Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 3 de julho de 2017

o sentido da vida ~


Novo Panteísmo "Realista"

Ao procurarmos situar o Espiritismo, no terreno filosófico, acima das duas correntes clássicas de espiritualismo e materialismo, demos-lhe a designação de realista. Esse realismo, porém, nada tem a ver com o realismo medieval e a sua luta contra o nominalismo. Pode ser antes comparado ao realismo literário de Flaubert, pois o que o caracteriza é a preocupação de ver a vida e o mundo através de uma visão real, a mais real possível, sem o desprezo ou o descuido de qualquer dos aspectos da realidade objectiva e subjectiva, se é assim que podemos dividir, impunemente, a realidade.

Devemos lembrar, entretanto, nesse ponto, que a recusa sistemática em aceitar a teoria espírita e o desinteresse manifesto pela mesma, da parte da maioria dos cientistas modernos e dos modernos filósofos, que torcem o nariz diante dos livros de Kardec e os trabalhos de CrookesMyersRichetAksakof e Oliver Lodge, por sentirem o cheiro de uma grosseira superstição empalhada no museu da culturaconduziram-nos fatalmente a um renascimento forçado do realismo medieval, conjugado com o panteísmo na sua forma mais primitiva. E o dizemos primitiva porque é a forma que poderíamos chamar de panteísmo inconsciente, muito distanciada da forma superior de panteísmo de Espinoza, por exemplo, que, segundo o seu próprio autor, podia confundir-se com o pensamento de Paulo, de que tudo vive e se move em Deus.

Os novos corifeus da cultura, apegando-se a um racionalismo de superfície, que contradiz as maiores virtudes da própria razão, negam todas as possibilidades da sobrevivência individual, para aceitarem, em troca, uma visão infinitamente mais improvável e absurda, da sobrevivência de uma realidade dotada de percepção consciente. Não importa que uma cerebração como a de Oliver Lodge tenha reunido as suas experiências e as suas conclusões, ainda recentemente, em pleno mar da cultura moderna, num trabalho como a monografia Por que creio na imortalidade pessoal. Os grandes sábios da era atómica, embora um cientista de grande evidência no terreno das pesquisas atómicas, como Artur Campton, confirme, em A posição do homem no Universo, as assertivas de Lodge, preferem fugir espavoridos da superstição da imortalidade para se refugiarem no panteísmo científico, que é, na realidade, a mais anti-científica de todas as teorias.

De facto, não negam os nossos homens da ciência, e os possíveis filósofos desta era de pesquisas, a imortalidade da alma. Entretanto, envolvendo essa imortalidade no conceito de eternidade das coisas, confundem o resultado das suas observações parciais com as linhas mais amplas da realidade universal e oferecem à humanidade exausta um imenso borrão, como perspectiva do seu próprio futuro. Apegados ao método científico de indução e dedução, esquecem-se da regra fundamental da convergência das provas, para a qual Ernesto Bozzano nos chama incessantemente a atenção, nos seus trabalhos. Generalizam sobre meia dúzia de conceitos ou de casos, desprezando a maioria, por considerá-los sob o prejuízo da superstição, espécie de pecado original da teologia científica, fonte impura e sempre suspeita, que atemoriza e espanta os ortodoxos.

Não podendo negar a continuidade da vida, que se patenteia a própria continuidade do Universo, e não querendo aceitar a sobrevivência individual, que lhes quebraria o dogma científico do monismo psicofísico, levam de volta o pensamento moderno ao panteísmo primitivo. Deus, embora não o chamem por esse nome, que também cheira a superstição, é a própria natureza, de que tudo provém e a que tudo retorna. As individualidades, sejam humanas, animais, vegetais ou minerais, nada mais são do que ondas que surgem e se apagam, rápidas e efémeras, na superfície do mar infinito da matéria, sucedendo-se através dos tempos, como as próprias ondas do mar. O homem é uma crista de água espumosa que se levanta de súbito na superfície, percorre um certo espaço-tempo e desaparece de novo no líquido comum. O que sobrevive não é o homem, mas apenas os seus elementos constitutivos, a sua matéria e a sua energia. O deus-natureza, caprichoso, ilógico, absurdo, é um monstro universal, de mil tentáculos e de milhões de faces, a criar e a tragar incessantemente as próprias criaturas, a se revelar e se esconder, num torvelinho infernal e numa verdadeira autofagia, mais desoladora e mais horrenda do que tudo o que possa ter imaginado a mitologia pagã e a ingénua teologia católica, a respeito dos domínios satânicos.

Entretanto o homem existe. O homem pensa, vive, sente, pode filosofar. Gogito ergo sum da metade cartesiana. E diante disso, procuram, os sujet-pensant da moderna cultura científica, uma parte de saída através de novo retrocesso filosófico, na volta ao realismo medieval. Vejamos o que dizem H. G. WellsJulian Huxley e G. P. Wells, por exemplo, em A nossa vida mental, tradução e notas de Almir de Andrade, título inglês Science of life, volume oitavo, Man’s mind and behaviour.

Embora sejamos mortais como indivíduos, podemos ser imortais como fases e partes transitórias da evolução contínua e imorredoura de uma realidade dotada de percepção consciente. Quando filosofamos, nas horas de recolhimento e de silêncio, talvez essa filosofia não parta unicamente de nós, mas seja o próprio homem que se revela, na plenitude de si mesmo, através dos nossos pensamentos.”

Durante o século XI, como se sabe, desencadeou-se no mundo filosófico a tremenda luta entre nominalistas e realistas, os últimos afirmando a existência real, positiva, dos universais, que nada mais eram que figuras colectivas das coisas existentes de maneira separada do mundo físico, e os primeiros sustentando a existência apenas destas coisas. Assim, para os realistas, à maneira do que Sócrates e Platão afirmavam sobre os conceitos "gerais", os homens não são mais do que projecções materiais do Homem universal, a entidade colectiva existente no mundo das ideias. A esse idealismo escolástico são forçados a regressar, como vemos, os corifeus do pensamento científico moderno, quando se negam a aceitar as últimas consequências do esforço humano para o conhecimento mais amplo da vida e do mundo.

A Religião, a Filosofia e a Ciência atingiram um estágio superior, graças à contínua e irrevogável evolução da humanidade e dos seus processos mentais. Nesse estágio não é mais possível manter-se o divisionismo irracional, gerador de antagonismos irreconciliáveis, em que esses ramos do conhecimento humano têm vivido até agora. Chegamos, pois, à era da síntese, ao momento do encontro e fusão dessas partes distintas, para a formação do todo, do corpo único e vitorioso da concepção geral do Universo, por que anseiam o coração e a mente do homem. As forças que se opõem a esse avanço natural não podem fazer outra coisa senão barrar o caminho, desviando o curso normal desses ramos do conhecimento. Esse desvio, uma vez que o avanço foi sustado, não pode tomar outro rumo senão o do regresso ao passado.

O Espiritismo se afirma como a larga estrada do progresso para o pensamento humano, quando pensamos em tais coisas. Ele nos mostra a sua verdadeira natureza do ponto culminante das conquistas mentais e espirituais da humanidade, ao verificarmos que, sem interromper o avanço de nenhum dos ramos do conhecimento e sem voltar para trás, ele pode reuni-los, naquela síntese que nos leva da multiplicidade dos fenómenos ao princípio único que os rege.

Nem foi por outro motivo que sir Oliver Lodge afirmou, em Por que creio na imortalidade pessoal, ser o Espiritismo uma nova revolução copérnicaEle rompe o círculo fechado do pensamento moderno, estilhaçando as esferas de vidro dos novos céus superpostos de Ptolomeu, para colocar o homem diante do espaço infinito, em que os mundos gravitam e a humanidade se expande, para além do organocentrismo ortodoxo da biologia moderna.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Novo Panteísmo “Realista”, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

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