Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


IV
O Mês de Joana d’Arc

|Maio de 1915|

   Assim como dominou o século XV, o vulto de Joana d’Arc dominará também nosso tempo. Nela e por seu intermédio se há de consumar a união de nossa pátria.

   Ainda ontem, como no tempo de Carlos VII, a França estava desunida, esfacelada por grupos políticos nascidos da cobiça e de apetites inconfessáveis. Na hora do perigo tudo se desmanchou em fumaça e se calou para permitir que o país fizesse ouvir sua voz e seus apelos aos poderes do Alto.

   Os próprios adeptos do Radicalismo e do Socialismo, que ainda combatiam Joana d’Arc no Palais-Bourbon, para ela se voltam para honrá-la.

   Em 26 de abril, o senador Fabre escrevia a Maurice Barrès: “Acabo de receber uma carta do Sr. Léon Bourgeois, onde ele me diz: Podeis contar com minha cordial adesão à festa nacional de Joana d’Arc. E acrescentava: Estão, portanto, conquistados Hervé, Clemenceau e Bourgeois. Joana d’Arc nos protege. Todos estarão connosco.”

   Vários políticos já consideram próxima a hora em que o governo, apoiando-se em todos os partidos, glorificará em Joana essa sagrada união que possibilitou a obra libertadora. Em compensação, outros afirmam que nada se pode falar, nem fazer, em homenagem a ela, enquanto os ingleses permanecerem em solo francês.

   Para assim se manifestarem é necessário bem pouco conhecer o sentimento que nossos actuais aliados dedicam a Joana d’Arc. Desde Shakespeare, eles lhe tributam uma admiração sempre crescente.

   Todos os anos, nas festas de Rouen, há uma delegação inglesa e agora, que eles estabeleceram uma de suas bases de operação nessa cidade, não deixam de manter na praça do Vieux-Marché, no mesmo lugar do suplício, braçadas de flores enlaçadas com uma faixa com as cores britânicas.

   Em 16 de maio passado, o reverendo A. Blunt, capelão da embaixada inglesa, ao colocar uma coroa aos pés da estátua equestre da Place des Pyramides, dizia:

   “Comparecemos, como membros da colónia britânica de Paris, para depositar algumas flores aos pés da estátua de Joana d’Arc, a valorosa guerreira de França. Reconhecemos que seu espírito de patriotismo, coragem e sublime abnegação anima o exército francês de hoje e estamos certos de que esse espírito o conduzirá à vitória.” 

   Há alguns dias, o grande jornal londrino The Times dedicava à memória da Virgem de Orléans um importante artigo, resumindo todo o pensamento inglês sobre esse nobre assunto:

   “Em toda a Idade Média não há história mais singela e mais grandiosa, nem tragédia mais dolorosa do que a da pobre pastora que, pela fé ardorosa, soergueu sua pátria das profundezas da humilhação e do desespero, para sofrer a mais cruel e a mais infamante das mortes pelas mãos de seus inimigos.

   A elevação e a beleza moral do carácter de Joana conquistaram o coração de todos os homens e os ingleses se lembram, com vergonha, do crime do qual ela foi vítima.

   Entretanto, não é pelo amor à pátria, nem pela coragem na luta, nem pelas visões místicas, que o mundo todo homenageia Joana d’Arc; isto lhe é devido porque, em época triste e dolorosa, ela provou, por palavras e actos, que o espírito da mulher cristã ainda estava vivo entre os humildes e os oprimidos e produzia, profusamente, incomparáveis frutos. Houve, algum dia, natureza mais recta, mais terna, mais pura e mais profundamente piedosa que a de Joana d’Arc?

   Antes mesmo que tivesse conseguido ir até ao rei e desfraldado sua bandeira, o povo, em toda parte, acreditava nela. A força de sua vontade, a elevação dos seus pensamentos e a intensidade do seu entusiasmo superaram todas as oposições.

   É delicada e complacente para com os prisioneiros, e até para os ingleses sua alma se mostra plena de piedade. Convida-os para que se juntem a ela para uma grande cruzada contra o inimigo da cristandade.

   E quando, com auxílio de alguns traidores existentes entre seus compatriotas, a fizeram cair em uma cilada e a condenaram a uma morte horrível, suas últimas palavras foram de perdão para seus algozes.”

   Um patriota francês não se expressaria melhor. É certo que Joana não odiava os ingleses e queria simplesmente colocá-los fora do território da França. Como afirma o The Times, ela pensava até em associá-los aos franceses numa grandiosa empresa que ela tomaria a seu cargo e lhes escrevia:

   “Se derdes satisfação ao rei de França, ainda podereis ir em sua companhia, aonde quer que os franceses realizem o mais belo feito como jamais foi realizado pela cristandade.”
/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IV – O Mês de Joana d’Arc, 2 de 3 12º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

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