ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA ~
Enquanto tramitavam os documentos para a posse da casa
senhorial, Girólamo conseguiu, graças à interferência do novo benfeitor, o
Bispo de Siena, permissão das autoridades para organizar a vida no Palácio di
Bicci, a fim de que os danos fossem diminuídos. Desejava, porém, fazer um
balanço de todos os valores, obras de arte e moedas guardados nas arcas de
mogno e cânfora, nos cofres de ferro e bronze.
Como preço da gratidão imediata, em gesto de munificiência,
ofereceu ao Senhor Bispo e ao notário régias bolsas de moedas de ouro, selando
neles, com o suborno, o acto da cumplicidade no processo de espoliação
vergonhosa dos bens que agora esbanjava.
Menos de um ano transcorrido, estava de posse das terras e
da herdade di Bicci, nome que conservou para evitar rumores mais danosos e
parecer grato à providência e generosidade do duque extinto.
Através da interferência, ainda, do benfeitor, bem
projectado na situação religiosa, comprou o título de Conde e recebeu uma
comenda pelos relevantes serviços de beneficência prestados à Igreja de Siena…
Na Fontana Gaia,
ao lado de amigos, deixava que o triunfo lhe sorrisse nos lábios e o capitoso
licor da bajulação fosse libado largamente, em noites de orgia e depravação em
que mais se avolumavam os pesos da irresponsabilidade. Mulheres jovens,
doidivanas, e serventes humildes não lhe escapavam à lábia loquaz, nem à
sedução, para serem abandonadas vilmente, logo depois, em esconsos antros de
perversão. A embriaguez dos sentidos crescia na razão directa das próprias
dissipações, preparando-lhe o porvir sombrio a carregar, imensurável. Ao mesmo
tempo, as famílias mais condignas de Siena, ignorando-lhe ou fingindo
ignorar-lhe a leviandade, recebiam-no festivamente, acalentando o desejo de
consorciá-lo com alguma das suas filhas, de modo a terem assegurados o
património e o beneficio do título que, então, seria adicionado às honrarias
que já possuíssem.
Ao primeiro lustro da desencarnação do Senhor di Bicci,
Girólamo, experimentando o apogeu dos triunfos mundanos, preparava-se para se
consorciar com a jovem filha do Cavaleiro e Conde di Castaldi.
Nesse período, toda a Toscana gemia sob o tacão de um
soberano longínquo.
Não apenas a Toscana experimentava o opróbrio, como quase
toda a Itália sofria o talante de um segundo ramo da Casa de Áustria-Lorena.
Antes, a Toscana fora vítima das circunstâncias infelizes dos países que a
disputavam: Espanha, França, Alemanha e Áustria. Dominada primeiramente por
tropas de Espanha (1735), os conquistadores resolveram passá-la ao Duque de
Lorena, que se acreditava lesado na troca da Toscana pela Lorena, fazendo
exigências colossais. Assim, toda ela, Milão, as Duas Sicílias. Lombardia,
Veneza e Génova se encontravam em mãos estrangeiras, que se digladiavam em
contínuas lutas de morticínio e vergonha.
João Gastão, o descendente de Cosme III, era já um homem
envelhecido e gasto para comandar o poder. As suas resoluções eram tomadas após
ouvir o criado de quarto, que aliciava os comparsas para o seu prazer,
tornando-se, também, Ministro de Estado, e deixando aos demais Ministros todos
os negócios, para se entregar, sob a direcção de Julião Dami, o seu serviçal, a
toda sorte de perversões e gozos. Desse modo, Viena obrigou-o a assinar o tratado
através do qual a Áustria dispunha de todos os seus Estados, sem mesmo ter sido
ouvido ou consultado na transacção.
Os bens alodiais dos Médici, por sua vez, foram dominados
desde quando João Gastão ainda estava com vida e escutava os fidalgos da sua
corte discutirem abertamente a sua sucessão, o que não ocorreu, graças à
dominação de Lorena. Novas inquietações surgiram em 1742, por ocasião da
sucessão na Áustria, o que veio abalar enormemente os Estados Italianos, cujo
sentimento de pátria vibrava em muitos desses Estados, especialmente na
Toscana, em Milão em Génova…
Ora, Maria Teresa necessitava de braços em armas para as
lutas contra o Milanês, e fez
proclamar a convocação de jovens, tendo-se escapado Girólamo graças à posição e
à interferência clerical. Homem de dissipações e volúpias, não poderia amar à
pátria, ter o senso do valor da liberdade, dos direitos humanos, ele que era o
usurpador da paz alheia e o destruidor da liberdade e da vida do próximo.
Anteriormente, os bens do duque di Bicci, em fideicomisso, não puderam ser repartidos com os
remanescentes Médici porque aquele senhor procedia de ligação incestuosa de
Cosme III com Beatriz, sua prima, e não tivera acesso às disputas de nobreza na
família, transladando-se para Siena – fora dos muros da cidade – e conduzindo
os largos quinhões que lhe ofertara o pai, exilando-se, naturalmente, e
evitando as ligações de qualquer natureza com a família, então decadente… João
Gastão era, pois, seu meio-irmão; no entanto, não mantinham nenhuma vinculação,
considerando serem os ódios muito comuns na tradicional família. Daí, o cuidado
na elaboração do testamento pelo duque
di Bicci, para preservar os seus bens, impedindo que caíssem nas garras dos
abutres familiares, não evitando, porém, que viessem a ser consumidos por um
outro mais cruel e voraz falcão…
Sob o impacto de tais desordens emocionais e cívicas,
vivendo no meio de uma nobreza decadente e de um povo revoltado, Girólamo
aprimorava as faculdades odientas de rapinagem e malversação. Sem qualquer
linhagem, senão a orientação recebida da tia, sabia-se resultado do amor
ilícito de uma aventureira e do irmão da duquesa,
sendo amparado por esta a pedido da mãe desditosa que lho entregara antes da
morte. Como se sentisse consumido pelos recalques e o surdo ódio à dignidade,
comprazia-se interiormente na sucessão de crimes de variada nomenclatura.
Com tal, património moral, recebeu em festa inesquecível, em
1750, a
jovem Beatriz, que lhe deveria partilhar a convivência e o leito, com o dever
de lhe oferecer uma prole sadia, para dar origem a novo clã.
O solar readquiriu o esplendor de outrora, ornamentado com
festões de flores abundantes e arranjos coloridos, com as flâmulas tremulando
aos ventos, destacando-se a da Madonna
Assunta e a da cidade, com a loba amamentando, bem como os pendões
altaneiros, hasteados por toda a parte, na celebração das bodas. Vieram
convidados de Siena e hóspedes de Florença, especialmente o cavaliere Dom Donato Angélico e sua
corte de folgazões, que ali permaneceram por toda uma semana. Músicos de Siena
e flautistas, clavicordistas famosos de Florença, tocadores de alaúde chegaram,
especialmente trazidos por Dom Angélico para homenagear os nubentes.
Descendente de nobre família toscana, do passado, Beatriz,
jovem prendada, era esbelta, de tez morena, olhos negros, grandes e brilhantes,
nos quais faiscavam as paixões abrasantes, tendo os cabelos castanho-escuros
sedosos e longos, verdadeiro espécime de beleza regional: um misto de anjo e de
selvagem.
Além da beleza física e da selecta educação, a noiva trouxe
largo dote em escudos de ouro, terras e objectos de arte, que foram
incorporados aos bens Cherubini, como parte preponderante da transacção
comercial do matrimónio, no qual o amor era ingrediente de categoria muito secundária.
A moça, porém, ingénua e sem qualquer experiência, deixara-se seduzir pelo
hábil conquistador, experimentando por ele imenso amor que esperava e supunha
correspondido.
Em homenagem às bodas, celebradas em palácio pelo próprio
Bispo do Duomo, convidado de honra e
padrinho-testemunha do noivo, Girólamo se fez agradável para as gentes que
habitavam as terras da herdade, através de larga distribuição de trigo, vinho e
animais, durando os festejos por quase toda uma semana, em que as fanfarras e
os acepipes jorravem nos pátios ajardinados, comemorando o acontecimento, todos
rogando bênçãos para os consortes. Foi simultaneamente procedida uma larga
doação de sementes e tecidos, por nímia deferência do noivo e dos pais da
noiva, reconhecidos à Virgem Assunta,
a protectora de Siena.
Tudo transcorreu sob os augúrios mais fecundos e não
faltaram arúspices para prognosticarem o porvir de felicidades para os nubentes
– os novos senhores da casa…
Girólamo consumava a parte mais relevante dos seus planos de
loucura e miséria moral, acalentados como em pesadelos incessantes desde quando
adquirira o uso e a posse da faculdade da razão. Eram aqueles os dias máximos
da sua ascensão e da sua glória, sob cujos alicerces corria caudaloso rio de
sangue, vergonha e desgraça…
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
5 ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA (fragmento 2 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura
de Edgar Maxence)
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