Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 3 de julho de 2012

a pedra e o joio~


questão metodo-
lógica

   Quem se atreve a afirmar, por exemplo, que o roustain-
guismo é simples questão de opinião e por isso não deve ser discutido, ou que este ou aquele pretenso cientista tem o direito de formular suas teorias, dá uma prova espontânea de sua ignorância do problema espírita em sua inelutável posição epistemológica. Como obra evidente de mistificação, um decalque malfeito e deformador da obra de Kardec, visando a ridicularizar a doutrina verdadeira, o roustainguismo não pode (absolutamente não pode) ser aceito por nenhum espírita consciente, a não ser por efeito de fascinação. O direito de uma pessoa formular teorias em qualquer campo do conhecimento está sujeito a uma exigência elementar e básica: a de conhecer a fundo esse campo. Sem isso, e sem dar provas disso, ninguém, por mais aparentemente culto que possa ser considerado ou que se diga, não tem o direito de formular e divulgar teorias a respeito. Isso é ponto pacífico em todo o mundo.

   Vamos a exemplos concretos:

   Quando o Sr. Oswaldo Polidoro, na sua incultura e na sua ingenuidade, se propõe a fazer um Espiritismo do Século XX, chamando-o de Espiritismo Divinista – pois entende que Kardec sujeitou-se à Ciência humana e negou a divina –, só os que ignoram a posição metodológica de Kardec e sua importância cultural podem aceitar esse absurdo. No outro extremo, quando Hernani Andrade elabora em bases físicas uma Teoria Corpuscular do Espírito para superar o suposto mecanicismo de Kardec, só as pessoas incapazes de compreender a posição kardeciana e a função cultural do Espiritismo podem bater palmas a essa tentativa absurda.

   Esclareçamos um pouco mais, se possível:

   Quando o Sr. Luciano dos Anjos, representando toda a Directoria da Federação Espírita Brasileira, sustenta e propaga o roustainguismo e nega aos espíritas o direito de instituir cursos de doutrina e de organizar instituições culturais espíritas (defendendo ridiculamente o autodidatismo como ideal de formação cultural), só os que nada entendem dos problemas culturais podem apoiá-lo nessa proposta de retorno ao primitivismo. Nenhuma pessoa de bom senso e de certa cultura poderá aceitar esse ilogismo a menos que esteja sujeita a um processo de fascinação, essa forma aguda de obsessão que afecta a capacidade de julgar.

   Quando o Sr. Artur Massena, presidente leigo da Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, acha que as suas experiências de 36 anos no trato da mediunidade (não como cientista, que não é, mas como um prático, um curioso e no máximo um amador) lhe dá o direito de contradizer Kardec e introduzir novidades no assunto, só os que ignoram por completo o que seja Ciência e o que seja cultura podem aprovar essa temeridade.

   É necessário compreendermos o absurdo dessas posições, se quisermos prestar algum serviço, por mínimo que seja, à causa espírita. Ainda neste caso aplica-se admiravelmente a recomendação de Erasto a Kardec: é preferível rejeitar dez possíveis verdades ou acertos nesse terreno do que aceitar uma única mentira. Porque essa única mentira porá o Espiritismo em má situação perante os homens de bom senso. E porque, como advertiu Kardec, devemos pisar no terreno sólido da realidade, deixando as utopias, por mais fascinantes que se apresentem, que se submetam à prova inexorável do tempo. Não somos utópicos, somos realistas. Não jogamos com possibilidades, mas com factos. E fora dos factos e da sua pesquisa rigorosa não temos Espiritismo.

   Quem não compreender isso pode aderir a qualquer das formas de utopia que levaram o Espiritualismo ao descrédito no século passado e continuam a se propagar em nossos dias com ampla liberdade. Quem quiser permanecer no Espiritismo terá de submeter-se às exigências culturais da doutrina, que são sobretudo de ordem metodológica.

   Até agora, o Espiritismo só foi conhecido no Brasil através dos cinco volumes da Codificação. Só agora dispomos da colecção da Revista Espírita do tempo de Kardec, tão importante que ele mesmo a incluiu no rol das leituras necessárias para o bom conhecimento da doutrina, como vemos em O Livro dos Médiuns. Ninguém, entre nós, conhece Kardec em profundidade. Homens de cultura, considerados como grandes conhecedores da doutrina, publicaram trabalhos que provam a superficialidade espantosa desse conhecimento. Se leram e estudaram, não aprenderam, não assimilaram.

   Dirigentes de grandes instituições doutrinárias mostram-se ignorantes do sentido e da natureza da doutrina, enxertando-a com estranhos conceitos provindos da época anterior ao aparecimento do Espiritismo. Chega-se a combater, como perigoso, o desenvolvimento cultural do Espiritismo, e isso nas altas rodas das instituições de cúpula.

   Essa situação desoladora favorece o aparecimento de pretensos reformadores e actualizadores da doutrina, que tanto surgem do meio do povo – através de médiuns ao serviço de espíritos mistificadores –, quanto das elites culturais, através de teóricos improvisados, que se aproveitam de seus títulos universitários ou posições sociais para impor ao povo suas ideias pessoais, não raro tão absurdas como as dos místicos sertanejos. E há também, para maior espanto das pessoas sensatas, os que exercendo funções de responsabilidade no meio espírita, mostram-se admirados com os prodígios de mediunismo nas formas de sincretismo religioso afro-brasileiro – como a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé – e bandeiam-se para os terreiros.

   Tudo isso resulta de uma fonte única: a ignorância da doutrina. As molas secretas da vaidade, da auto-suficiência e das obsessões encorajam essa proliferação de tolices, cuja finalidade evidente é a ridicularização do Espiritismo. Urge, pois, que os espíritas sensatos e responsáveis tomem posição contra essa avalanche de absurdos, tenham a coragem e a franqueza de falar a verdade em defesa do Espiritismo, doa a quem doer.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A questão metodológica, 2 de 2, 7º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

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