Ressurreição (*)
Dia de Páscoa, 31 de março de 1918
Anualmente, aos primeiros sorrisos da primavera, os
discípulos de Allan Kardec reúnem-se em torno desta lápide sagrada, a fim de
homenagearem a memória do grande Codificador.
Parece, inicialmente, que se abriram clarões nas suas
fileiras, porque todos os que são jovens estão longe, de pé, na frente de
batalha, para repelir o invasor.
Muitos tombaram na defesa da pátria e as suas almas foram
juntar-se, no Espaço, às almas dos homens de ideal, de dever e de virtude
que, faz 60 anos, lutaram pela divulgação do Espiritismo no nosso país, todavia
essas almas, fiéis à citação, tornaram a participar desta cerimónia.
Se conseguíssemos tirar o véu que nos oculta o mundo
invisível não veríamos somente alguns grupos de adeptos, porém uma grande
multidão que se apresenta espontaneamente para nos alentar e nos inspirar. O seu
número cresce bastante ao somar-se com todos aqueles atingidos pela dor e que
buscam na nossa doutrina o raio de esperança que esclarece e consola.
Na luta terrível que abala o mundo, não são apenas as
energias latentes que acordam, mas também todas as paixões furiosas e as ambições
que jaziam no coração humano.
Neste momento cruel, é agradável lembrarmo-nos dos grandes
obreiros do pensamento pacificador e fecundo, que prepararam um futuro melhor
e, dentre eles, Allan Kardec.
Desta vez, o aniversário do mestre coincide com a festa da
Ressurreição. Não é este, por acaso, um motivo de alegria, um símbolo de vida e
uma promessa de imortalidade?
A Páscoa é o despertar da natureza depois do prolongado e
triste sono do inverno. Os brotos enchem-se de seiva, nascem florinhas nas
moitas, recomeçam os gorjeios dos pássaros que preparam os ninhos nos ramos.
Tépido perfume paira no ar.
Ao mesmo tempo se estabelece, com maior insistência, o
problema da vida renascente, que é uma questão grave do movimento progressista,
através do qual são feitas ou transformadas as coisas.
Para grande parte dos homens, esse problema ainda é obscuro,
permanecendo escondida a finalidade da vida. Tudo quanto lembre o mistério dos
seres e das coisas aumenta a sua inquietação e o seu anseio. Não sabem de onde
vieram nem para onde vão; caminham tropeçando em todos os obstáculos da
estrada. A ideia da morte assusta-os e eles a repelem horrorizados.
Para nós, graças ao Espiritismo, o objectivo de viver se
aclarou de maneira intensa. A vida é um caminho até as alturas, a rota que
conduz aos grandes picos perenes. É o esforço do homem para o bem e o belo, é a
ascensão para a luz, é o desenvolvimento gradual das forças e das faculdades,
cujas sementes Deus colocou em cada um de nós.
É verdade que muitas vezes, principalmente na hora actual, a
subida é áspera e pontilhada de espinhos, ficando o horizonte escurecido diante
de nós. Porém nas horas sombrias é que as grandes verdades se destacam com
maior esplendor e se depuram as almas no cadinho do sofrimento. Pelo sacrifício
e pela abnegação aumentam a sua irradiação interior. Por intermédio das nossas
existências terrenas, precárias, instáveis e dolorosas, construímos o nosso
espírito imortal e o grandioso edifício dos seus destinos.
A Páscoa é também a comunhão entre dois planos: o visível e
o invisível, o terreno e o espiritual. Nesse ponto de vista, é o coroamento da
obra de Jesus.
O Cristo abrira, de par em par, as amplas portas que
estabelecem o intercâmbio entre esses dois mundos, permitindo que se
penetrassem reciprocamente.
Sabemos que toda a vida de Jesus foi uma obra mediúnica da
maior intensidade. Se ele agrupou, à sua volta, homens simples e ignorantes
para lhes entregar uma missão que exigia instrução e faculdades oratórias, foi
porque descobrira neles as aptidões psíquicas que iriam convertê-los, depois
que ele tivesse morrido, em intérpretes do Além, inspirados pelo próprio
pensamento e pela vontade.
A acção dos profetas hebraicos, provocada por superiores
influências, prosseguia e estendia-se por toda a Igreja cristã, tornando-se ela
a intermediária no mandato preparado pelas potências invisíveis. A manifestação
da Páscoa e as aparições de Jesus que se seguiram são a nota importante, o
centro dessa grande epopeia espiritualista.
A Igreja primitiva apresenta notáveis semelhanças com o
movimento espírita actual. Sob o nome de profetas, os médiuns nela
representavam um papel importante porque nas suas inspirações e discursos havia
o grande sopro do Além.
A Igreja, durante todo o tempo em que seguiu sendo a
intérprete das revelações sobre-humanas, foi assistida, protegida e, apesar dos
erros e das imperfeições dos seus membros, manteve-se viva e próspera.
Entretanto, a partir do dia em que aboliu a mediunidade,
impondo o silêncio às vozes do além, nela se fez a obscuridade; pouco a pouco,
os objectivos divinos foram substituídos pelos materiais e ela abandonou o seu
verdadeiro papel, a missão que o seu fundador lhe conferiu.
A violenta e pérfida campanha que a Igreja promove hoje
contra o Espiritismo comprova que ela se desviou completamente do sentido de
suas origens, de suas verdadeiras tradições, afastando-se, cada vez mais, dos
ensinos do Cristo para se encerrar em fórmulas que os lábios repetem, mas que
não trazem luz nem calor aos corações dos homens.
Resulta daí que nos cabe, modestos discípulos e humildes
herdeiros de Allan Kardec, a missão de restabelecer o laço que une o Céu à
Terra, de reencontrar a fonte fecunda de onde jorram altas inspirações, de
retomar essa tarefa que deve congregar os poderes invisíveis e os homens de boa
vontade, a fim de se construir a nova era desejada por todas as almas inquietas
e tristes...
No meio da miséria humana, nos dias angustiados que
atravessamos, a Páscoa deve ser, como um raio de luz, uma mensagem de júbilo e
de esperança.
Aí está por que, de pé em volta deste dólmen, como os
antigos cristãos que celebravam a Páscoa em traje de viagem e segurando o
bordão, comungamos nós, não materialmente, porém com todos os impulsos de nossa
alma e todas as aspirações de nosso coração, com esse mundo invisível, cujas
legiões pairam sobre nós e se associam intimamente às nossas lutas e esforços,
assim como aos nossos padecimentos.
Dessa forma, a enorme cadeia de vida que liga a Terra ao
Espaço se consolida e reúne, numa só acção, as duas humanidades, solidárias no
seu destino através dos séculos e dos tempos.
Se queremos entrever pelo pensamento o porvir reservado ao
Espiritismo, imaginemos, por um momento, as gerações vindouras livres de
superstições clericais, de preconceitos universitários e elevadas, através do
espiritualismo científico e filosófico, até à comunhão com o invisível, conversando
com os habitantes do além, orientando a sua vida de acordo com os conselhos dos
seus preceptores do além-túmulo e obedecendo aos impulsos superiores, como os
antigos profetas de Israel.
Semelhante sociedade não formaria o povo de eleitos aos
quais Jesus veio evangelizar? A união de tal povo com a humanidade invisível
seria comparável à escada de Jacob, pela qual os espíritos desceriam até nós e
nós subiríamos até Deus, numa ascensão de glória, de virtude e de luz!
A todos os que se curvam ao peso da existência e ao fardo
das provações, aos que consideram com terror o flagelo, o fogo e o sangue que
devastam a França, diremos: Elevai os vossos pensamentos acima das misérias
humanas, elevai-os às regiões serenas, às perspectivas imensas que a doutrina
de Allan Kardec nos apresenta.
Bem mais alto que as circunstâncias terrenas, ela vos
ajudará na descoberta das leis eternas que presidem à ordem, à justiça e à
harmonia no Universo. Mostrar-vos-á que os males do destino são outros tantos degraus
para se chegar a um nível mais elevado da vida, para alcançar sociedades
melhores, humanidades mais dignas dos favores da natureza e do destino. Ela vos
dirá que a catástrofe que agora se desencadeou sobre o nosso país, talvez com o
fim de saneá-lo, é passageira e que melhores dias virão depois da tormenta.
O espírita sabe que um futuro sem limites lhe está garantido
e vai andando no seu caminho com mais fé e confiança.
Suporta, resolutamente, as provações porque, de antemão,
conhece as suas causas e os seus proveitos, haurindo na sua crença as
consolações e a força moral tão importantes nos momentos críticos e de luto.
Sabe que, apesar das vicissitudes dos tempos e dos reveses da História, a
verdade, o direito e a equidade deram sempre a última palavra.
O espírita sabe que uma poderosa protecção o envolve, que
cada um de nós tem o seu guia e que seres invisíveis zelam pelos indivíduos e
pelas nações.
O estudo de nossa natureza psíquica lhe mostrou toda a
extensão das nossas forças ocultas, que podemos ampliar e desenvolver pelo
pensamento, pela vontade e pela oração, atraindo para nós as forças exteriores
e os puros fluidos, cuja finalidade é fecundar as nossas próprias forças interiores.
Dessa maneira, a comunhão com o invisível não é apenas um acto
de fé, mas principalmente um salutar exercício que aumenta o nosso poder de
irradiação e de acção.
A fim de que possamos gozar da claridade e do calor do Sol,
precisamos, em nossas casas, abrir as portas e as janelas; assim também, é
preciso abrir as nossas almas e os nossos corações às divinas irradiações para
sentir os seus benefícios.
A maior parte dos homens continua refratária, resultando daí
a pobreza do seu espírito e a obscuridade em suas mentes. Porém, se os nossos
pensamentos e vontades vibrassem em uníssono, convergindo para um objectivo
comum, essa meta seria facilmente atingida e os nossos males se reduziriam
notadamente. Nas almas que se encontram mais nas sombras brotaria uma centelha
que se transformaria em chama ardente.
No meio da luta que devasta o mundo, muitas vezes nos
sentimos sufocados pela tristeza. Nós que, até há pouco tempo afirmávamos a lei
do progresso, com a qual sonhávamos para o melhoramento constante de todas as
coisas, agora somos obrigados a reconhecer que as conquistas científicas e as
mais belas descobertas da inteligência servem para intensificar a obra de
destruição e de morte a que assistimos, impotentes.
A história imparcial registará as cenas de espanto e terror
que acontecem tanto no alto dos ares como na terra e até no fundo das águas; e
determinará a responsabilidade dos que foram os primeiros em inaugurar
processos de guerra que excedem em selvajaria e ferocidade a tudo quanto a
humanidade conhecia.
De nossa parte, diante desse desenrolar de paixões furiosas,
desse transbordar de ódios, temos um dever a cumprir, uma missão a realizar:
divulgar em nosso derredor o conhecimento desse além, onde a verdade e a
justiça, embora muitas vezes ignoradas na Terra, ainda encontram refúgio
seguro; dirigirmo-nos aos que choram os seus mortos queridos, iniciando-os
nesse intercâmbio espiritual que lhes permitirá conviverem ainda com eles pelo
espírito e pelo coração, proporcionando-lhes inefáveis consolações, e,
finalmente, relembramos a memória do grande Codificador dessa doutrina luminosa
e serena que traz alento e consolação aos aflitos.
Nos nossos dias de sofrimento, uma das raras alegrias do
pensamento é a de nos determos nas nobres figuras que muito honraram a humanidade.
/…
(*) Pronunciado em
31 de março de 1918, no Cemitério Père-Lachaise, junto ao túmulo de Allan
Kardec.
LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XIII
Ressurreição (*) Dia de Páscoa, 31 de março de 1918, 30º fragmento da
obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra
britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra
Mundial)
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