Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 9 de maio de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA ~

   Logo se recobrou do vágado que o
fez tombar na inconsciência, o Espírito do duque di Bicci despertou lentamente.

Parecia-lhe
estar em leito de demorada agonia.


A mente, incapaz de raciocínios imediatos, se encontrava nublada, impossibilitando-lhe o conhecimento dos últimos sucessos.

Aquele deperecimento que experimentava parecia ter-lhe aniquilado o controle da razão. No comenos em que sentia voltar a memória, registava terrível apatia, acompanhada de opressão no peito e dificuldade respiratória incoercível.

Doía-lhe todo o corpo e com a astenia que o perturbava, por ilação quase automática, recordou o cataló em que sentia a vida finar-se lentamente, o desejo que acalentava de morrer, a funda melancolia que lhe tisnava a satisfação da existência e, como se a mente fosse, então, accionada por estranho mecanismo, passou a rever todos os lances daqueles últimos dias.

Percebeu-se, então, espectador e personagem do que via na própria mente, experimentando as aflições e sentindo-as dominá-lo, conscientemente.

Repassou o falecimento, as exéquias fúnebres e lembrou-se das instruções dadas ao preboste, quando ao cumprimento dos seus desejos expressos no testamento, que se encontrava lacrado e no cartório do notário Dom Germano Victorio.

Depois, como se tudo tomasse vida, sentiu o frio terrível que se abateu sobre ele e a angústia da saudade dos filhos e da esposa que partira antes dele para a Eternidade.

Passou a sofrer o medo, naquele estranho lugar que ainda era o seu palácio e se encontrava revestido de sombras apavorantes e espessas.

Dificilmente conseguia mover-se, embora, sem o controle da vontade, ora se sentisse num lugar ora noutro.

O tempo não lhe tinha significação: era noite intérmina, em que tudo tomava aspecto aparvalhante.

Repentinamente – recordou-se – sentira-se chamado com veemência por poderosa voz e arrastado por ignoto poder, passando a escutar o pensamento do sobrinho e filho adoptivo Girólamo. 

Um espasmo vigoroso dilatou-lhe a agonia e, então, vendo e ouvindo o moço, compreendeu que o rapaz planeava o assassínio e se preparava para executá-lo.

Oh! O desespero daquela hora todo retornou. Vivia, novamente, as angústias daqueles momentos já passados conquanto estivesse impossibilitado de reagir.

Semi-esmagado de dor, reacompanhou, através da esquisita visão, o sobrinho marchar resoluto pela longa betesga, até à recâmara em que se encontravam as crianças e Lúcia.

Seguiu, de alma transtornada, o estulto criminoso avançar com frieza e roubar as vidas queridas, diante dele, impossibilitado de qualquer defesa.

Sentia-se morrer, sem conseguir perder de todo a lucidez. Avançara naquele instante para o bandido e desfalecera…

   Agora, no entanto, via além do que vira: a encenação soez do rapaz, explicando o ocorrido ao ecónomo da casa e aos servos em desalinho…

   Sim, reflectia, tudo não passava de uma tragédia superlativa, que fora apresentada por duendes, objectivando o seu solar.

   Quase louco, o duque compreendeu: morrera, mas não se acabara. Estava vivo, numa situação que lhe era estranha, conquanto verdadeira, pois que prosseguia vivendo.

   Experimentou amarga indisposição, como se estivesse dominado pela maremma tão popular e devastadora. Todo ele vibrara accionado pelo ódio, que lhe espocava na mente e no coração. Por que Deus permitira que se consumasse o hediondo crime? Onde estava Ângela, que o não socorria? Será aquilo tudo o pórtico do Inferno ou delirava, simplesmente?

   As interrogações, entrecortadas pelo dissabor impossível de relatar, ricocheteavam nas paredes escuras da sua mente em infortúnio demorado e ele sentia-se rebolcar em fundo fosso. Asfixiado, em desalinho, foi acometido por crise de desespero… Os olhos saíram-lhe das órbitas dilatadas e a face se congestionou; as vestes ficaram em deplorável condição e as mãos, como se fossem garras, passaram a doer, traduzindo os paroxismos que lhe produziam baba pegajosa e nauseante e escorrer pelos lábios abertos, em ricto de infortúnio.

   A Senhora duquesa, compungida, acompanhava o esposo desde a sua desencarnação, orando por ele e ensejando-lhe a relativa paz que podem fruir aqueles que não foram além da craveira da vida comum, e que viveram retirando da vida somente favores, sem a lembrança de multiplicar as bênçãos que a existência oferece e se encontram ao alcance de todas as mãos.

   Viver por viver é fenómeno da imposição orgânica, da função vegetativa. Ao homem, dotado, como se encontra, da capacidade de raciocinar e crer, discernir e pensar na direcção do bem, os impositivos da construção da fraternidade são impostergáveis.

   Diante da massa de sofredores e aflitos, que enxameiam em toda a parte, o apelo do serviço nobre se faz indefectível. No entanto, as religiões ditas cristãs, do passado, permitindo a dolorosa “exploração do homem pelo homem”, e cultivando-a mesmo até à exorbitância, mediante o braço escravo, favorecendo a escravidão humana e dela se beneficiando, são, em verdade, as grandes responsáveis pela desagregação moral e pela ignorância que se estribava na selvageria dos princípios vigentes, em que aos nobres se facultavam as práticas de todas as misérias morais, facilmente perdoadas a peso de ouro. Isentos do trabalho, que lhes seria vergonhoso, declinavam-se os da nobreza ao cultivo da frivolidade e da rapina, mantendo tais religiões a fé nos espíritos à força das armas ou à força do fanatismo, do terror, enclausurando Deus sob suas abóbadas e absides, em nepotismo violento e demorados, de cujos efeitos ainda hoje sofre a Humanidade… Todos os erros e crimes podiam ser resgatados pelo ouro ou abonados mediante a confissão auricular, em doblez de comportamento ante os mesmos erros perpetrados pelos pobres e infelizes da Terra – aqueles para os quais viera Jesus…

   Ora, sem o respaldo de boas obras, enquanto não fosse melhor nem pior do que os seus pares, o duque, antes mesmo de libertar-se das viciações do invólucro carnal, que se apagam lentamente, à medida que os tecidos orgânicos são consumidos no túmulo – e se demoram por tempo dilatado naqueles que transformaram o corpo em carne de paixões, ou que fizeram do veículo material instrumento de exploração, fonte de cumplicidade e de que se impregnaram; casos em que tal libertação somente pode ocorrer após novo mergulho na carne, em outro processo reencarnatório, que se poderá repetir por diversas vezes, como impositivo de libertação da consciência ultrajada –, foi arrastado pela mente desalinhada do filho adoptivo à visão da tragédia que o enleou à rebeldia e, consequentemente, ao ódio – teia cruel em que se debatem até à exaustão os que lhe são vítimas indefesas.

   Não obstante o desvelo da esposa desencarnada, portadora de valiosos títulos de benemerência pessoal, que colocava à disposição do consorte, era-lhe imperioso vencer o teste de resistência ao mal, desde que os vínculos que o atavam, por antipatia recíproca, a Girólamo, provinham de obscuro passado, que convinha superar e vencer.

   A ascensão é sempre trabalho individual, de sacrifício, de incomparável renunciação, que todos nos devemos impor. Embora o auxílio que recebemos da Vida, o esforço nos pertence e não o podemos transferir. A plântula, atraída pelo sol e sustentada pela terra fértil, faz-se majestosa árvore milímetro a milímetro, sofrendo as intempéries e os insectos, os animais e os ventos, até atingir a própria grandeza. Assim também o espírito humano.

   Para a esposa afervorada, as dores supremas do idolatrado eram-lhe, igualmente, dores insuperáveis. Somente o refúgio na oração e a certeza de que Deus a tudo provê lhe davam suficientes forças e energia para continuar ao seu lado, sem descoroçoamento, evitando que ele fosse arrastado pelas hordas dos Espíritos odientos, que pululam sempre em redor dos incautos, em colónias infernais, nas quais os suplícios infligidos superam todo o romantismo trágico das lendas…

   Nem Homero, nem Virgílio, nem Dante conseguiram, com todo o estilo imponente de inspirados, traduzir os sofrimentos íntimos dos desgraçados que caem nessas regiões, em que a consciência se transforma no látego da justiça e da verdade… Nem o Letes, nem o Estige, nem o Tártaro, nem o “lago de fogo e enxofre” do Apocalipse, nem aqueles vermes a que se refere Isaías, que formigam eternamente sobre os cadáveres do Tofel”…

   Santa Teresa vislumbrou-lhes os pórticos, nos transes memoráveis, na sua cela de Ávila…

   As lendas narram os suplícios individuais no “rochedo do Sísifo”, no “tonel das Danaides” e na “roda de Íxion”… naquelas regiões em que os infelizes se chafurdam e se rebolcam, gemem sem consolo e padecem sem esperança, por longo tempo… e não dizem tudo.

   O carinho da afortunada esposa impedia-o de sintonizar-se, pelo ódio, com esses sequazes da impiedade, ser-lhes vítima inerme, não podendo, todavia, impedir que o caminho a seguir, na paisagem íntima, fosse o de sua livre escolha.

   Assim, a sua atormentada sombra acompanhava o hediondo sobrinho
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 5 ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA (fragmento 1 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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