementar nº 6 (← link para aceder à nota).
(iii) Em hebraico, o verdadeiro sentido da
palavra anjo, melach, é de mensageiro.
(iv) O dom de profecia não consistia
simplesmente em predizer o futuro, mas, de um modo mais extenso, em falar e
transmitir ensinos sob a influência dos Espíritos.
(v) Ver, quanto ao conjunto desses fenómenos, a
nota complementar n° 7 (← link para aceder à nota), sobre "Os factos
espíritas na Bíblia".
(vi) Jesus tinha escolhido discípulos, não entre
homens instruídos, mas entre sensitivos e videntes, dotados de faculdades
mediúnicas.
(vii) Estes pormenores, que talvez surpreendam o
leitor, não são o produto da nossa imaginação. Foram-nos comunicados por um
alto Espírito, cuja vida esteve envolvida com a do Cristo. O mesmo se dá em
muitas passagens deste livro.
(viii) João, XX, 15-17 e 24-28.
(ix) Ver a nota complementar nº 9 (← link para aceder à nota), sobre "O perispírito
ou corpo fluídico".
(x) Clemente de Alexandria (i) refere
uma tradição que circulava ainda no seu tempo, segundo a qual João enterrara a
mão no corpo de Jesus e o atravessara sem encontrar resistência. ("Jesus
de Nazareth", por Albert Réville, 2°- vol., nota à pág. 470).
(xi) Ver as minhas outras obras, especialmente,
"Depois da Morte" e "No Invisível", "Espiritismo
e Mediunidade".
(xii) W. Crookes, "Pesquisas sobre os
fenómenos espíritas"; Russell Wallace, "O moderno
espiritualismo"; Aksakof, "Animismo e Espiritismo".
Relativamente a uma série de fenómenos análogos e mais recentes, ver também
Léon Denis, "No Invisível", "Espiritismo e
Mediunidade", cap. XX.
(xiii) Ver, "No Invisível", "Espiritismo
e Mediunidade", pág. 332.
(xiv) Ver a morte de Estevão: Actos, VII, 55 e
56.
(xv) Ver, "No Invisível", pág. 346.
(xvi) Apocalipse, XIX, 10.
(xvii) Apocalipse, XIX, 10.
(xviii) Idem.
Léon Denis (1846-1927) (i), Cristianismo
e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et
Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Relações
com os Espíritos dos Mortos, 5 (I de II), 6º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis
e giz de Alexandre
Cabanel)
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