A Força e a Matéria II – A Terra ~
Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do
universo sideral e da inteligência da mecânica celeste, por demonstrar o
ascendente da força sobre a matéria, podem colher ao exame dos corpos
terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a minudência do
infinitamente pequeno. A força rege identicamente os movimentos
atómicos e as órbitas imensas das esferas siderais. Muda de objecto, muda de
nome na classificação dos homens, mas não deixa de ser sempre a mesma força,
isto é: a atracção universal. Chamam-lhe coesão, quando agrupa os
átomos que constituem as moléculas e, gravitação, quando impulsiona os astros
em torno do centro comum de sua gravidade. O nome humano não altera,
porém, o facto físico.
As moléculas, de constituição substancial, são
formadas por uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em
Química chamados simples. Cada molécula é um modelo de simetria e representa um
tipo geométrico. Assim, por exemplo, a molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado
é um sólido geométrico, regular, um heptaedro de base quadrada, composto de 7
átomos SH2O4. Os corpos simples, para formar os
compostos, não se podem combinar senão em números proporcionais, determinados e
invariáveis. Sabemos que se designam sob o nome de equivalentes os
números que exprimem quantidades ponderáveis dos diversos corpos susceptíveis
de entrarem, elas ou os seus múltiplos, nas combinações químicas e aí se
substituírem mutuamente, para formar compostos quimicamente análogos.
Cem partes de oxigénio, em peso, combinam-se, por
exemplo, com 12,50 de hidrogénio, para formar a água. Esta será sempre,
sempre composta nessa proporção e ninguém poderá, absolutamente, juntar à
combinação da molécula de água uma partícula a mais de qualquer dos
componentes. A água formada pela combustão de uma chama é,
identicamente, a mesma das fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de
oxigénio se combinarão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro.
Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é forçada a obedecer. A
Natureza tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo, como se dizia outrora. E
não só esses equivalentes representam numericamente todas as combinações de
corpos com o oxigénio, como todas as desses corpos entre si; de modo que, no
nosso exemplo, se o ferro se combinar com o hidrogénio, será sempre na
proporção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente do hidrogénio). De
resto, todas essas combinações obedecem a regras geométricas e a cristalização
dos corpos pode sempre ser levada a um dos seis tipos fundamentais: – o cubo,
os dois prismas rectos, o rombóide e os dois prismas oblíquos.
Para explicar não apenas as combinações, mas
também todos os movimentos múltiplos que se operam nas transformações
incessantes da matéria, nos fenómenos de contracção e dilatação, na
manifestação das diversas propriedades dos corpos, admite-se que os
átomos não se tocam, ainda nos corpos mais densos e mais sólidos, que estão
isolados entre si e que, em razão de sua pequenez, os intervalos que os
permeiam guardam a relatividade, proporcionalmente exacta, com os dos corpos
celestes. Finalmente, assim como os corpos celestes se movem em torno
uns dos outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidário, assim
também os átomos oscilam em torno de sua respectiva posição, sem se afastarem
dos limites regulados pela coesão ou pela afinidade molecular. Entre o
mundo das estrelas e dos átomos não há diferença essencial. Engrossai esse
cristal, essa simples molécula, suponde-a que desenvolvendo-se a ponto de atingir o
volume do sistema planetário e mais – de uma nebulosa, e tereis um verdadeiro
sistema, com as suas forças e movimentos. Se, ao contrário, supuserdes que o
sistema planetário se contrai, que todas as distâncias se encurtam, que todos
os corpos que o integram diminuem e chegam, finalmente, às proporções de um
agregado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso, as
medidas expressivas do infinitamente grande, ou pequeno, estão em nós e não na
Natureza, uma vez que tudo referimos a nós, como a um ponto de comparação. As
noções de grandeza são puramente relativas.
A Natureza não tem essa maneira de ver.
Os fenómenos do calor, da luz, do som, do
magnetismo, explicam-se por esta concepção dos movimentos atómicos. Sob a
influência dessas forças exteriores, as moléculas se retraem ou se dilatam e
modificam os seus movimentos, tal como fazem os mundos, precipitando o curso no periélio e
retardando-o nas longínquas regiões do afélio. Quando,
por um choque, produzimos vibrações num corpo sonoro, as suas moléculas
agitam-se em cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses átomos são
de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de átomos encerrados num
minúsculo cubo de matéria orgânica do tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconcebível de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de
21 zeros. Suposto quiséssemos proceder à contagem, na proporção de 1.000 por
segundo, haveríamos de viver duzentos e cinquenta mil anos para completá-la!
Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for,
a substância dos corpos é um pequeno mundo, um mundo analítico, no seio do qual
o infinitamente pequeno é regulado por leis tão rigorosas quanto as do
infinitamente grande, o sideral. Quando sabemos que uma polegada cúbica
de trípole contém
quarenta mil milhões de gálios fósseis; quando imaginamos que na classe dos
infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo
diâmetro não excede um milésimo de milímetro e que esses minúsculos seres se
movem na água, ágeis, providos de aparelhos de locomoção, de músculos e de
nervos; que se alimentam e possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem,
combatem a presa nos abismos da gota de água, com velocidade e força
comparáveis à de um cavalo a galope; quando consideramos, enfim, que esses
pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos, já nos não custa crer que
as moléculas de gelatina e albumina, que os constituem, são de uma tenuidade
inimaginável e que os átomos componentes se integram sem metáfora na nossa
ideia do infinitamente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram, são
invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos em formação, das
quais se encontram eles geometricamente associados, não mudam mais, ainda que
passando de um ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres
da Natureza e que a todos os encadeia sob o império de uma comunhão
substancial, pela comunicação permanente das coisas entre si, da atmosfera com
as plantas e todos os seres que respiram, das plantas com os animais, da água
com todas as substâncias organizadas, pela nutrição e assimilação que perpetuam
a cadeia das existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem, mudam de
proprietário a cada instante, mas conservam essencialmente a sua natureza
intrínseca. Reconhecemos, com os nossos adversários, que a molécula de
ferro não varia, quer quando, incorporada ao meteorito, percorre o Universo,
quer quando retine no trilho ou na roda do vagão, ou ainda quando, em glóbulo
sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois, o habitáculo
transitório das moléculas, elas conservam a sua natureza e propriedades
essenciais. Os átomos são os infinitamente pequenos, sempre separados
entre si e, todavia, encadeados por essa mesma força invisível que retém as
esferas nas suas órbitas. Toda a matéria, orgânica ou inorgânica (visto ser
idêntica) obedece primacialmente a essa força. As suas mínimas
partículas são como astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus
respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos afigura pesada e
densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que a avassala e rege o mineral,
pesa os elementos, ordena as combinações, traça regras absolutas e, governando
discricionariamente, faz dela uma escrava imbele, maleável e submissa às
leis primígenas que
consagram a estabilidade do mundo. É indubitável que os estados da
matéria são regulados por leis. Já admirastes, alguma vez, os processos
característicos da cristalização? Nunca examinastes ao microscópio a formação
das estrelas de neve e das moléculas cristalinas de gelo? Nesse mundo
invisível, como no universo visível, cada movimento, cada associação se efectua
sob a direcção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas linhas e
sucessões. Jamais as leis humanas lograram obediência tão absolutamente
passiva.
Nunca geómetra algum construiu figura tão perfeita
qual a que naturalmente reveste a mais insignificante molécula.
As leis da Natureza regem o movimento dos átomos nos seres
vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente
do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporando-se segundo as
leis que organizam todas as coisas.
A molécula de ácido carbónico, a exalar-se do
peito opresso do moribundo no seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do
jardim, à relva do prado, ao tronco da floresta. A molécula de
oxigénio que se desprende dos últimos ramos do anoso carvalho vai
incorporar-se ao cabelinho louro do recém-nascido, no seu berço de sonhos. Nada
podemos mudar na composição dos corpos. Nada nasce, nada morre. Só a forma é perecível. Só a
substância é imortal. Constituímo-nos da poeira dos antepassados, os
mesmíssimos átomos e moléculas.
Nada se cria, nada se perde.
Uma vela que
ardeu completamente deixa de existir para os olhos vulgares e nem por isso deixará de existir integralmente. Se lhe recolhêssemos as substâncias
consumidas, reconstitui la-íamos com o seu peso anterior. Os átomos viajam de um a
outro ser, guiados pelas forças naturais. O acaso não colhe nessas
combinações e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos elementos
constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e radiante, subsiste em sua
grandeza, esta potência peculiar à Terra é unicamente devida à previdência e
rigor das leis que organizam essas transmigrações e etapas atómicas, de
guarnição em guarnição. Se a organização militar da França se atribui a um
concelho inteligente, parece-nos que a organização química dos seres, aliás
muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um pensamento director.
No entanto, o papel que a lei desempenha no Universo
anda por aí relegado à categoria de fábula pelo autor da Resposta às Cartas
de Liebig.
Em sua opinião, o grande químico não tem motivos para dizer que foi a lei que
tudo construiu. (i)
A lei não passaria de uma ideia geral, induzida de
caracteres sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois das
experiências, seguir-se-ia que ela na realidade não existe!
“Enquanto acreditarem que a lei fez o mundo, em
vez de a considerarem como resultante dele e por ele iluminando-se, a
inteligência humana dormirá nas trevas e a ideia há de antepor-se à
experiência.
Para exilar da Natureza o espírito,
particularmente o espírito geométrico, é preciso recusar à evidência o papel
representado pelo número e
obstinar-se a não ouvir a universal harmonia profusamente espalhada nas obras
criadas. A harmonia não é tão-só a fraseologia musical escrita em
partituras e executada por instrumentos humanos; não consiste apenas nessas
obras-primas a justo título admiradas e afloradas nos belos dias de inspiração,
dos cérebros dos Mozart e
dos Beethoven.
A harmonia enche o Universo com os seus acordes. Antes de tudo,
diga-se, a música propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, formada pelo
número; cada som é uma série de vibrações em
quantidade definida e as relações harmónicas dos sons não são mais do que
relações numéricas. A gama é uma escala de cifras e os tons, maior e
menor, são criados pelos números, assim como os acordes não passam, também
eles, de uma combinação algébrica. Depois, como a provar a exclusiva
soberania do número, vemos que todo o compositor há de obedecer ao compasso. Estas
observações fundamentais, sugeridas pelo estudo do som, têm aplicação não menos
valiosa no concernente à luz.
/...
(i) Chemische Briefe,
página 32.
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria II, A Terra 1 de 3, 14º
fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)
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