Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 3 de junho de 2020

agonia das religiões ~


Magia e Misticismo ~

O homem primitivo não via o mundo, mas a magia da Natureza. Não tendo ainda o pensamento desenvolvido, o raciocínio metodizado, não podia sequer conceber o mundo. Tinha mais sensações do que emoções e mais emoções do que ideias. Os seus sentimentos germinavam no plano larvar dos instintos. E os instintos animais dominavam-no, sem dar lugar aos instintos espirituais. Era mais corpo do que alma. Denizard Rivail assinala dois seres na estrutura humana: o ser do corpo e o ser do espiritual. No homem actual esses dois seres equilibram-se e a sua psicologia pode ser medida pela predominância, de um ou do outro, ou pela sua equivalência. As pessoas em que predomina o ser do corpo estão mais próximas do primitivismo. Aqueles em que os dois seres se equivalem apegam-se mais às coisas materiais e têm dificuldade em conceber a realidade do espírito. As pessoas em que predomina o ser espiritual dão mais importância às questões espirituais. As primeiras estão apegadas ao passado humano, as segundas ao pragmatismo do presente e as terceiras tendem para o futuro. Mas entre uma e a outra dessas posições evolutivas, existem numerosas variações que podem ser classificadas em fases intermediárias de múltiplas nuances. A escala espírita de “O Livro dos Espíritos” oferece-nos um quadro psicológico geral dessas talvez inumeráveis variações tipológicas.

A percepção mágica do mundo (restrita ao ambiente tribal ou do clã) levou o homem primitivo às práticas mágicas. O seu pensamento desenvolvia-se na experiência, revelando-lhe progressivamente as relações existentes entre as coisas e os seres. Podemos supô-las assim, como simples dados exemplificativos: vida-alimento, bicho-mato, peixe-água, ave-céu, fruta-árvore, flecha-caça-inimigo, homem-mulher-criança, dia-sol, noite-escuro-lua. Estas relações primárias davam-lhe a possibilidade de agir com eficiência no meio físico. Através delas ele começou a agir instintivamente no plano espiritual e nasceu a magia simpática ou simpatética, a arte incipiente de atingir o inimigo através de reproduções da sua figura em barro ou em madeira e a de evocar as forças benéficas através de símbolos a elas correspondentes. Nascia o feitiço e consequentemente o feiticeiro. E de ambos nasceriam mais tarde os ídolos, os sacramentos, os sacerdotes e as religiões com os seus rituais. Esses processos, rudimentares, arrancavam o homem da selva e do gelo lançando-o na direcção da civilização. Para um longo caminho a percorrer no aprimoramento dessas técnicas primitivas através dos milénios.

Mas os homens não estavam sós, nem abandonados a si mesmos em nenhuma dessas fases. A ideia de Deus pairava obscura sobre o fundo nebuloso de suas experiências filogenéticas e a lei de adoração levava-os a reverenciar o mistério da terra, das águas, do céu estrelado, das montanhas coroadas de nuvens. Do escuro profundo das matas surgiam o bem e o mal, as forças e os seres benéficos e maléficos. Muitos desses seres não tinham a consistência das criaturas de carne e osso. Apareciam e desapareciam como as chamas nocturnas dos fogos-de-artifício. Uns auxiliavam-nos e eram considerados deuses benfazejos. Outros ameaçavam-nos e eram os deuses malfazejos. Os espíritos bons velavam pelas tribos e orientavam os seus chefes. Os Pagés e os xanãs tinham o dom de evocá-los e consultá-los. Como nas cidades cósmicas da Grécia arcaica, de que tratou Durkheim, os homens e os deuses conviviam numa espécie de intermúndio. Essa situação perdurou nas civilizações agrárias, no ciclo das grandes civilizações orientais, no mundo clássico, gerando as religiões mitológicas com os seus oráculos e as suas pitonisas. No Judaísmo e no Cristianismo temos a sua continuidade, que pode ver-se nos textos bíblicos e evangélicos.

Já no Paganismo encontramos as práticas místicas dos chamados Mistérios, com rituais específicos para levar os iniciados à relação directa com o mundo espiritual e especialmente com Deus. No Egipto antigo e nas religiões dos impérios americanos dos astecas, dos maias e dos incas, havia a utilização de sumos vegetais os quais viriam a dar origem às drogas actuais como a mescalina e ao ácido-lisérgico, para a produção do estado de êxtase, que é o fenómeno central destas práticas. Pelo êxtase, provocado ou espontâneo, o místico desligava-se de toda a realidade sensível, do mundo material, e mergulhava no inteligível, no mundo espiritual.

O Misticismo tem as suas origens remotas no êxtase dos pagés, que no meio das selvas procuravam o contacto directo com os espíritos protectores das tribos. O pressuposto do misticismo nas eras civilizadas é a possibilidade humana de superação dos sentidos e da razão para se obter o conhecimento superior nas fontes divinas. Esse pressuposto conduz os homens a uma fuga da realidade. No Espiritismo as práticas místicas são condenadas por dois motivos fundamentais: 1º) porque o homem está no mundo para viver o mundo com o fim de desenvolver as suas potencialidades internas, na experiência da vida de relação; 2º) porque a ligação do homem com Deus se faz através do amor ao próximo, na prática da caridade (que é o amor em acção) e de maneira natural, sem a necessidade de práticas rituais ou do emprego de excitantes de qualquer espécie. As pessoas que consideram o Espiritismo como doutrina mística confundem a fenomologia mediúnica com as práticas do misticismo. Não sabem que a mediunidade – como hoje está confirmado pelas pesquisas parapsicológicas – é simplesmente uma faculdade humana natural que permite a todos o exercício da percepção extra-sensorial. O misticismo nasceu das manifestações naturais dessa faculdade e da falta de condições culturais para o seu estudo racional. A mística experiência de Deus das religiões dogmáticas depende das práticas místicas e de uma concepção anti-racional do mundo e da vida. Por isso Ranzolli propõe a limitação do termo misticismo às filosofias religiosas, substituindo-o no campo filosófico geral por expressões como irracionalismo e intuicionismo ou sentimentalismo

O Cristianismo – que os árabes chamaram religião do livro – utilizou-se, na sua origem, da mediunidade, mas a sua posição face às religiões anteriores foi nitidamente racionalista. Todos os ensinamentos de Jesus, mesmo quando ele se referia a Deus, chamando-o de Pai, são racionais. A sua condenação constante do irracionalismo judeu foi sempre seguida de explicações racionais, através de exemplos em forma de parábolas tiradas da própria vida diária do povo. Ao tratar do dogma judaico da ressurreição ele se referia claramente ao nascer de novo, usando exemplos históricos como a volta de Elias reencarnado em João Baptista. As suas referências às potencialidades divinas do homem eram exemplificadas pelos fenómenos produzidos por ele mesmo e pelos seus seguidores. Nunca falou da sua ressurreição como um privilégio, mas ligando-a à ressurreição de todos. O Apóstolo Paulo se incumbiu de formular a teoria racional da ressurreição, não da carne, mas do espírito, explicando que o corpo espiritual do homem, hoje descoberto pelas ciências como corpo-bioplásmico, é o corpo da ressurreição.

Esse racionalismo foi posteriormente prejudicado pelas influências pagãs e judaicas do misticismo, que atingiriam nas igrejas cristãs um refinamento intelectualista paradoxal, opondo o intelecto a si mesmo. Todo o esforço de Jesus no combate à mitologia foi anulado pelos teólogos, que o transformaram a ele mesmo num novo mito, – fazendo de sua natureza humana uma espécie de simples manifestação pragmática de sua divindade. O Espiritismo retoma à tradição racionalista do Cristianismo primitivo e, da mesma maneira que os antigos cristãos, prova na prática os ensinos teóricos de Jesus através das manifestações espíritas, da prova concreta das materializações e das aparições tangíveis (como a de Jesus para os apóstolos no cenáculo) dos fenómenos de voz-directa (como o da voz que soou no espaço na hora do baptismo) e dos casos pesquisáveis de reencarnação, hoje na pauta da pesquisa científica mundial. Nada disto se refere ao misticismo, a práticas místicas através de processos mágicos, de excitantes específicos e de tentativas anti-naturais de transformar o homem vivo em um morto-vivo que nega o mundo para viver como espírito desencarnado, desligado dos processos necessários da razão. O homem é deus em potência, não em acto, e não pode querer antecipar a sua actualização, fugindo aos compromissos e às experiências da vida terrena. Os seus deveres estão aqui, neste mundo, por enquanto e, as suas possibilidades de evolução, de transcendência, não se encontram na alienação, na fuga, mas na integração consciente das suas tarefas sociais.

O tempo das igrejas chegou ao fim, como chegaram os dos Mistérios na Antiguidade. Elas foram necessárias e tanto serviram como desserviram à Humanidade, revelando a sua estrutura imperfeita como a de todas as obras humanas. Em vão se arrogaram investiduras divinas. A mente humana abre-se hoje para novas dimensões e as igrejas não têm condições para acompanhá-la nesse avanço. A luta sem tréguas que sustentaram e ainda sustentam contra o Espiritismo e em especial contra a mediunidade provou a sua incapacidade para enfrentar os novos tempos. A dinâmica da concepção espírita opõe-se à mecânica ritual das igrejas como a Física moderna se opõe à Física do passado. Na proporção em que as camadas retrógradas da população terrena vão sendo afastadas do planeta, na sucessão inevitável das gerações, cresce o esvaziamento das igrejas e os seminários vão sendo fechados por falta de alunos. Foi o que aconteceu com as religiões mitológicas do mundo greco-romano. Para poderem sobreviver, as igrejas têm de diminuir os seus actos actuais, suprimindo o profissionalismo sacerdotal, as suas dogmáticas absurdas, as liturgias vazias de sentido. Antes que possam pagar um preço demasiado elevado, as forças da evolução as varrerão da face da Terra. Isto não é uma profecia espírita, é uma profecia evangélica de Jesus de Nazaré, no episódio com a mulher samaritana. Que ninguém me acuse de responsável por essa previsão que elas mesmas, as igrejas, por dois mil anos fizeram ler no Evangelho nos seus cultos sem a entenderem. Também não entenderam a questão das muitas moradas da Casa do Pai, nem a do baptismo espiritual, nem a do nascer de novo, nem a condenação das exigências rituais dos fariseus. O que podem esperar ou reclamar agora?

Respeitáveis pensadores religiosos, reconhecidamente cultos, não conseguem ainda libertar-se da magia das selvas, cujos resíduos impregnam de misticismo as religiões em agoniaEsse apego impede-os de socorrer as instituições religiosas no momento crucial. Desesperados, acusam o Espiritismo e os espíritas de incapazes de compreender as subtilezas da fé e exigem provas materiais do que não é material. Chegam mesmo a considerar como profanação a pesquisa espírita dos fenómenos mediúnicos. Ou acusam o Espiritismo de práticas primitivas e confundem-no com as formas do sincretismo-religioso afro-brasileiro. O materialismo – proclamam – leva os espíritas a quererem materializar espíritos. Perdem a perspectiva cultural do nosso tempo e mergulham no passado, acusando-nos de uma posição retrógrada no campo do Espiritualismo.

As nossas ligações com a selva realmente existem e são as mesmas que constatamos nas religiões em agonia, mas há uma diferença fundamental entre a nossa posição e a delas: a reelaboração da experiência. Essa reelaboração não foi feita pelas religiões, que se limitaram a refinar as práticas selvagens e a cobri-las com o verniz da civilização. Até mesmo a tentativa de submeter a Divindade ao poder misterioso dos pagés sobrevive nos sacramentos das igrejas, dando aos sacerdotes o poder (que foi negado aos anjos) de obrigar o próprio Deus a materializar-se em substâncias materiais do culto, bem como o poder de obrigar o Espírito Santo a manifestar-se aos adeptos para o baptismo do espírito.

No Espiritismo, o que sobrevive das selvas é o fenómeno, o facto natural da manifestação dos espíritos através da mediunidade, como todos os fenómenos físicos e químicos, botânicos e biológicos ou psíquicos sobrevivem obrigatoriamente nas ciências. Mas o Espiritismo não permanece apegado às superstições da experiência selvagem; reelabora essa experiência à luz da cultura e descobre as suas leis para poder usá-las em função do progresso. A capacidade humana de conhecer não tem limites e a divisão absoluta entre espírito e matéria já foi superada nas pesquisas físicas.

O materialismo morreu por falta de matéria, como afirmou Einstein, e as religiões agonizam, como podemos ver, por falta de espírito. Há mais apego à matéria nas práticas e nos conceitos das religiões em agonia do que nos ritos selvagens, pois nestes a crença ingénua e instintiva manifestava-se naturalmente, enquanto naquelas é puro artifício, mera tentativa de racionalização psicológica de heranças atávicas.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 10 – Magia e Misticismo, 11º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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