Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 10 de maio de 2016

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – A Terra ~

  Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do universo sideral e da inteligência da mecânica celeste, por demonstrar o ascendente da força sobre a matéria, podem colher ao exame dos corpos terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a minudência do infinitamente pequeno. A força rege identicamente os movimentos atómicos e as órbitas imensas das esferas siderais. Muda de objecto, muda de nome na classificação dos homens, mas não deixa de ser sempre a mesma força, isto é: a atracção universal. Chamam-lhe coesão, quando agrupa os átomos que constituem as moléculas e, gravitação, quando impulsiona os astros em torno do centro comum de sua gravidade. O nome humano não altera, porém, o facto físico.

  As moléculas, de constituição substancial, são formadas por uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em Química chamados simples. Cada molécula é um modelo de simetria e representa um tipo geométrico. Assim, por exemplo, a molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado é um sólido geométrico, regular, um heptaedro de base quadrada, composto de 7 átomos SH2O4Os corpos simples, para formar os compostos, não se podem combinar senão em números proporcionais, determinados e invariáveis. Sabemos que se designam sob o nome de equivalentes os números que exprimem quantidades ponderáveis dos diversos corpos susceptíveis de entrarem, elas ou os seus múltiplos, nas combinações químicas e aí se substituírem mutuamente, para formar compostos quimicamente análogos.

  Cem partes de oxigénio, em peso, combinam-se, por exemplo, com 12,50 de hidrogénio, para formar a água. Esta será sempre, sempre composta nessa proporção e ninguém poderá, absolutamente, juntar à combinação da molécula de água uma partícula a mais de qualquer dos componentes. A água formada pela combustão de uma chama é, identicamente, a mesma das fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxigénio se combinarão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro. Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é forçada a obedecer. A Natureza tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo, como se dizia outrora. E não só esses equivalentes representam numericamente todas as combinações de corpos com o oxigénio, como todas as desses corpos entre si; de modo que, no nosso exemplo, se o ferro se combinar com o hidrogénio, será sempre na proporção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente do hidrogénio). De resto, todas essas combinações obedecem a regras geométricas e a cristalização dos corpos pode sempre ser levada a um dos seis tipos fundamentais: – o cubo, os dois prismas rectos, o rombóide e os dois prismas oblíquos.

  Para explicar não apenas as combinações, mas também todos os movimentos múltiplos que se operam nas transformações incessantes da matéria, nos fenómenos de contracção e dilatação, na manifestação das diversas propriedades dos corpos, admite-se que os átomos não se tocam, ainda nos corpos mais densos e mais sólidos, que estão isolados entre si e que, em razão de sua pequenez, os intervalos que os permeiam guardam a relatividade, proporcionalmente exacta, com os dos corpos celestes. Finalmente, assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidárioassim também os átomos oscilam em torno de sua respectiva posição, sem se afastarem dos limites regulados pela coesão ou pela afinidade molecular. Entre o mundo das estrelas e dos átomos não há diferença essencial. Engrossai esse cristal, essa simples molécula, suponde-a que desenvolvendo-se a ponto de atingir o volume do sistema planetário e mais – de uma nebulosa, e tereis um verdadeiro sistema, com as suas forças e movimentos. Se, ao contrário, supuserdes que o sistema planetário se contrai, que todas as distâncias se encurtam, que todos os corpos que o integram diminuem e chegam, finalmente, às proporções de um agregado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso, as medidas expressivas do infinitamente grande, ou pequeno, estão em nós e não na Natureza, uma vez que tudo referimos a nós, como a um ponto de comparação. As noções de grandeza são puramente relativas.

  A Natureza não tem essa maneira de ver.

  Os fenómenos do calor, da luz, do som, do magnetismo, explicam-se por esta concepção dos movimentos atómicos. Sob a influência dessas forças exteriores, as moléculas se retraem ou se dilatam e modificam os seus movimentos, tal como fazem os mundos, precipitando o curso no periélio e retardando-o nas longínquas regiões do afélio. Quando, por um choque, produzimos vibrações num corpo sonoro, as suas moléculas agitam-se em cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses átomos são de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de átomos encerrados num minúsculo cubo de matéria orgânica do tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconcebível de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de 21 zeros. Suposto quiséssemos proceder à contagem, na proporção de 1.000 por segundo, haveríamos de viver duzentos e cinquenta mil anos para completá-la!

  Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for, a substância dos corpos é um pequeno mundo, um mundo analítico, no seio do qual o infinitamente pequeno é regulado por leis tão rigorosas quanto as do infinitamente grande, o sideral. Quando sabemos que uma polegada cúbica de trípole contém quarenta mil milhões de gálios fósseis; quando imaginamos que na classe dos infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo diâmetro não excede um milésimo de milímetro e que esses minúsculos seres se movem na água, ágeis, providos de aparelhos de locomoção, de músculos e de nervos; que se alimentam e possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem, combatem a presa nos abismos da gota de água, com velocidade e força comparáveis à de um cavalo a galope; quando consideramos, enfim, que esses pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos, já nos não custa crer que as moléculas de gelatina e albumina, que os constituem, são de uma tenuidade inimaginável e que os átomos componentes se integram sem metáfora na nossa ideia do infinitamente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram, são invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos em formação, das quais se encontram eles geometricamente associados, não mudam mais, ainda que passando de um ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres da Natureza e que a todos os encadeia sob o império de uma comunhão substancial, pela comunicação permanente das coisas entre si, da atmosfera com as plantas e todos os seres que respiram, das plantas com os animais, da água com todas as substâncias organizadas, pela nutrição e assimilação que perpetuam a cadeia das existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem, mudam de proprietário a cada instante, mas conservam essencialmente a sua natureza intrínseca. Reconhecemos, com os nossos adversários, que a molécula de ferro não varia, quer quando, incorporada ao meteorito, percorre o Universo, quer quando retine no trilho ou na roda do vagão, ou ainda quando, em glóbulo sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois, o habitáculo transitório das moléculas, elas conservam a sua natureza e propriedades essenciais. Os átomos são os infinitamente pequenos, sempre separados entre si e, todavia, encadeados por essa mesma força invisível que retém as esferas nas suas órbitas. Toda a matéria, orgânica ou inorgânica (visto ser idêntica) obedece primacialmente a essa força. As suas mínimas partículas são como astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos afigura pesada e densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que a avassala e rege o mineral, pesa os elementos, ordena as combinações, traça regras absolutas e, governando discricionariamente, faz dela uma escrava imbele, maleável e submissa às leis primígenas que consagram a estabilidade do mundo. É indubitável que os estados da matéria são regulados por leis. Já admirastes, alguma vez, os processos característicos da cristalização? Nunca examinastes ao microscópio a formação das estrelas de neve e das moléculas cristalinas de gelo? Nesse mundo invisível, como no universo visível, cada movimento, cada associação se efectua sob a direcção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas linhas e sucessões. Jamais as leis humanas lograram obediência tão absolutamente passiva.

  Nunca geómetra algum construiu figura tão perfeita qual a que naturalmente reveste a mais insignificante molécula.

  As leis da Natureza regem o movimento dos átomos nos seres vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporando-se segundo as leis que organizam todas as coisas.

  A molécula de ácido carbónico, a exalar-se do peito opresso do moribundo no seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do jardim, à relva do prado, ao tronco da floresta. A molécula de oxigénio que se desprende dos últimos ramos do anoso carvalho vai incorporar-se ao cabelinho louro do recém-nascido, no seu berço de sonhos. Nada podemos mudar na composição dos corpos. Nada nasce, nada morre. Só a forma é perecível. Só a substância é imortal. Constituímo-nos da poeira dos antepassados, os mesmíssimos átomos e moléculas.

 Nada se cria, nada se perde.

 Uma vela que ardeu completamente deixa de existir para os olhos vulgares e nem por isso deixará de existir integralmente. Se lhe recolhêssemos as substâncias consumidas, reconstitui la-íamos com o seu peso anterior. Os átomos viajam de um a outro ser, guiados pelas forças naturais. O acaso não colhe nessas combinações e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e radiante, subsiste em sua grandeza, esta potência peculiar à Terra é unicamente devida à previdência e rigor das leis que organizam essas transmigrações e etapas atómicas, de guarnição em guarnição. Se a organização militar da França se atribui a um concelho inteligente, parece-nos que a organização química dos seres, aliás muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um pensamento director.

  No entanto, o papel que a lei desempenha no Universo anda por aí relegado à categoria de fábula pelo autor da Resposta às Cartas de Liebig. Em sua opinião, o grande químico não tem motivos para dizer que foi a lei que tudo construiu. (i)

  A lei não passaria de uma ideia geral, induzida de caracteres sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois das experiências, seguir-se-ia que ela na realidade não existe!

  “Enquanto acreditarem que a lei fez o mundo, em vez de a considerarem como resultante dele e por ele iluminando-se, a inteligência humana dormirá nas trevas e a ideia há de antepor-se à experiência.

  Para exilar da Natureza o espírito, particularmente o espírito geométrico, é preciso recusar à evidência o papel representado pelo número e obstinar-se a não ouvir a universal harmonia profusamente espalhada nas obras criadas. A harmonia não é tão-só a fraseologia musical escrita em partituras e executada por instrumentos humanos; não consiste apenas nessas obras-primas a justo título admiradas e afloradas nos belos dias de inspiração, dos cérebros dos Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o Universo com os seus acordes. Antes de tudo, diga-se, a música propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, formada pelo número; cada som é uma série de vibrações em quantidade definida e as relações harmónicas dos sons não são mais do que relações numéricas. A gama é uma escala de cifras e os tons, maior e menor, são criados pelos números, assim como os acordes não passam, também eles, de uma combinação algébrica. Depois, como a provar a exclusiva soberania do número, vemos que todo o compositor há de obedecer ao compasso. Estas observações fundamentais, sugeridas pelo estudo do som, têm aplicação não menos valiosa no concernente à luz.

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(i) Chemische Briefe, página 32.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II, A Terra 1 de 3, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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