Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – III

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

 …/


   Quoerens – Essa combinação de marchas não é menos estranho fenómeno!

   Lúmen – Não vos acode ao espírito outras objecções, ouvindo-me?

   Quoerens – Confesso que essa combinação foi a última, ou pelo menos me intrigou de modo a excluir qualquer outra no momento.

   Lúmen – Eu vos farei notar a existência de umas outras, astronómicas, que revelarei imediatamente para que não reste dúvida. Tal combinação depende do movimento da Terra. Não somente o movimento diurno do Globo deveria impedir-me de bem apanhar a sucessão dos factos, mas também esse movimento, sendo desmesuradamente acelerado pela rapidez do meu regresso rumo à Terra, e 864 meses escoando-se em menos de um dia – reflecti ser surpreendente que eu de tal não me apercebesse. Mas, tendo visto apenas um número relativamente restrito de paisagens, de panoramas e de factos, é provável que, retornado ao nosso planeta, eu me mantivesse, por muito rápidos instantes isolado, sobre pontos que sucessivamente me interessaram. De qualquer modo, devia render-me à evidência, e constatar que, sem fadiga, havia assistido à sucessão célere dos sucessos do século e da minha própria existência.

   Quoerens – Essa dificuldade não me escapara, e pensei que haveis navegado no Espaço à maneira de um balão arrastado pela rotação do globo. Certo, a inconcebível rapidez com que deveis ter sido levado é das de causar vertigens; mas não me limito, todavia, a essa hipótese, meditando sobre vossa afirmativa.

   Assinalando que a vossa visão, e assim a vossa insciente aproximação da Terra, eram devidas à intensidade de atenção sobre o ponto do globo onde vos víeis de novo, não é inadmissível que vos mantivésseis constantemente preocupado com o dito ponto.

   Lúmen – A esse respeito, não vos afirmo coisa alguma, pois de tal permaneci inconsciente; mas, sobre isso, penso diferente. Não revi todos os acontecimentos da minha existência, mas apenas um pequeno número dos principais, que, sucessivamente escalonados, me mostraram o conjunto da minha vida. Apresentaram-se quase todos sobre o mesmo raio visual. Tudo quanto sei é que a atenção indizível, que me prendia soberana e imperiosamente à Terra, agia na forma de uma corrente que me religasse a ela, ou, se preferis a expressão, com o poder dessa força ainda misteriosa da atracção dos astros, em virtude da qual os pequenos tombariam directamente sobre os mais importantes, se não fossem retidos nas suas órbitas pela força centrífuga.

   Quoerens – Cogitando desse efeito da concentração do pensamento relativamente a um ponto único, e da atracção real que ele sofre logo, com relação a esse ponto, creio assinalar que aí está o eixo principal do mecanismo dos sonhos.

   Lúmen – Dissestes a verdade, meu amigo, e vos posso afirmar, eu, que, durante largo tempo, fiz dos sonhos o assunto especial de minhas observações e estudos. Quando a alma, liberta das atenções, preocupações e tendências corporais, vê em sonho um objecto que a encanta e para o qual se sente atraída, tudo desaparece em torno de tal objecto – que permanece só e se constitui o centro de um mundo de criações; ela o possui inteiramente e sem reservas, contempla-o, dele se apossa e o faz seu, o universo inteiro se apaga da reminiscência, para deixar um domínio absoluto ao objecto da contemplação da alma, e, tal qual me aconteceu em meu regresso à Terra, não vê mais do que o dito objecto, acompanhado das ideias e das imagens que engendra e faz sucessivamente surgir.

   Quoerens – Vossa rápida viagem a Capela, e assim vosso regresso não menos veloz à Terra, tinham, pois, por fundamento causal, essa lei psicológica, e agistes mais livremente ainda do que em sonho, porque vossa alma não mais estava peada pelas engrenagens do organismo. Recordo-me de que, em nossas conversações passadas, vós, com efeito, dissertastes muitas vezes a respeito da força da vontade. Assim, pudestes retornar ao leito de morte antes que vosso envoltório mortal fosse sepultado.

   Lúmen – Regressei, e bendisse as saudades sinceras da minha família, acalmei as dores da nossa amizade ferida, esforcei-me por inspirar a meus filhos a certeza de que eu não era mais aquele envelope mortal, e que eu habitava a esfera dos Espíritos, o Espaço celeste, infinito e inexplorado.

   Assisti ao meu próprio enterro e assinalei aqueles que se diziam meus amigos e que, por uma ocupação de medíocre importância, não se deram ao incómodo de levar meus despojos terreais à derradeira morada. Ouvi as variadas conversações que versavam sobre o meu cortejo funerário. Pareceu-me que muitos se entretinham principalmente com os seus interesses personalíssimos; mas verifiquei a presença de irmãos de pensamento no convívio dos quais sempre me encontrava e, embora nesta região de paz não tenhamos avidez de elogios, eu me senti feliz em constatar que uma suave lembrança da minha passagem pela Terra lhes havia ficado na memória.

   Quando a pedra do túmulo caiu e separou a terra dos mortos da Terra dos vivos, dei um derradeiro adeus ao meu pobre corpo adormecido e, porque o Sol já descesse para o seu leito de púrpuras franjado de ouro, permaneci na atmosfera até à noite próxima, mergulhado na admiração dos belos espectáculos que se desdobravam nas regiões aéreas. A aurora boreal estendia por cima do pólo o seu turbante prateado, estrelas errantes choviam de Cassíope e a Lua-cheia, vagarosa, se elevava no Oriente, qual um novo mundo surgindo das ondas. Vi Capela cintilante, que me fixava com o seu luminoso olhar tão vivo, e distingui as coroas que a circundavam, príncipes celestes de uma divindade. Então, esqueci de novo a Terra, a Lua, o sistema planetário, o Sol, os cometas, para me deixar prender sem reservas à intensa atracção da refulgente estrela, e fui transportado no seu rumo pela acção do meu desejo, com uma rapidez maior do que a das setas eléctricas. Depois de algum tempo, cuja duração não me foi possível verificar, cheguei ao mesmo anel e à montanha onde estivera na antevéspera, e vi os anciães ocupados no seguimento da história da Terra, no período retardado de 860 meses. Estavam vendo os acontecimentos da cidade de Lião, do dia 23 de Janeiro de 1793

   Confessar-vos-ei qual a causa misteriosa da minha atracção para com a estrela Capela? Maravilha! Existem na Criação ligações invisíveis que não se rompem, qual acontece com os laços mortais, correspondências íntimas que subsistem entre as almas, apesar da separação pelas distâncias. Na noite desse segundo dia, porque a lua-esmeralda se incrustasse no terceiro anel de ouro (tal é a medida sideral do tempo), surpreendi-me percorrendo solitária avenida envolta de flores e perfumes. Flutuei nela alguns instantes, quando vi aproximar-se de mim a minha tão amada e cara Eivlys. Estava linda qual outrora; as primaveras desaparecidas resplenderam ante meus olhos. Não me deterei a descrever a alegria de tal reencontro, pois não é cabível aqui, e talvez um dia nos entretenhamos em falar a respeito das afeições ultraterrestres que sucedem às da vida carnal. Desejo apenas salientar, a propósito do reencontro em ligação com esta tese, que bem depressa procuramos juntos, no Céu, a Terra – a nossa pátria adoptiva, onde desfrutáramos dias de paz e ventura. Estimamos, com efeito, dirigir nossos olhares rumo desse ponto luminoso onde a nossa condição actual nos permitia distinguir um mundo; sentíamos prazer em consorciar o passado da nossa saudade ao presente que nos chegava nas asas da luz. E no êxtase em que nos mergulhava essa singularidade tão nova para ambos, buscávamos ardentemente ressurgir ante a vista os acontecimentos da nossa mocidade. Assim, revimos, então, os amados tempos do nosso primeiro amor, o pavilhão do Convento, o jardim florido, os passeios dos arredores de Paris, tão faceiros e formosos, e nossas viagens, sozinhos os dois, através dos campos. Para reconstruir esses períodos, bastava avançarmos, juntos, no Espaço, em direcção da Terra, até às regiões em que tais aspectos, trazidos pela luz, estavam gravados. Aí tendes revelada, meu amigo, a estranha observação que vos havia prometido. Eis a aurora que se avizinha, e já a estrela de Lúcifer empalidece sob a Alba Rósea. Volto às constelações...

   Quoerens – Ainda uma palavra, ó Lúmen, antes de findar esta palestra. De vez que os aspectos terrestres só se transmitem sucessivamente no Espaço, deve haver, pois, um presente perpétuo para as vistas escalonadas nesse Espaço, até um limite fronteirado apenas pela extensão da visão espiritual.

   Lúmen – Sim, meu amigo. Coloquemos, por exemplo, um primeiro observador na distância da Lua: ele se aperceberá dos factos terrestres um segundo e 1/4 depois de ocorridos. Situemos um outro em distância quádrupla; esses acontecimentos sofrerão uma demora de 5 segundos. Um terceiro os verá com a diferença de 10 segundos. A uma distância dupla ainda da precedente, o quarto observador os distinguirá com o intervalo de 20 segundos. E assim sucessivamente. À distância do Sol, já existe uma diferença de 8 minutos e 13 segundos. Com relação a certos planetas, a demora será de muitas horas, conforme assinalamos já. Mais longe, são necessários dias inteiros. Para além ainda, meses, mais de um ano. Das estrelas mais próximas, só se percebem os acontecimentos terráqueos um, dois lustros depois de realizados. Há estrelas bastante longínquas, as quais a luz atinge com o retardo de alguns séculos, e mesmo em dezenas de séculos. Nebulosas existem onde a luz chega somente depois de uma viagem de milhões de ciclos anuais.

   Quoerens – De sorte que, para ser testemunha de ocorrências históricas ou geológicas dos tempos passados, bastaria que esses observadores se afastassem suficientemente. Não se poderia rever verdadeiramente o dilúvio, o paraíso terrestre, Adão e...

   Lúmen – Já vos disse, meu velho amigo, que a chegada do Sol ao hemisfério põe em fuga os Espíritos. Uma segunda palestra permitirá aprofundar melhor um assunto do qual só vos pude apresentar hoje o esquema geral, e que é fértil em novos horizontes. As estrelas me chamam, e já desapareceram. Adeus, Quoerens, adeus.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – III, fragmento global 10º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen) 
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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