Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Segunda narrativa – I

Refluum temporis
(a
maré
vazante
do
tempo)
…/


   Quœrens – Tive também a ideia de que podia ser assim. Mas, não vos foi fácil ter a certeza do acontecimento e constatar se tratava da Terra, ou se outro astro se achava sob vossa vista, examinando a respectiva posição astronómica?

   Lúmen – Foi o que fiz sem demora, e tal exame me confirmou a minha ideia. O astro onde acabava de aperceber quatro factos análogos a outros tantos acontecimentos terrestres, porém inversos, não me pareceu estar na mesma posição primitiva. A pequena constelação do Altar não existia mais e desse lado onde vos recordais me aparecera a Terra no meu primeiro episódio havia um polígono irregular de estrelas desconhecidas. Fiquei, assim, na persuasão de que não era a nossa Terra sob o meu olhar; a dúvida não me foi mais possível e persuadi-me de haver por terreno de observação um mundo muito mais curioso, de vez que não era a Terra, e sua história parecia representar, em ordem inversa, a história do nosso mundo.

   Alguns acontecimentos, é verdade, não me pareceram ter o respectivo correspondente na Terra; mas, em geral, a coincidência foi muito notável, tanto mais quanto meu desapreço aos falsos instituidores da guerra me havia feito esperar que tal burlesca e desalmada loucura não existisse em outros mundos e que, ao contrário, a maior parte dos sucessos por mim testemunhados eram ainda combates ou preparativos.

   Depois de uma batalha que me pareceu muito semelhante à de Waterloo, vi a das Pirâmides. Um sósia de Napoleão imperador se tornara Primeiro Cônsul e vi a Revolução suceder ao Consulado. Algum tempo decorrido, notei a praça do castelo de Versalhes repleta de carruagens de luto e, em um atalho aberto de Ville-d'Avray, reconheci o lento caminhar do botânico João Jaques Rousseau, o qual, sem dúvida, nesse momento filosofava sobre a morte de Luís XV. O acontecimento que mais feriu minha atenção foi, em seguida, uma das festas de gala do começo do reino de Luís XV, dignas sucessoras das da Regência, nas quais o Erário da França escorria em pérolas de água por entre os dedos de três ou quatro cortesãs adoradas. Vi Voltaire, em gorro de algodão, em seu parque de Ferney, e mais tarde Bossuet passeando no pequeno terraço do seu palácio episcopal de Meaux, não distante da colina cortada em nossos dias pela via-férrea, mas não distingui o menor traço desta indústria. Nessa mesma sucessão de acontecimentos, via os caminhos repletos de carros-diligência, e sobre os mares vastos navios de vela. O vapor havia desaparecido, com todas as usinas que move em nossos dias. O telégrafo estava aniquilado e bem assim todas as aplicações da electricidade. Os balões, que se tinham mostrado de tempos a tempos em meu campo de observação se haviam perdido e o último que eu vira fora o globo informe aerizado em Annonay, pelos irmãos Montgolfier, em presença dos Estados-Gerais. A face do mundo estava transformada. Paris, Lião, Marselha, o Havre, Versalhes notadamente, estavam irreconhecíveis. Aquelas primeiras haviam perdido seu imenso movimento; a última tinha ganhado um brilho incomparável. Eu me havia formado uma ideia incompleta do esplendor realengo das festas de Versalhes; estava agora satisfeito por assistir a uma, e não foi sem interesse que reconheci Luís XV, em pessoa, no esplêndido terraço do Oeste, rodeado de mil senhores enfitados. Era de tarde; os derradeiros fulgores de um ardente Sol se reverberavam na fachada palaciana e casais galantes desciam gravemente os degraus da escadaria de mármore, ou se inclinavam rumo das alamedas silenciosas e sombrias. Minha vista se limitava de preferência sobre a França, ou pelo menos na região do mundo desconhecido que me representava a França, porque é agradável estar longe, bastante longe da sua pátria, e nela sonhar sempre, deixando que, a cada vez, a ela retorne o pensamento com júbilo. Não creiais que as almas desencarnadas sejam desdenhosas, indiferentes, libertas de toda recordação; teríamos assim bem triste existência. Não. Guardamos a faculdade de nos recordar, e nosso coração não se absorve na vida do Espírito. Foi, pois, com um sentimento de júbilo íntimo (do qual vos deixo a apreciação) que revi toda a História da nossa França desenrolar-se, qual se as fases se houvessem positivado em uma ordem inversa. Depois da unificação do povo, vi a soberania de um potentado. Após isso, a feudalidade dos príncipes Mazarin, Richelieu, Luís XIII e Henrique IV apareceram-me em Saint-Germain. Os Bourbons e os Guises recomeçaram para mim as suas escaramuças; acreditei distinguir a matança de São Bartolomeu.

   Alguns factos particulares da história de nossas províncias reapareceram, tal, por exemplo, uma cena de diabruras de Chaumont, que tive ocasião de observar diante da igreja de S. João, e o massacre dos Protestantes em Vassy. Comédia humana! muitas vezes tragédia! Subitamente, vi erigir-se no Espaço o cometa magnífico, em forma de sabre, de 1577. Em um plano brilhantemente adornado, divisei Francisco I e Carlos V saudando-se. Luís XI me apareceu sobre um terraço da Bastilha, acompanhado das suas duas sombras pandilheiras. Mais tarde, meus olhos, voltando-se para uma praça de Ruão, distinguiram forte fumarada e chamas; no meio delas, consumia-se o corpo de Joana d'Arc, a virgem de Orleães.

   Na persuasão de que esse mundo era a exacta contra-partida da Terra, eu adivinhava de antemão os acontecimentos que ia ver. Assim, quando, depois de haver avistado S. Luís, que morria sobre cinzas perto de Tunis, assisti à oitava cruzada, depois à terceira (onde reconheci Frederico Barbaroxa, com a sua barba), e ainda à primeira (na qual Pedro, o Eremita, e Godofredo me recordaram o Tasso), senti medíocre admiração. Desejei, em seguida, ver, sucessivamente, Hugo Capeto encabeçar uma procissão em pluvial de oficiante; o concílio de Tauriacum decidir que o julgamento de Deus vai pronunciar-se na batalha de Fontanet, e Carlos, o Calvo, fazer massacrar 100.000 homens e toda a nobreza Merovíngia; Carlos Magno coroado em Roma, a guerra contra os Saxões e Lombardos; Carlo Martel martelando os sarracenos; o rei Dagoberto fazendo edificar a abadia de Saint-Denis, de igual modo que vi o papa Alexandre III colocar a primeira pedra de Notre Dame; Brunehaut (ou Brunhilde) arrastado, nu, pelas ruas, preso a um cavalo; os Visigodos, os Vândalos, os Ostrogodos, Clóvis, Meroveu (ou Merowig), aparecer no país dos Salienos – em uma palavra, as origens mesmas da história de França, desenrolando-se em sentido retrospectivo da sua sucessão –, foi efectivamente o que ocorreu. Muitas questões históricas de grande importância, que haviam permanecido obscuras até então, foram tornadas visíveis para mim. Assim, constatei, entre outras, que os franceses são originários da margem direita do Reno e que os alemães nenhuma razão têm para disputar esse rio e principalmente a margem esquerda.

   Existia em verdade, para mim, um interesse maior – que eu não saberia expressar – em assistir às particularidades de acontecimentos dos quais possuía vaga ideia formada através dos ecos não raro enganadores da História, e de visitar países transformados desde muito tempo. A vasta e brilhante capital da civilização moderna havia rapidamente envelhecido ao nível das cidades ordinárias, embora bastilhada de torres ameadas. Admirei alternativamente a bela cidade do século XV, os tipos curiosos da sua arquitectura, a célebre torre de Nesle; os vastos mosteiros de Saint-Germain-des-Prés. Lá, onde flore agora o jardim da Torre Saint-Jacques, reconheci o pátio sombrio do alquimista Nicolau Flamel. Os telhados redondos e pontudos ofereciam o aspecto bizarro de cogumelos nas bordas de um rio. Depois, essa aparência feudal havia desaparecido, para abrir lugar a um pesado castelo erguido no meio do Sena, rodeado de algumas choupanas, e, enfim, a uma verdadeira planície onde se distinguiam apenas algumas choças de selvagens. Paris não existia mais, e o Sena rolava suas águas silenciosas por entre ervas e salgueiros. Ao mesmo tempo, salientei que dessa civilização o foco se havia deslocado e descido rumo ao Sul. Devo confessar-vos, meu amigo, em circunstância alguma experimentou minha alma um sentimento assim de tão vivo júbilo, quanto no momento em que me foi dado ver a Roma dos Césares em seu esplendor. Era um dia de triunfo e, sem dúvida, sob os principados sírios, pois, no meio das magnificências exteriores, de carros luzidos, de auriflamas de púrpura, duma assembleia de damas elegantes e de ministros de ribalta, distingui um imperador molemente estendido em amplo e dourado carro, inteiramente vestido de seda clara e coberta de pedrarias, de ornamentos de ouro e prata refulgindo sob o Sol de meio-dia. Só poderia ser Heliogábalo, o sacerdote do Sol. O Coliseu, o templo de Antino, os arcos de triunfo e a coluna Trajano estavam erguidos, e Roma se encontrava em toda a sua beleza arqueológica, derradeira beleza que era apenas uma cena de teatro para coroados. Algo mais tarde, assisti à grandiosa erupção do Vesúvio, que sepultou Herculano e Pompéia.

   Por um momento vi Roma em chamas e, embora não haja podido destacar Nero no seu terraço, persuadi-me de que tinha sob meu olhar o incêndio do ano de 64 e o sinal das perseguições cristãs. Algumas horas decorridas, minha atenção estava presa em examinar os vastos jardins de Tibério, em Capreia (hoje Capri), e acabava de ver esse imperador chegar perto do tabuleiro de rosas, rodeado de um grupo de mulheres nuas, quando, em consequência da rotação da Terra, a Judéia veio colocar-se sob minhas vistas, que adivinharam imediatamente Jerusalém. Jesus, carregando sua pesada cruz, subia custosamente a colina do Gólgota, escoltado por uma tropa de soldados e seguido pela populaça de judeus. Esse espectáculo é um daqueles que jamais esquecerei. Foi para mim bem diferente do que para os assistentes de então, pois a glória futura (e contudo passada) da Igreja cristã se desenrolava, a meu ver, no nível de uma coroação do divino sacrifício... Não insisto; compreendeis quais os diversos sentimentos que agitaram minha alma nesta observação suprema...

   Revindo mais tarde rumo a Roma, reconheci Júlio César estendido sobre a sua pira, tendo à cabeceira António, cuja mão esquerda segurava, creio, um rolo de papiro. Os conjurados desciam apressadamente às bordas do Tibre. Remontando, por legítima curiosidade, à vida de Júlio César, eu o reencontrei com Vercingétorix no meio dos Gauleses, e pude constatar que de todas as hipóteses dos nossos contemporâneos a respeito de Alésia, nenhuma acerta com o lugar verdadeiro, atendendo-se a que essa fortaleza estava situado sobre...
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Segunda narrativa – I (2 de 3) fragmento global 12º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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