Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 23 de junho de 2020

o grande desconhecido ~


~ a trama de acções e reacções na vida humana

Problema intrigante para muita gente é o das acções e reacções dos indivíduos e dos grupos humanos em face da teoria do livre-arbítrio. Há quem não consiga entender essa duplicidade contraditória, perguntando como podemos ser responsáveis por actos que já estavam determinados no nosso destino. Fala-se no Karma, palavra indiana de origem sânscrita, como de um fatalismo absoluto a que ninguém escapa. A palavra Karma não pertence à terminologia espírita, mas infiltrou-se no meio espírita, através das correntes espiritualistas de origem indiana por dois motivos: o seu aspecto misterioso e a vantagem de reduzir ao mínimo a expressão lei de acção e reacção. Não há nada de prejudicial nesta adaptação prática de uma palavra estranha, cujo conceito se adapta perfeitamente à expressão espírita. O prejuízo aparece quando certas pessoas pretendem que a palavra mantenha entre nós o seu significado conceitual de origem, modificando o sentido do conceito doutrinário. Segundo o Espiritismo, a acção e reacção dependem da consciência. A responsabilidade humana decorre das exigências conscienciais e está sempre na razão directa do grau de desenvolvimento consciencial das criaturas. Por outro lado, esse desenvolvimento depende das condições de liberdade e do grau de opção de que as criaturas dispõem. Justamente por isso o problema, que parece simples à primeira vista, torna-se bastante complexo quando o examinamos.

Nas fases inferiores da evolução, em que o princípio inteligente passa por acções e reacções destinadas a desenvolver as suas potencialidades, a acção da lei é natural e automática. Não existe ainda a consciência individual colectiva responsável; nas fases seguintes, até ao plano dos animais superiores e dos antropóides, a consciência está ainda em formação; mas ao iniciar-se a humanização, quando o espírito recebe, segundo a expressão bela de A Génese, de Kardec – quando Deus põe o seu selo na fronte do indivíduo, com a auréola da Razão – ele e o grupo começam a assumir a responsabilidade dos seus actos e pensamentos. Este princípio não se refere apenas a essas fases iniciais, mas estende-se a todo o desenvolvimento humano, como vemos em diversas passagens evangélicas, como na resposta de Jesus aos fariseus: “Até agora disseste não saber e não tinhas pecado, mas agora dizes saber e subsiste o vosso pecado.” E como no caso da mulher adultera, em que ninguém atirou a primeira pedra para a sua lapidação. Dessa maneira, parece-nos fácil a compreensão do problema. Quem faz, sabendo que faz, é responsável pelo que fez. Quem faz por instinto, automatismo, compulsão inconsciente ou condicionamento social não tem responsabilidade pelo que fez ou pelo menos tem a sua responsabilidade atenuada. Por outro lado, as compulsões determinadas pelo passado nem sempre são fatais, podendo ser atenuadas ou mesmo eliminadas pelo comportamento favorável dos responsáveis na vida actual. Dessa maneira, não há contradição, mas sequência e equilíbrio entre o fatalismo das consequências anteriores e a liberdade actual do indivíduo ou grupo. E a própria responsabilidade colectiva não é massiva, distribuindo-se o efeito na medida exacta das responsabilidades individuais de cada um dos seus componentes. Há ainda o problema do fatalismo voluntário, decorrente do pedido de espíritos culpados de passarem pelo que fizeram aos outros. Nesses casos, a consciência pesada do indivíduo ou do grupo só pode aliviar-se com a auto-imolação dos culpados. Com isso desaparece a falsa teoria da Ira de Deus e da vingança divina provinda de épocas de obscurantismo e de concepção extremamente antropomórfica de Deus. A Justiça Divina, segundo a concepção espírita, não é ditada por um tribunal remoto e de tipo humano, mas exclusivamente pela consciência do réu. É ele mesmo quem se condena, no tribunal especial instalado na sua consciência. Por isso, enquanto essa consciência não está suficientemente desenvolvida, a punição tarda, mas quando ela atinge o grau necessário de responsabilidade a punição manifesta-se de maneira rigorosa.

Como pode uma criança inocente, pergunta-se às vezes, ser condenada por Deus a morrer esmagada num acidente? Primeiro temos de lembrar que a criança não é inocente, mas está vestida com a roupagem da inocência, como observou Kardec (i). Depois, é preciso lembrar que o homem responsável pelo acto de brutalidade em que esmagou uma criança no passado, sob o amparo da legislação humana, sente a necessidade de sofrer uma violência correspondente, para livrar a sua consciência do peso que a esmaga e que o impede de continuar a avançar na sua evolução. Os familiares da criança são co-participantes do crime do passado e pagam a sua cota de responsabilidade com o mesmo fim de se libertarem. Aquilo, pois, que parece uma atrocidade divina, não passa de uma imolação em grupo, determinada pelas próprias consciências culpadas. Mas há também imolações voluntárias e sem culpa que as justifique, pedidas por espíritos que desejam socorrer criaturas amadas que se afundam nas ilusões da vida material, necessitando de um choque profundo que as arranque do caminho do erro, onde acumulam consequências dolorosas para si mesmas. São actos sublimes de abnegação e de amor, que elevam o espírito abnegado e abrem novas perspectivas para os que sofreram o que, na nossa ignorância, chamamos desgraça determinada pela impiedade divina. Os responsáveis pelo acidente responderão por sua culpa no tribunal das suas próprias consciências.

Os Espíritos falam em contabilidade divina, em registos e ficheiros especiais do mundo espiritual, para nos darem uma ideia humana da Justiça Suprema, mas essa Justiça não precisa dos nossos recursos inseguros e precários. A mecânica de acções e reacções é processada subjectivamente em cada um de nós e o ficheiro de cada indivíduo está visível nos registos da memória de cada um, inscritas de maneira viva e ardente nos arquivos da consciência subliminar (subconsciente) a que se referia Frederic Myers. Não há organização mais perfeita e infalível do que essa. A misericórdia divina manifesta-se nas intervenções consoladoras e nos socorros dispensados aos sofredores para que possam suportar os seus pesados resgates. Mas por quê toda essa complicada engrenagem, se Deus é omnipotente e omnisciente? Não poderia Ele, no seu absolutismo total, livrar as criaturas desse trânsito penoso pelos caminhos da evolução, fazendo-as logo perfeitas em acto? Essa objecção comum, provinda dos desesperados ou dos materialistas, provêm da ideia falsa do mundo como uma realidade mágica, produzida por Deus no simples acto oral do fiat (i). A complexíssima estrutura da realidade, nas suas múltiplas dimensões cósmicas, devia ser suficiente para nos mostrar quanto ainda estamos longe de compreender Deus. Certamente não seriamos nós, criaturas do seu amor, em fase embrionária de desenvolvimento espiritual que iríamos perceber agora o que Ele sabe desde todos os tempos. Temos de rever os nossos ingénuos conceitos de Deus, gerados pela nossa pretensão e as nossas superstições. Se Deus pudesse fazer tudo mais fácil, com a destreza inconsequente de um malabarista que tira os coelhos da cartola, é evidente que já seriamos há muito tempo anjos, arcanjos e serafins, revoando felizes e inúteis nas regiões celestiais. Indagar como e por que motivo Deus não age como um malabarista é simplesmente revelar a extensão da nossa ignorância. Como podemos conhecer os problemas divinos, se ainda não conhecemos sequer os humanos?

Mas podemos imaginar o seguinte, a partir de certas concepções contemporâneas, como a teoria do físico inglês Dirac sabre o oceano de electrões livres em que o Cosmos estaria mergulhado, a da luz infravermelha de que o Universo teria surgido, segundo os físicos russos, a teoria do Deus-Éter, de Ernesto Bozzano, e, por fim, a que nos parece mais aceitável, a tese de Gustave Geley, ex-presidente do Instituto de Metapsíquica de Paris, sobre o dínamo-psiquismo-inconsciente que impulsiona todas as coisas do inconsciente ao consciente, sendo este o título do seu livro a respeito. Deus poderia ser interpretado, à luz dessa teoria, como a Unidade no Inefável da intuição pitagórica ou o Eterno Existente e Incriado da concepção budista. O dínamo-psiquismo de Geley explicaria, no caso, o estremecimento inexplicável da Unidade que desencadeou a Década, estruturando o Universo. O dínamo-psiquismo-inconsciente de uma realidade estática teria atingido o consciente, num tempo remoto em que a Consciência Única e Suprema surgiria na solidão do Caos, gerando por sua determinação consciente e a sua vontade a estrutura do Cosmos, com todas as leis que o regem. Consciência Única e Suprema, seria a Inteligência Absoluta da concepção espírita, criadora de todas as coisas e de todos os seres. Essa Ideia de Deus supriria as lacunas lógicas do processo da Criação, conservando-lhe todos os atributos. Ao mesmo tempo, a mitologia antropomórfica e absurda do Deus das igrejas desapareceria, sendo substituída por uma hipótese científica de força e matéria unificadas na mão de uma Consciência Cósmica não pessoal. Claro que esta não seria a solução do problema que ninguém pode resolver por conta própria, mas uma tentativa de equação nas bases científicas do nosso conhecimento actual. Resta sempre uma dúvida insolúvel. Se Deus se realizou na evolução comum de todas as coisas e seres, quem estabeleceu essa lei evolutiva e quem criou, antes de Deus o Inefável e o dínamo-psiquismo-inconsciente?

A questão é solipsistatautológica, girando sempre em volta de um ponto único de que não podemos sair. O que prova a nossa total impossibilidade, no nosso estágio evolutivo actual, de conseguir resolvê-la. E o Espiritismo coloca-a nos devidos termos, ao dizer que só chegaremos à sua solução quando avançarmos o suficiente na escala evolutiva. Temos de subir a planos ainda muito distantes de nós para chegarmos a vislumbrar a verdade a respeito. De qualquer maneira, entretanto, temos de colocá-la, para mostrar que o Espiritismo não endossa as absurdas concepções teológicas, nem os mistérios absolutos que regam a percepção dos enigmas metafísicos. Deus espera a nossa maturação espiritual para nos revelar o que agora não podemos entender. Somos filhos e herdeiros de Deus e toda a Verdade nos espera nas supremas dimensões da Realidade Universal, de que conhecemos apenas uma reduzida parcela. Por outro lado, não podemos admitir que, a pretexto da nossa impotência actual, os supostos agraciados com uma sabedoria infusa nos imponham como verdades reveladas as suas conclusões dogmáticas sobre problemas ainda não concluídos.

A posição espírita é a única aceitável actualmente: Deus existe como a Causa Inteligente do efeito inteligente que é o Todo Universal, e por este efeito podemos avaliar a grandeza da Causa. Esta é a conclusão a que podemos chegar e a que Kardec chegou muito antes de podermos dispor dos recursos actuais das Ciências.

A existência de Deus é aceite como a maior e mais poderosa realidade com que nos defrontamos e que não podemos negar sem cairmos na situação ilógica de quem pretende negar a evidência. A colocação do problema por Kardec, baseado nos diálogos com os Espíritos Superiores, prova ao mesmo tempo a grandeza conceptual do Espiritismo, a firme posição científica e filosófica do Codificador, a elevação intelecto-moral dos Espíritos que o assistiram e a capacidade espírita de enfrentar racionalmente todos os problemas do homem e do mundo. Graças a isso, o Espiritismo se apresenta no nosso tempo como aquela síntese superior do Conhecimento Humano a que Léon Denis se referiu em O Génio Céltico e o Mundo Invisível (*).

A trama das acções e reacções na vida humana, que determina a extrema variedade dos destinos individuais e colectivos, já não pode, diante dos princípios comprovados da doutrina, ser considerada como ocorrência de factores ocasionais, aleatórios, que pudessem escapar das leis naturais que regem a totalidade cósmica em todas as suas minúcias, desde as simples amebas até às galáxias do Infinito. A ordem rigorosa dos eventos em todos os planos da realidade, as supostas lacunas que a pesquisa científica preenche, mais hoje, mais amanhã, descobrindo que pertencem a conexões ainda não conhecidas, as particularidades que confirmam a existência de uma estrutura subtil regendo acções e movimentos por toda a parte, evidenciam a presença de uma inteligência vigilante e atenta. A Cibernética e a Biónica demonstraram quanto temos de aprender com a Natureza no tocante aos organismos animais. Seria estranho que nessa maravilhosa estrutura macro e micro refinada, as acções e reacções da vida humana fossem esquecidas à margem. Por outro lado, o livre-arbítrio do homem não é apenas resguardado, mas também protegido e incentivado pelas responsabilidades que sobre ele se acumulam sem cessar. Tudo é importante e significativo no caleidoscópio universal. Cada acção, sentimento, pensamento e anseio das criaturas humanas pesa na balança de todos os destinos. E isso comprova-se diariamente na vida particular e na vida colectiva dos homens.

Não vivemos por viver, mas para existir na transcendência (i).

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(*) "O Espiritismo é o maior e mais solene movimento do pensamento que se produziu desde o aparecimento do Cristianismo. Não somente pelo conjunto dos seus fenómenos, ele nos traz a prova da sobrevivência, mas, sob o ponto de vista filosófico, as suas consequências são mais grandiosas. Com ele, o horizonte se aclara, o objectivo da vida torna-se preciso, a concepção do Universo e das suas leis aumentam, o pessimismo sombrio se esvaece para dar lugar à confiança, à fé em destinos melhores." in Léon Denis O Génio Céltico e o Mundo Invisível


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XV – A Trama de Acções e Reacções na Vida Humana, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

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