~ a trama de acções e reacções na vida humana
Problema intrigante para muita gente é o das acções e
reacções dos indivíduos e dos grupos humanos em face da teoria do livre-arbítrio.
Há quem não consiga entender essa duplicidade contraditória, perguntando como
podemos ser responsáveis por actos que já estavam determinados no nosso
destino. Fala-se no Karma, palavra indiana de origem sânscrita, como de um
fatalismo absoluto a que ninguém escapa. A palavra Karma não
pertence à terminologia espírita, mas infiltrou-se no meio espírita, através
das correntes espiritualistas de origem indiana por dois motivos: o seu aspecto
misterioso e a vantagem de reduzir ao mínimo a expressão lei de
acção e reacção. Não há nada de prejudicial nesta adaptação prática de
uma palavra estranha, cujo conceito se adapta perfeitamente à expressão
espírita. O prejuízo aparece quando certas pessoas pretendem que a palavra
mantenha entre nós o seu significado conceitual de origem, modificando o
sentido do conceito doutrinário. Segundo o Espiritismo, a acção e reacção
dependem da consciência.
A responsabilidade humana decorre das exigências conscienciais e está
sempre na razão directa do grau de desenvolvimento consciencial
das criaturas. Por outro lado, esse desenvolvimento depende das condições
de liberdade e do grau de opção de que as criaturas dispõem.
Justamente por isso o problema, que parece simples à primeira vista, torna-se
bastante complexo quando o examinamos.
Nas fases inferiores da evolução, em que o princípio
inteligente passa por acções e reacções destinadas a desenvolver
as suas potencialidades, a acção da lei é natural e automática. Não existe
ainda a consciência individual colectiva responsável; nas fases seguintes, até
ao plano dos animais superiores e dos antropóides, a consciência está ainda em
formação; mas ao iniciar-se a humanização, quando o espírito recebe, segundo a
expressão bela de A Génese, de Kardec – quando Deus põe o
seu selo na fronte do indivíduo, com a auréola da Razão – ele e o
grupo começam a assumir a responsabilidade dos
seus actos e pensamentos. Este princípio não se refere apenas a essas fases
iniciais, mas estende-se a todo o desenvolvimento humano, como vemos em
diversas passagens evangélicas, como na resposta de Jesus aos fariseus: “Até
agora disseste não saber e não tinhas pecado, mas agora dizes saber e subsiste
o vosso pecado.” E como no caso da mulher adultera, em que ninguém atirou a
primeira pedra para a sua lapidação. Dessa maneira, parece-nos fácil a
compreensão do problema. Quem faz, sabendo que faz, é responsável pelo
que fez. Quem faz por instinto, automatismo, compulsão inconsciente ou
condicionamento social não tem responsabilidade pelo que fez ou pelo menos tem
a sua responsabilidade atenuada. Por outro lado, as compulsões determinadas
pelo passado nem sempre são fatais, podendo ser atenuadas ou mesmo eliminadas
pelo comportamento favorável dos responsáveis na vida actual. Dessa maneira,
não há contradição, mas sequência e equilíbrio entre o fatalismo das
consequências anteriores e a liberdade actual do indivíduo ou
grupo. E a própria responsabilidade colectiva não é massiva, distribuindo-se
o efeito na medida exacta das responsabilidades individuais de cada um
dos seus componentes. Há ainda o problema do fatalismo voluntário,
decorrente do pedido de espíritos culpados de passarem pelo que fizeram aos
outros. Nesses casos, a consciência pesada do indivíduo ou do grupo só pode
aliviar-se com a auto-imolação dos culpados. Com isso desaparece a falsa teoria
da Ira de Deus e da vingança divina provinda de épocas de obscurantismo e de
concepção extremamente antropomórfica de
Deus. A Justiça Divina, segundo a concepção espírita, não é ditada por
um tribunal remoto e de tipo humano, mas exclusivamente pela consciência do
réu. É ele mesmo quem se condena, no tribunal especial instalado na
sua consciência.
Por isso, enquanto essa consciência não está suficientemente desenvolvida, a
punição tarda, mas quando ela atinge o grau necessário de responsabilidade a
punição manifesta-se de maneira rigorosa.
Como pode uma criança inocente, pergunta-se às vezes, ser
condenada por Deus a morrer esmagada num acidente? Primeiro temos de lembrar
que a criança não
é inocente, mas está vestida com a roupagem da inocência,
como observou Kardec (i). Depois, é preciso
lembrar que o homem responsável pelo acto de brutalidade em que esmagou uma
criança no passado, sob o amparo da legislação humana, sente a necessidade de
sofrer uma violência correspondente, para livrar a sua consciência do peso que
a esmaga e que o impede de continuar a avançar na sua evolução. Os familiares
da criança são co-participantes do
crime do passado e pagam a sua cota de responsabilidade com o mesmo fim de se
libertarem. Aquilo, pois, que parece uma atrocidade divina, não passa de uma
imolação em grupo, determinada pelas próprias consciências culpadas. Mas há também imolações voluntárias e sem culpa que as justifique, pedidas por espíritos que desejam socorrer criaturas amadas que
se afundam nas ilusões da vida material, necessitando de um choque profundo que
as arranque do caminho do erro, onde acumulam consequências dolorosas para si
mesmas. São actos
sublimes de abnegação e de amor, que elevam o espírito abnegado e
abrem novas perspectivas para os que sofreram o que, na nossa ignorância,
chamamos desgraça determinada pela impiedade divina. Os
responsáveis pelo acidente responderão por sua culpa no tribunal das suas
próprias consciências.
Os Espíritos falam em contabilidade divina, em registos e
ficheiros especiais do mundo espiritual, para nos darem uma ideia humana da
Justiça Suprema, mas essa Justiça não precisa dos nossos recursos inseguros e precários.
A mecânica de acções e reacções é processada subjectivamente em cada um de nós
e o ficheiro de cada indivíduo está visível nos registos
da memória de cada um, inscritas de maneira viva e ardente nos arquivos
da consciência subliminar (subconsciente) a que se referia Frederic
Myers. Não há organização mais perfeita e infalível do que essa. A
misericórdia divina manifesta-se nas intervenções consoladoras e nos socorros
dispensados aos sofredores para que possam suportar os seus pesados resgates. Mas
por quê toda essa complicada engrenagem, se Deus é omnipotente e omnisciente?
Não poderia Ele, no seu absolutismo total, livrar as criaturas desse trânsito
penoso pelos caminhos da evolução, fazendo-as logo perfeitas em acto? Essa
objecção comum, provinda dos desesperados ou dos materialistas, provêm da ideia
falsa do mundo como uma realidade
mágica, produzida por Deus no simples acto oral do fiat (i).
A complexíssima estrutura da realidade, nas suas múltiplas dimensões cósmicas,
devia ser suficiente para nos mostrar quanto ainda estamos longe de compreender
Deus. Certamente não seriamos nós, criaturas do seu amor, em fase embrionária
de desenvolvimento espiritual que iríamos perceber agora o que Ele sabe desde
todos os tempos. Temos de rever os nossos ingénuos conceitos de Deus,
gerados pela nossa pretensão e as nossas superstições. Se Deus pudesse
fazer tudo mais fácil, com a destreza inconsequente de um malabarista que tira
os coelhos da cartola, é evidente que já seriamos há muito tempo anjos,
arcanjos e serafins, revoando felizes
e inúteis nas regiões celestiais. Indagar como e por que motivo Deus não age
como um malabarista é simplesmente revelar a extensão da nossa ignorância. Como
podemos conhecer os problemas divinos, se ainda não conhecemos sequer os
humanos?
Mas podemos imaginar o seguinte, a partir de certas
concepções contemporâneas, como a teoria do físico inglês Dirac sabre o oceano
de electrões livres em que o Cosmos estaria mergulhado, a da luz infravermelha
de que o Universo teria surgido, segundo os físicos russos, a teoria do
Deus-Éter, de Ernesto
Bozzano, e, por fim, a que nos parece mais aceitável, a tese de Gustave Geley,
ex-presidente do Instituto de Metapsíquica de Paris, sobre o
dínamo-psiquismo-inconsciente que impulsiona todas as coisas do inconsciente
ao consciente, sendo este o título do seu livro a respeito. Deus poderia
ser interpretado, à luz dessa teoria, como a Unidade no Inefável da intuição pitagórica ou o
Eterno Existente e Incriado da concepção budista. O dínamo-psiquismo de Geley
explicaria, no caso, o estremecimento inexplicável da Unidade
que desencadeou a Década, estruturando o Universo. O
dínamo-psiquismo-inconsciente de uma realidade estática teria atingido o
consciente, num tempo remoto em que a Consciência Única e Suprema surgiria na
solidão do Caos, gerando por sua determinação consciente e a sua vontade a
estrutura do Cosmos, com todas as leis que o regem. Consciência Única e
Suprema, seria a Inteligência Absoluta da concepção espírita, criadora de todas
as coisas e de todos os seres. Essa Ideia de Deus supriria as lacunas lógicas
do processo da Criação, conservando-lhe todos os atributos. Ao mesmo tempo, a mitologia antropomórfica e
absurda do Deus das igrejas desapareceria, sendo substituída por uma hipótese
científica de força e matéria unificadas na mão de uma Consciência
Cósmica não pessoal. Claro que esta não seria a solução do problema que ninguém
pode resolver por conta própria, mas uma tentativa de equação nas bases
científicas do nosso conhecimento actual. Resta sempre uma dúvida insolúvel. Se
Deus se realizou na evolução comum de todas as coisas e seres, quem estabeleceu
essa lei evolutiva e quem criou, antes de Deus o Inefável e o
dínamo-psiquismo-inconsciente?
A questão é solipsista, tautológica, girando sempre
em volta de um ponto único de que não podemos sair. O que prova a nossa total
impossibilidade, no nosso estágio evolutivo actual, de conseguir resolvê-la. E
o Espiritismo coloca-a nos devidos termos, ao dizer que só chegaremos à sua
solução quando avançarmos o suficiente na escala evolutiva. Temos de
subir a planos ainda muito distantes de nós para chegarmos a vislumbrar a
verdade a respeito. De qualquer maneira, entretanto, temos de
colocá-la, para mostrar que o Espiritismo não endossa as absurdas concepções
teológicas, nem os mistérios absolutos que regam a percepção dos enigmas
metafísicos. Deus espera a nossa maturação espiritual
para nos revelar o que agora não podemos entender. Somos filhos e
herdeiros de Deus e toda a Verdade nos espera nas supremas dimensões da
Realidade Universal, de que conhecemos apenas uma reduzida parcela. Por outro
lado, não podemos admitir que, a pretexto da nossa impotência actual, os
supostos agraciados com uma sabedoria infusa nos imponham como verdades
reveladas as suas conclusões dogmáticas sobre problemas ainda não concluídos.
A posição espírita é a única aceitável actualmente: Deus existe
como a Causa Inteligente do efeito inteligente que é o Todo Universal, e por
este efeito podemos avaliar a grandeza da Causa. Esta é a conclusão a que
podemos chegar e a que Kardec chegou muito antes de podermos
dispor dos recursos actuais das Ciências.
A existência de Deus é aceite como a maior e mais poderosa
realidade com que nos defrontamos e que não podemos negar sem cairmos na
situação ilógica de quem pretende negar a evidência. A colocação do problema
por Kardec, baseado nos diálogos com os Espíritos Superiores, prova ao
mesmo tempo a grandeza conceptual do Espiritismo, a firme posição científica e
filosófica do Codificador, a elevação intelecto-moral dos Espíritos que o
assistiram e a capacidade espírita de enfrentar racionalmente todos os problemas
do homem e do mundo. Graças a isso, o Espiritismo se apresenta no
nosso tempo como aquela síntese superior do Conhecimento
Humano a que Léon
Denis se referiu em O Génio Céltico e o Mundo Invisível (*).
A trama das acções e reacções na vida humana, que determina
a extrema variedade dos destinos individuais e colectivos, já não pode, diante
dos princípios comprovados da doutrina, ser considerada como ocorrência de
factores ocasionais, aleatórios, que pudessem escapar das leis naturais que
regem a totalidade cósmica em
todas as suas minúcias, desde as simples amebas até às galáxias do Infinito. A
ordem rigorosa dos eventos em todos os planos da realidade, as supostas lacunas
que a pesquisa científica preenche, mais hoje, mais amanhã, descobrindo que
pertencem a conexões ainda não conhecidas, as particularidades que confirmam a
existência de uma estrutura subtil regendo acções e movimentos por toda a parte,
evidenciam a presença de uma inteligência vigilante e atenta. A Cibernética e a
Biónica demonstraram quanto temos de aprender com a Natureza no tocante aos
organismos animais. Seria estranho que nessa maravilhosa estrutura macro e
micro refinada, as acções e reacções da vida humana fossem esquecidas à margem.
Por outro lado, o livre-arbítrio do homem não é apenas
resguardado, mas também protegido e incentivado pelas responsabilidades que
sobre ele se acumulam sem cessar. Tudo é importante e significativo no
caleidoscópio universal. Cada acção, sentimento, pensamento e anseio das
criaturas humanas pesa na balança de todos os destinos. E isso comprova-se
diariamente na vida particular e na vida colectiva dos homens.
Não vivemos por viver, mas para existir na
transcendência (i).
/…
(*) "O Espiritismo é o maior e mais solene
movimento do pensamento que se produziu desde o aparecimento do
Cristianismo. Não somente pelo conjunto dos seus fenómenos, ele nos traz a
prova da sobrevivência, mas, sob o ponto de vista filosófico, as suas
consequências são mais grandiosas. Com ele, o horizonte se aclara, o objectivo
da vida torna-se preciso, a concepção do Universo e das suas leis aumentam, o pessimismo
sombrio se esvaece para dar lugar à confiança, à fé em destinos
melhores." in Léon Denis O Génio Céltico e o Mundo Invisível
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
XV – A Trama de Acções e Reacções na Vida Humana, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)
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