Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

agonia das religiões ~


Introdução – Tempos de Agonia

O desenvolvimento da humanidade tem sido marcado por fases de agonia e de morte, seguidas de fases mais duradouras de ressurreição e reconstrução. As forças que determinam essa espantosa sucessão encontram-se na própria criatura humana. Seria inútil procurarmos uma explicação celeste, fundada nos pressupostos da Ira de Deus ou da Justiça Divina, como seria inútil procurarmos enquadrá-la nas brilhantes teorias relativas à influência dos ritmos telúricos. A própria doutrina aristotélica da geração e corrupção não poderia dar-nos os elementos concretos do fenómeno. Segundo Toynbee, as civilizações desenvolvem-se nas linhas conceptuais de uma religião fundamental e entram em agonia quando se esvai o poder vital dessas religiões. A relação sociedade-religião parece perfeitamente válida, mas não nos oferece o segredo dessa estranha mecânica da agonia.

Os processos sócio-culturais de cada civilização têm a sua fonte no homem, pois a sociedade se apresenta objectivamente como um conglomerado humano. Parece evidente que o ritmo agónico deve estar ligado às entranhas e ao psiquismo do homem. Como estamos vivendo, agora, precisamente numa das curvas agudas desse ritmo – talvez a mais aguda por que já passou a humanidade – o momento é propício a que examinemos o fenómeno ao vivo, tocando com os dedos nos seus elementos determinantes. A agonia actual das religiões é geralmente considerada como resultante da situação crítica da sociedade no seu acelerado desenvolvimento tecnológico. O mundo do supérfluo, em contradição com o mundo da escassez, na estrutura social em que vivemos, levaria a civilização actual a um beco sem saída. As religiões agonizam porque o hedonismo social e o correspondente pedantismo cultural esvaziaram igualmente as arcas de tesouros metálicos dos ricos, os baús de crenças e crendices dos pobres, as esperanças de sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de riqueza do planeta e até mesmo o balaio de sonhos da Lua e as esperanças de um céu convertido em frios desertos siderais em que rolam mundos áridos e despovoados.

Inverte-se a tese de Toynbee. As religiões seriam produzidas e mantidas pelas civilizações, como o mel pelas comunidades das abelhas. Deus, filho do homem, está morto, segundo constatam os teólogos mais avançados. E enquanto os religiosos voltam a matar-se uns aos outros em nome do deus morto, as grandes potências da civilização sem perspectivas preparam os funerais atómicos da Terra. A opressão estatal esmaga o homem nas áreas capitalistas e socialistas. O Leviatã de Hobbes ameaça o mar, a terra e o céu. Como decifrarmos o enigma desses tempos apocalípticos, quando o próprio acto de pensar parece estar sujeito a controlos telepáticos? Os defensores da liberdade transformam-se em terroristas e sequestradores ou em líricos distribuidores de flores murchas, embalsamadas nas palavras mortas de paz e amor. A inocência das crianças desaparece na voragem da criminalidade infantil. E os velhos alquebrados, de olhos vazios, já não encontram nos templos os signos da fé que os embalou na infância, na adolescência, na mocidade e na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras sem hábitos, os monges sem escapulários e os santos cassados na sua santidade já não podem consolar os crentes.

O que aconteceu para que tudo se subverta dessa maneira total e violenta? Foi a morte de Deus que esvaziou o mundo ou foi o vazio do mundo que matou Deus?
As estruturas sociais são coercivas. Do clã à tribo e à horda, e desta à civilização, a lei do aglomerado humano é uma só, mas desenvolve-se a um ritmo de pressão crescente. A coerção aumenta na razão directa da estruturação. Da cabana do pagé à sacristia a religião segue esse mesmo ritmo. A massificação do homem na sociedade moderna fez o caminho de retorno sobre as conquistas do individualismo ateniense. Esparta suprimiu Atenas. O sonho frustrado da República de Platão já prenunciava o Leviatã de Hobbes. O desenvolvimento tecnológico aumentou a pressão social sobre o homem, como o desenvolvimento da institucionalização religiosa gerou o totalitarismo eclesiástico das grandes civilizações orientais, leviatãs teocráticas, e forjou a engrenagem férrea do milénio medieval. Os sonhos da Renascença, um instante para respirar, apagaram-se impotentes nas garras de aço da tecnologia contemporânea. A torquês social da moral e da religião esmagou as gerações em nome da utopia conjugada de liberdade e civilização.

O desespero existencial de Kierkegaard e a náusea de Sartre foram os frutos amargos da escamoteação da natureza humana pela hipocrisia farisaica dos formalismos sociais e religiosos. O homem formalizado perdeu a naturalidade e só teve uma saída para a sua angústia existencial: matar Deus e rebelar-se contra a sociedade. O facto não é novo. Repetiu-se na História, com os episódios de repressão violenta dos rebelados nas civilizações teocráticas e massivas do Egipto faraónico, da Mesopotâmia, de Israel com as suas leis de pureza, da Idade Média e da Era Vitoriana na Inglaterra. Os libertinos medievais, a prostituição romana, o nudismo das comunidades religiosas que buscavam o estado de graça do paraíso perdido, o deslumbramento da Europa do Século XVI ante a suposta liberdade absoluta dos selvagens da América, são os antecedentes da era pornográfica que assinala a libertinagem do nosso tempo.

Bastam esses factos para podermos tocar com os dedos a fímbria da verdade. Em Os Demónios de LoudunAldous Huxley oferece-nos um quadro portentoso das medidas eclesiásticas e das providências estatais, na Europa dos séculos XVI e XVII, com repercussões no Século XVIII, para aliviar a pressão moral e religiosa no caldeirão social. Diz Huxley: “Os prelados franceses e alemães estavam acostumados a receber o cullagium de todos os padres e informavam àqueles que não tinham concubinas que poderiam tê-las, se quisessem, mas que deveriam pagar para isso uma licença, e mais, que essa licença deveria ser paga mesmo pelos que não as tivessem.” O celibato forçado explodia de tal maneira que era conveniente regulamentá-lo, a fim de salvar-se pelo menos a aparência de santidade dos clérigos. Numa das notas de seu dicionário, Bayle conta como o Senado de Veneza tolerava os escândalos do clero para desprestigiá-lo na opinião pública, em favor das conveniências do Estado.

A deformação da criatura humana pelas exigências antinaturais das religiões dá-nos a chave do processo cíclico da morte das civilizações. Isso não quer dizer que tenhamos de aceitar as teorias actuais de uma psicologia libertina, mas que devemos compreender o erro e o perigo das repressões extremas em nome da moral e das religiões. Podemos compreender claramente que esse extremismo equivale à medicação de disfarce, que esconde o mal permitindo o seu desenvolvimento secreto no organismo social. A Inglaterra da moral vitoriana está hoje a braços com a explosão de situações incontroláveis. O seu Parlamento majestoso é levado à adopção de leis e medidas deletérias, como as referentes aos problemas da homossexualidade juvenil.

O ministério dos ciclos agónicos é facilmente decifrado quando levantamos a máscara da hipocrisia das sociedades antinaturais. O mesmo se dá no tocante às religiões repressivas, que acabam vencidas pela rebelião dos instintos naturais, agonizando no descrédito ou sendo substituídas por outras. Acusa-se o Cristianismo de ser o responsável pela universalização da hipocrisia, mas os próprios evangelhos atestam a atitude racional de Cristo em face dos que pretendiam lapidar a mulher adúltera. No caso de Zaqueu, Cristo aceita a sua hospitalidade quando ele promete devolver aos pobres o fruto impuro dos seus roubosMadalena arrependida tornou-se a seguidora dedicada e a escolhida para ser a primeira a vê-lo depois da ressurreição. Não há dúvida que os excessos repressivos do Cristianismo não foram determinados por Cristo, mas pelos seus apóstolos judeus, contaminados pela hipocrisia farisaica e de outras seitas judaicas. O Apóstolo Paulo, o que melhor compreendeu a posição de Cristo em tantos aspectos, não conseguiu escapar aos prejuízos do judaísmo, de sua formação judaica, quando se referia aos processos de repressão, tornando-os ainda mais agudos na religião nascente.

Explica-se a atitude paulina perante os abusos e excessos das religiões pagãs, mitológicas, em que as práticas fálicas, os rituais dionisíacos, toda a herança da velha Suméria, da Mesopotâmia, da libertinagem da Grécia e de Roma, contaminavam as ingénuas comunidades cristãs, ameaçando com os seus excessos os princípios espirituais da religião nascente. Paulo, extremamente zeloso, apegava-se aos resíduos da sua formação farisaica, agindo com violência para impedir que os cristãos retornassem às práticas da irresponsabilidade moral. Mas há enorme distância entre as medidas enérgicas de Paulo, que não usava a máscara da hipocrisia, e as medidas repressivas que mais tarde judaizaram as religiões cristãs. Ele, que combateu sem cessar os apóstolos judaizantes, incidiu no mesmo erro que tanto condenara, mas justificado pelas circunstâncias de uma época de ignorância e de costumes geralmente condenáveis.

O ponto crucial do problema religioso chama-se hipocrisia. E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da falta de compreensão do verdadeiro sentido de Religião, que é caminho e não ponto de chegada da espiritualização do homem. Os religiosos que pretendem atingir a santidade do dia para a noite, que se revestem de pureza exterior, encobrindo a podridão interior, são os hipócritas condenados veementemente no Evangelho. A solução desse grave problema, que responde pela morte cíclica das civilizações, está na compreensão da verdadeira natureza do homem, do processo natural do seu desenvolvimento espiritual. Os artifícios purificadores só servem para mascarar os indivíduos pretensiosos. As práticas ascéticas não podem ser forçadas. As paixões e os instintos do homem são manifestações de forças vitais que, debaixo do controlo da razão e do sentimento, podem e devem guiar o espírito nos rumos da transcendência.

Repetimos agora os ciclos agónicos do Oriente, da Grécia e Roma, de Israel, da Europa Medieval. A explosão pornográfica sobrepõe-se aos instintos vitais e aos controlos sociais. E a agonia das religiões anuncia a morte da civilização tecnológica. Não obstante, há uma esperança para a brilhante civilização condenada. As forças do espírito reagem contra a derrocada moral. Como na queda de Bizâncio, enquanto os clérigos cantam e pregam no meio da derrocada, há vigias de uma nova era espreitando o futuro nas almenaras. É o que procuro demonstrar neste livro, num rápido confronto das estruturas envelhecidas com as novas estruturas que nascem da própria terra, debaixo dos nossos pés. Poluída, envenenada, devastada, ameaçada, a Terra dos Homens, nossa mãe, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para novas dimensões de uma realidade em que estamos perdidos.
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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Introdução – Tempos de Agonia, 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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