LÚMEN
Segunda
narrativa – I
Refluum temporis
(a
maré
vazante
do
tempo)
…/
Quœrens – As
revelações interrompidas pela aurora, ó Lúmen, deixaram, desde então, minha
alma ávida de penetrar mais fundo o singular mistério. De igual modo que a
criança, a quem se mostrou um fruto saboroso, deseja nele meter gulosamente os
dentes, e quando prova mais deseja, assim minha curiosidade procura novos
júbilos nos paradoxos da Natureza. É acaso temerária indiscrição submeter-vos
algumas questões complementares que meus amigos me comunicaram, desde o dia em
que os fiz participantes da nossa conversação? E posso pedir continueis a
narrativa das vossas impressões de além-Terra?
Lúmen – Não posso,
meu amigo, consentir em tal curiosidade. Embora perfeitamente disposto que seja
vosso Espírito para bem receber minhas palavras, estou persuadido, não obstante,
de que as particularidades do meu assunto não vos tocaram harmonicamente, não
tiveram todas aos vossos olhos a evidência da realidade. Acusou-se de mística a
minha narrativa. Não se compreendeu que aqui não existe romance, nem fantasia,
e sim uma verdade científica, um facto físico, demonstrável e demonstrado,
indiscutível, e que é tão positivo quanto a queda de um aerólito ou a
translação de um projéctil de canhão. O motivo que vos impediu, a vós outros,
de bem apreender a realidade do facto, reside em que o caso se desenrola fora
da Terra, numa região estranha à esfera de vossas impressões, e não acessível
aos sentidos terrestres. É natural que não compreendais (perdoai minha
franqueza, mas no mundo espiritual predomina a franqueza: os pensamentos são mesmo
visíveis). Só compreendeis o que pertence ao mundo das vossas impressões. E
porque estais propensos a ter por absolutas
as vossas ideias a respeito do Tempo e do Espaço, que são relativas, tendes o entendimento fechado às verdades que residem
fora da vossa esfera, e que não se acham em correspondência com as vossas
faculdades orgânicas terrestres. Assim, meu amigo, eu vos prestarei meritório
serviço, prosseguindo a narrativa das minhas observações extra-terráqueas.
Quœrens – Não é
por espírito de curiosidade, crede-me sinceramente, ó Lúmen, que me permito
evocar-vos do alto do mundo invisível, onde as almas superiores devem fruir
inenarráveis júbilos. Compreendi, melhor do que a vossa acusação o admite, a
grandeza do problema, e é sob a inspiração de uma avidez estudiosa que procuro
aspectos mais novos ainda do que os precedentes (se assim me posso expressar),
ou melhor, mais grandiosos e mais difíceis de compreender ainda. À força de
reflectir, cheguei a crer que quanto sabemos é nada, e o que ignoramos é tudo. Estou, pois, disposto a tudo
acolher e, por isso, vos peço: deixai-me partilhar das vossas impressões.
Lúmen – Em
verdade, meu amigo, eu vo-lo asseguro, ou não estais muito disposto a
entendê-las, ou estais. No primeiro caso, não as compreendereis; na segunda
hipótese, sereis mui crédulo e não lhes apreciareis o valor. Por isso, volto...
Quœrens – Ó meu
companheiro querido dos dias terrestres!...
Lúmen – Além de
tudo, os factos que eu teria de narrar são muito mais extraordinários do que os
precedentes.
Quœrens – Eu sou a
semelhança de Tântalo no centro do seu lago, na mesma condição dos Espíritos do
vigésimo-quarto canto do Purgatório, igual aos braços estendidos para os pomos
odorantes das Hespérides, na ânsia do desejo de Eva...
Lúmen – Algum
tempo depois da minha partida da Terra, os olhos de minha alma se voltaram
melancolicamente para esta pátria, quando atento exame sobre a intersecção do
45º grau de latitude boreal e do 35° de longitude mostrou-me um cinzento
triângulo de terra firme, acima do mar Negro, ao bordo do qual, ao oeste, um
triste grupo de pobres irmãos meus terrestres se entrematavam encarniçadamente.
Entreguei-me à meditação sobre a barbárie dessa instituição, pseudogloriosa – a
Guerra, que ainda pesa sobre vós outros –, e reconheci que nesse recanto da
Crimeia sucumbiam oitocentos mil homens, ignorando a causa do seu mútuo
massacre. Nuvens passaram sobre a Europa. Estava agora, não em Capela, mas no
Espaço, entre essa estrela e a Terra, na metade da distância de Vega, e, saído
da Terra desde algum tempo, eu me dirigia a um montão de estrelas que se
distingue, da vossa pátria, à esquerda do astro precedente. Meu pensamento, no
entanto, de tempos a tempos retornava para a Terra. Um pouco depois da
observação de que falei, meu olhar, incidindo sobre Paris, foi surpreendido ao
ver a Capital presa de uma insurreição popular. Examinando com atenção acurada,
divisei barricadas nos bulevares, próximo da Prefeitura Municipal, nas ruas
extensas, e cidadãos alvejando-se mutuamente a golpes de fuzil. A primeira ideia
que me ocorreu foi a de que uma nova revolução se processava aos meus olhos e
que Napoleão III fora derrubado do trono imperial; mas, por uma correspondência
secreta das almas, minhas vistas foram atraídas para certa barricada do arrabalde
de Santo António, na qual estava estendido o arcebispo Denis-Auguste Affre, que
eu conhecera ligeiramente. Seus olhos extintos miravam, sem ver, o céu onde me
encontrava; sua mão segurava um galho verde. Estavam, pois, ante mim os dias de
1848, e em particular o 25 de Junho. Alguns instantes (ou horas, talvez) se
escoaram, durante os quais minha imaginação e meu raciocínio buscaram, pela
ordem natural, a explicação de tal facto particular: ver 1848 depois de 1854, quando meu olhar, de
novo atraído para a Terra, assinalou uma distribuição de bandeiras tricolores,
em extensa praça da cidade de Lião. Procurando distinguir a personagem oficial
que fazia tal distribuição, consegui identificar os uniformes e recordei-me de
que, depois da ascensão de Luís Filipe, o jovem Duque de Orleães havia sido
enviado a aplacar as agitações da capital da indústria francesa. Conclui-se
disso que, após 1854 e 1848, estava
diante do meu olhar um acontecimento ocorrido em 1831. Pouco mais tarde, minha
visão incidiu sobre Paris em dia de festa. Gordo rei, de abdómen proeminente,
face rubicunda, era conduzido em caleche sumptuosa e atravessava nesse momento
a Ponte-Nova. O tempo era magnífico. Jovens vestidas de branco estavam
dispostas, qual corbelha de alvos lilases, sobre o terrapleno da ponte. Estranhos
animais, coloridos de nuançes claras, corriam ao longo de Paris. Era
evidentemente a reentrada dos Bourbons em França. Eu não teria compreendido esta última
particularidade, se não houvesse recordado que, em tal ocasião, tinham sido
lançados para os ares artísticos balões em forma de animais. Vistos do alto do
céu, pareciam correr desajeitadamente sobre os telhados das casas. Rever um
acontecimento transcorrido eu compreendia, explicando-o pelas leis da luz; mas,
rever esses eventos em sentido contrário à sua ordem real, eis o que me parecia
fantástico, e mergulhava o meu entendimento numa estupefacção crescente. No
entanto, estando os factos diante dos meus olhos, não os podia negar, e
excogitava, por isso, qual a hipótese que poderia dar conta de semelhante
singularidade.
A primeira hipótese foi esta: E sem dúvida alguma a Terra
que estou vendo, e por um secreto destino, somente de Deus conhecido, a
história de França repassa proximamente pelas mesmas fases já atravessadas; a
nação avançou até um certo maximum,
que acaba de fulgir às vistas maravilhadas dos povos, e eis que retorna rumo
das suas origens, por uma oscilação que pode existir, à semelhança das
variações da agulha imanada das bússolas, a exemplo dos movimentos dos astros.
As personagens que me pareceram ser no momento o Duque de Orleães e Luís XVIII,
são talvez outros príncipes que estão repetindo exactamente quanto os primeiros
fizeram.
Tal hipótese, todavia, me pareceu pouco verosímil, e me
detive em outra mais racional.
Dada a multidão de estrelas e de planetas que gravitam em
torno de cada uma delas, perguntava-me eu, qual a probabilidade para que se
encontre no Espaço um mundo exactamente igual à Terra?
O cálculo das probabilidades responde a esta questão. Quanto
maior o número dos mundos, maior será a probabilidade de que as forças da
Natureza hajam dado origem a uma organização semelhante à terrestre. Ora, o
número exacto dos mundos ultrapassa toda a numeração humana escrita ou passível
de ser escrita. Se compreendemos o Infinito, ser-nos-á talvez permitido dizer
que esse número é infinito. Daí concluir eu que há muito alta probabilidade em
favor da existência de muitos mundos exactamente semelhantes à Terra, à
superfície dos quais se realiza a mesma história, a mesma sucessão de
acontecimentos, e que se acham habitados pelas mesmas espécies vegetais e
animais, a mesma Humanidade, os mesmos homens, as mesmas famílias,
identicamente.
Perguntei-me, em segundo lugar, se tal mundo, sendo análogo
à Terra, não lhe poderia ser simétrico.
Aqui ingressava eu na geometria e na teoria metafísica das imagens. Cheguei a
admitir possível que o mundo em
questão fosse semelhante à Terra, mas todavia inverso. Quando vos examinais
diante de um espelho, vereis que o anel-aliança (de casamento), posto na mão
direita, passou para o dedo anelar da mão esquerda, o que modifica o seu
símbolo; que, se piscais o olho direito, o sósia piscará o esquerdo; que, se
estendeis o braço direito, vossa imagem esticará o braço esquerdo. É
impossível, pois, que, na infinidade de astros, exista um mundo exactamente
inverso do orbe terráqueo? Seguramente, em uma infinidade de mundos, o impossível, ao contrário, seria não existir
tal mundo, e mais facilmente milhares em vez de um. A Natureza deverá ter-se
não só repetido, reproduzido, mas ainda desempenhado, sob todas as formas, o
papel da Criação. Pensei, pois, que o mundo onde via essas coisas não era a
Terra, e sim um globo semelhante, cuja história era precisamente o inverso da
vossa.
/…
CAMILLE
FLAMMARION, Narrações do Infinito,
LÚMEN Segunda narrativa – I (1 de 3) fragmento global 11º (C. Flammarion faz falar uma
alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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