Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 21 de julho de 2012

pensamento crítico ~


Um gesto de fraternidade

   A explicação do fenómeno religioso como simples “humanização da natureza”, como a “projecção do homem ao infinito”, é mais literária do que filosófica, não tendo absolutamente nada de científica. O próprio Marx quase o reconheceu quando acrescentou à tese contemplativa de Feuerbach os seus princípios dinâmicos. Perdoa-se como um dos muitos equívocos, através dos quais se elabora dialecticamente o conhecimento. Admitir-se, porém, a sua perpetuação no mundo filosófico seria um crime de lesa-cultura.

   Primeiro, por que não há nenhuma base positiva, experimental ou de observação, para comprovar essa teoria de emergência; depois, porque há uma infinidade de provas em contrário, suficientemente documentadas, com base na mais rigorosa investigação científica, feita por cientistas insuspeitos, tão materialistas e descrentes como Feuerbach, Marx, Engels e os seus continuadores.

   Ora, parece evidente que uma teoria, contraditada pelos factos, mormente através da investigação científica, não apenas uma, mas milhares de vezes, está irremediavelmente falida. Por outro lado, a afirmação de que “a sociedade burguesa tem interesse na explicação religiosa, teológica, dos fenómenos sociais” (Tcheskiss) nada tem a ver com a realidade do fenómeno religioso em si, como a realidade das alterações fisiológicas não se invalida nem se obscurece em virtude da exploração dos charlatães da medicina. Além disso, é preciso notar que a filosofia espírita é tão contrária à teologia e às explicações teológicas da natureza quanto as próprias ciências naturais, não correspondendo, por isso mesmo, aos interesses de classe da burguesia.

   No seu trabalho Dialéctica e Metapsíquica, afirma Humberto Mariotti: “A simples análise de um único caso de materialização deita por terra o raciocínio filosófico, e queiram ou não, uma nova ideia do ser e do mundo começará a mover-se na mente do pensador.” Com isto, sim, temos uma afirmação científica, devidamente comprovada pelos factos, de que nos dão exemplo os casos clássicos de Richet, Myers, Lodge, Lombroso, materialistas convertidos ao espiritualismo, diante da realidade incontrovertível da fenomenologia espírita. Quando, pois, o materialismo dialéctico reduz à mesma pauta da superstição primitiva a religião ancestral, com as suas formas de exploração social, e os modernos trabalhos de pesquisa científica no terreno da sobrevivência, comete uma heresia filosófica de proporções catastróficas. Em outras palavras, reduz a tese dialéctica à antítese do dogma-de-fé, traindo a síntese ou fechando a porta.

   Não há, ao mesmo tempo, nenhuma justificativa para os homens que, “bem situados” no mundo capitalista, deturpam os factos históricos e a própria realidade presente, para sustentar a velha tese superada do materialismo científico, graças ao costumeiro processo da exclusão, ainda agora repetido pelos behavioristas e pavlovistas. Nessa categoria de irremissíveis estão o Dr. Emilio Troise, com o seu Materialismo Dialéctico, e entre nós os drs. Murilo de Campos, Leonídio Ribeiro, Henrique Roxo, – o humorista científico do “delírio espírita episódico” – e, ultimamente, como a mais recente contribuição da “cultura” indígena à luta contra o Espiritismo, o professor Silva Mello, com o seu Mistérios e Realidades Deste e do Outro Mundo. Homens de ciência, que preferem negar as experimentações rigorosamente científicas de personalidades como Crookes e Richet, ou desnaturá-las e deformá-las, para sustentar uma teoria sem base, ou melhor, cuja suposta base se esvai aos olhos de todos, com a própria evaporação da matéria, na era da física nuclear.

   O livro de Mariotti não é, por isso mesmo, apenas um esforço no sentido de colocar a verdade filosófica e científica da sobrevivência no seu devido lugar. Mais do que isso, é um gesto de fraternidade, um apelo do coração a esses transviados do conhecimento, na esperança de salvá-los, ainda, do implacável naufrágio da história.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Um gesto de fraternidade, 4º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

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