Os Mortos Ressuscitam |
A ressurreição dos mortos no último dia, no fim dos
tempos, é uma alegoria judaica de que Jesus se serviu, como de tantos
outros elementos do Judaísmo, para ensinar o sentido verdadeiro da morte como
transição ou passagem de um mundo para outro, do mundo material para o
espiritual. O último dia é apenas aquele em que morremos. O fim dos tempos
seria o fim do mundo, mas de que mundo? A imaginação
rabínica antecedeu com vantagem a dos teólogos cristãos. Mais integrada nas
tradições proféticas do Fértil Crescente, a imensa região oriental
descrita por John Murphy (i) na
sua História das Religiões, os rabinos judeus dispunham das excitações
naturais da época em que um novo mundo estava sendo construído na Terra. A
era apocalíptica judaica, de que o Apocalipse de João nos dá uma imagem
alucinante, foi o mundo mágico das profecias judaicas. Jesus, judeu nascido na
Galiléia dos Gentios, no meio dos gregos da Decápolis, salvou-se da helenização
graças à humildade e à pobreza da sua família. A profissão de carpinteiro que o
pai lhe transmitia, segundo os costumes da época, livrou-o das influências
herodianas que fizeram de Madalena uma cortesã grega típica. Educado na
sinagoga, recebendo a bênção da virilidade aos treze anos, no Templo de
Jerusalém, Jesus era
um judeu entre judeus. A sua inteligência excepcional e a elevação
natural do seu espírito permitiam-lhe servir-se dos elementos da cultura
judaica para transmitir aos judeus as suas ideias generosas, tentando
romper o terrível sociocentrismo judaico, racista e pretensioso, que até hoje
perdura de maneira chocante na arrogância e na insolência do novo Estado de
Israel. Esse esforço generoso de Jesus, como podemos ver hoje, não surtiu os
resultados que um deus grego, por exemplo, poderia ter obtido. Os romanos, que
se casavam bem com as anti-virtudes judaicas, teriam feito de Jesus o Messias
esperado se a helenização herodiana o tivesse envolvido. Mas o jovem
carpinteiro integrou-se de tal maneira nas aspirações grandiosas do Judaísmo e,
se apegava tanto às suas ideias generosas de renovação do mundo, que o seu
destino só podia ser, no covil de cobras do rabinato, a condenação à morte
infamante na crucificação romana.
Essa visão racional da vida de Jesus, que não nos seria
possível depois do fim do Mundo Antigo, foi de tal maneira envolvida pelas
alucinações proféticas do Judaísmo, pelas fascinações mitológicas da era
massivamente dominada pelos mitos e, logo mais pela efervescência das seitas
judaicas, das influências filosóficas e míticas da cultura grega e pelas
manobras habilíssimas da política imperial romana, que chegou até nós na
forma-disforme e atormentada de um sincretismo cultural assustador. O jovem
carpinteiro foi transformado em mito, em rei e, por fim, num deus grego que
absorvia na sua natureza os poderes totais do Messias, de Iavé, de Zeus e de
Júpiter. Roma rendeu-se a esse sincretismo por força das circunstâncias, mas
com a condição de manter nas suas mãos imperiais as rédeas da nova era. A queda
do Império pela invasão dos bárbaros e a subjugação posterior de Bizâncio –
aumentando o sincretismo cultural, quantitativa e qualitativamente pela
turbulência e a vitalidade dos povos bárbaros, completou-se na desfiguração
mitológica do Cristianismo, de maneira irremediável, no trágico totalitarismo
sagrado do período medieval. Por isso, quando os primeiros ventos da Renascença
começaram a soprar sobre a Europa orientalizada, abalando a estrutura
gigantesca e a todo poderosa Igreja, a insurreição luterana desencadeou
as forças adormecidas da renovação dos tempos. E quando um jovem seminarista, Ernest Renan, resolveu
passar a limpo a História Cristã, só não foi queimado na praça pública porque,
como assinalou Kardec, a cauda da inquisição já se arrastava nas terras de
Espanha.
Sem a compreensão rigorosamente histórica desse vastíssimo e
trágico panorama, despido das fantasias mitológicas e aliviado das
toneladas de quinquilharias sagradas com que Roma o asfixiara, não poderíamos
compreender a formação do mundo moderno, de cujas entranhas nascemos
para decifrar os enigmas atordoantes
da Esfinge Romana. A Loba nos devoraria com a impiedade dos Césares.
Os mortos ressuscitam, não no fim dos
tempos, no último dia, pois que iriam fazer com a sua ressurreição no
vazio do mundo, sem tempo ou no tempo sem mundo? E de que lhes
serviria ressuscitar, no fim dos milénios com os seus miseráveis corpos doentes
e deformados, aos quais Deus, num excesso de crueldade, concederia a vida
eterna com as suas doenças e aleijões?
Essa ideia espantosa, que parece derivada das tragédias
gregas, saiu da cabeça de teólogos iluminados pelas fogueiras
medievais, perante a lição de Jesus a Tomé, que teve de tocar com os
dedos as chagas da crucificação nas mãos do mestre, para acreditar que era
mesmo Jesus quem ali se apresentava, no cenáculo dos apóstolos. Apesar das
muitas manifestações de mortos ressuscitados em estado de pureza e beleza etérea, que ocorriam no
culto pneumático ou culto dos Espíritos, na era apostólica, os teólogos vesgos
acharam que os mortos teriam de ressuscitar com as suas marcas e aleijões. E
como Deus lhes conferia a vida eterna, eles continuariam assim pela eternidade.
É tão obtusa essa dedução que nos custamos acreditar que tantos homens de
estudo, tantos mestres do passado e do presente tenham endossado e ensinado ao
povo essa burrice sumária. Untersteiner,
em A Fisiologia do Mito, tentou esclarecer a função racional do
mito no desenvolvimento da cultura. Onde colocarmos tudo isso: razão, fé e
cultura, diante de um corcunda, como o da Catedral de Notre Dame de Paris, na
ficção de Victor Hugo,
ressuscitado com o seu corpo disforme para arrastá-lo pela eternidade? E que
dizer do suplício dos mortos que tiveram de sofrer a decomposição dos seus
corpos na terra durante milénios, à espera desse prémio terrorista de
uma recomposição divina de suas mazelas e aleijões eternizados?
Tudo isso não mereceria os gastos de papel e tinta que estamos a fazer, não
fosse a aceitação maciça e inconsciente dessas e outras coisas semelhantes que
os teólogos inventaram e os clérigos semearam no mundo. O simples facto
de se tratar disso já é ridículo, mas devemos expor-nos ao ridículo
quando o amor à verdade e o amor ao próximo nos exige esse sacrifício. Os
novos teólogos, surgidos do inferno da II Guerra Mundial, levantaram-se contra
esses absurdos, mas por sua vez propuseram o absurdo maior da Morte
de Deus. O Padre Teilhard de Chardin procurou contribuir para a renovação teológica nos nossos
dias, mas por pouco não foi excomungado. A Igreja Eterna não abre as suas
janelas aos ventos renovadores. Não pode deixar de ser o que foi. As correntes
de pensamento renovador não são aceites pela Igreja.
As lições de Jesus sobre a ressurreição dos mortos abrangem
os problemas da ressurreição propriamente dita e da reencarnação.
Os textos evangélicos são de absoluta clareza. No caso de João Baptista como a
reencarnação de Elias, no do cego de nascença, no diálogo límpido e inalienável
com Nicodemos e noutras passagens, mas particularmente na discussão com os
apóstolos a respeito dele mesmo, Jesus não deixou dúvidas possíveis, mas os
teólogos se incumbiram de criar as dúvidas que a Igreja semeia há quase dois
milénios. Se Jesus não concordasse com o princípio, teria corrigido os
discípulos, como o fez de maneira enérgica em tantas ocasiões. Jesus ouviu
pacientemente o que diziam dele: antigo profeta que ressurgira dos mortos
(reencarnação), o Cristo, Filho de Deus (encarnação messiânica), não havendo
nesta, em virtude da sua missão, o problema das provas. Depois da crucificação,
as provas individuais concretas de sua ressurreição no corpo espiritual. Os
teólogos, ignorando as leis desses fenómenos e imbuídos de superstições
mitológicas, não perceberam que Jesus aprovara a tese reencarnacionista,
confirmando porém, como certa, a da encarnação messiânica, que era o seu caso.
Mais tarde tudo se esclareceria com as provas dadas aos discípulos, a começar
por Madalena, de que ressuscitara em espírito, como todos ressuscitaremos.
Também não perceberam que, no caso da transfiguração no Tabor, com a prova da
ressurreição de Moisés e Elias e, com a sua própria transfiguração no corpo
espiritual, antecipara a demonstração prática do que teoricamente ensinava.
Naquele tempo os judeus confundiam, como observa Kardec, reencarnação com
ressurreição. Compreende-se que os teólogos cristãos continuavam e continuam,
até hoje, jejunos no assunto, como os judeus antigos. Convém lembrarmos,
também, da afirmação de Jesus de que poderia destruir e reconstruir o seu
templo em apenas três dias. Tudo isso escapou aos teólogos e aos clérigos
cristãos, que até hoje, com raras excepções, nada aprenderam a respeito. A
resposta de Jesus a Nicodemos, advertindo-o de que, se não o entendia quando
falava das coisas da Terra (reencarnação como novo nascimento na carne e no
espírito), como queria entender as coisas celestes. Essa advertência continua a
pesar sobre as igrejas cristãs actuais em todo o mundo.
Coube ao Apóstolo Paulo explicar, na I Epístola aos
Coríntios, que temos corpo material (animal) e corpo espiritual e, que este
corpo, o espiritual, é o corpo da ressurreição. Com essa explicação, Paulo, que
havia reconhecido na Estrada de Damasco o Cristo no esplendor do seu corpo
espiritual, ensinava aos cristãos da igreja de Corinto que Jesus havia
ressuscitado ao terceiro dia no seu corpo espiritual e não no seu corpo carnal.
Se os coríntios compreenderam isso não sabemos, mas sabemos com certeza
absoluta que as Igrejas Cristãs dos nossos dias ainda não perceberam nada desse
grave e importante problema, que é suficiente para renovar as suas Igrejas
secretas. Até agora as Igrejas faziam, na Semana Santa, a Procissão do Senhor
Morto, enterrando de novo, simbolicamente, o corpo de Jesus.
A Ciência Espírita provou cientificamente que os espíritos,
nas suas aparições tangíveis, como agéneres, se mostram capazes de fazer todos
os actos de uma pessoa viva encarnada: comem, bebem, apertam as mãos dos
amigos, conversam, partem o pão e assim por diante. Porque Jesus fez tudo isso
no seu corpo espiritual, teólogos e clérigos andam pregando até hoje que ele
ressuscitou na carne. Entretanto, a ressurreição de entre os mortos, na carne,
nada tem a ver com as aparições tangíveis, pois é a reencarnação do
morto em novo nascimento carnal.
Todos morremos, mas todos ressuscitamos. Por
isso não somos mortais, mas imortais. Mortal é o corpo material de que nos
servimos para – segundo as Filosofias da Existência, – nos projectarmos no plano
existencial. Na Terra, só existimos quando integramos a humanidade encarnada.
Os filósofos existenciais, até o materialista Sartre, são obrigados
a admitir uma anterioridade do nosso ser (onde e como?) para
podermos projectar-nos na existência. Sartre diz apenas que, antes de existir,
somos o em-si, uma coisa viscosa e fechada em si mesma, que se
projecta no para-si, a existência material, para fazer o trajecto da
vida em direcção à morte, buscando a síntese do em-si-para-si, que
seria a nossa passagem para o plano divino. Mas Sartre acha que o homem é uma
paixão inútil, pois não consegue atingir a divindade. Apesar da sua
confusão, Sartre é mais coerente nessa tese do que os teólogos
cristãos. Pois estes nos enterram e nos sacramentam para nos fazer dormir nas
catacumbas até ao Fim dos Tempos, à espera do Juízo Final.
Mas a mais difícil tarefa da Educação para a Morte é
precisamente a de quebrar esse condicionamento milenar, integrando os homens
numa visão mais realista da vida. Os factos são de todos os tempos e estão ao
alcance de todas as criaturas dotadas de bom senso. Hoje, graças à abertura
científica produzida pelo avanço acelerado das Ciências, não se pode admitir
que pessoas razoavelmente cultas continuem amarradas – como acontece na própria
Parapsicologia, – ao sincretismo teológico do Tomismo de Tomás de Aquino,
como acontece com Robert Amadou em França ou às teorias peremptas do velho René Sudre, que
volta a tocar o seu realejo enferrujado nos nossos dias. O realejo de Sudre foi
desmontado por Ernesto Bozzano no século passado e, isso de maneira irremediável, com a
técnica, a lógica e a precisão matemática de Bozzano. Mas o velho teimoso ainda
o põe a funcionar, para delícia dos ouvidos esclerosados que não percebem o som
rasca das peças carcomidas pela ferrugem. “Morrer não é morrer, meus amigos.
Morrer é mudar-se”, exclamou Victor Hugo após as
experiências espíritas do seu exílio na ilha de Jersey. Lombroso, contendo a
emoção, abraçou a sua mãe materializada na
casa do Prof. Chiaia, em Milão. Frederico Figner, judeu
ortodoxo, tornou-se espírita na sessão de Belém do Pará, em que a médium Anna Prado lhe
devolveu a filha morta, a menina Rachel, que voltou a abraçá-lo e à sua esposa,
sentando-se no colo de ambos e advertindo a mãe de que devia tirar o luto, pois
ela, Rachel, como provava naquele momento, não morrera. Richet, o
fisiologista do século, escreveu a Schutel: “A morte é a
porta da vida.” Rhine,
Pratt, Carington e Price, nos nossos dias,
comprovaram e sustentam com provas nas mãos a sobrevivência do homem à morte do
corpo material. Lord Daofinng, na batalha de Londres, da II Guerra Mundial,
conversou com os seus aviadores mortos sobre o território alemão. Seriam todos
alucinados, teriam perdido o senso e a capacidade de discernimento para aceitar
trapaças indignas? Seremos acaso mais bem-dotados do que essas grandes figuras
da nossa vida cultural? De que elementos dispomos para rejeitar a nossa própria
sobrevivência? Que contra-provas podemos opor ao nosso próprio direito de
superar a morte – a destruição total do ser humano –, num Universo
em que nada se destrói?
/…
José Herculano Pires, Educação para a Morte, 19
– Os Mortos Ressuscitam, 24º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo,
pintura de William-Adolphe Bouguereau)
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