ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA ~
Transcorrido um ano após o assassínio de Assunta, Dom Girólamo foi assaltado por inesperado pavor. Apareceu-lhe em palácio um irmão da jovem, que vinha em nome da família inteirar-se da vida e da razão do seu demorado silêncio…
Receando que o visitante estivesse, por acaso, informado de
qualquer dado que o pudesse conduzir à verdade, sondou-lhe com toda a
habilidade o íntimo, certificando-se de que podia continuar em tranquilidade. Senhor ,
da situação, apresentou uma estória, que já havia engendrado desde
anteriormente, pressupondo qualquer circunstância, e explicou que, na ocasião
em que estivera em Florença, a jovem lhe aparecera, dizendo-se cientificada da
sua presença na cidade. Informou-lhe necessitar de recursos para se evadir da
Toscana. Confessou-lhe pertencer a um jovem que então se encontrava em Génova,
preparando-se para seguir ao estrangeiro, e que lhe enviava um mensageiro para
consultá-la e levá-la ao seu encontro… Apiedado da moça, aduziu, por quem
nutria sentimentos de afeição, em homenagem à sua tia Ângela, não tergiversara
em auxiliá-la devidamente, não possuindo, desde a ocasião, qualquer notícia com
a qual pudesse ajudar.
Arengou mais algumas palavras de consolação e ofereceu-lhe o
palácio para o necessário repouso da viagem… O visitante, porém, humilde,
agradeceu e, comovido, penalizado com a situação da irmã, informou que
retornaria incontinente aos seus sítios.
Fingindo-se sensibilizado pelo destino da moça, ofereceu-lhe
pequena bolsa em moedas de prata, pedindo fosse encaminhada à sua mãe, como
homenagem pessoal…
No seu conceito, o dinheiro fora feito para subornar, apagar
razões, comprar consciências e silêncios… Facilmente, as moedas mudavam
qualquer panorama, segundo pensava, abrindo portas seladas e alargando estradas
abruptamente interrompidas. No seu espírito mórbido, somente havia raciocínio
para a dissimulação e a iniquidade.
Evadindo-se de Florença após o assassínio, Girólamo buscara
Siena para homiziar-se longe das suspeitas, como fizera antes, fugindo de Siena
para Florença.
Acreditando-se perfeito na sementeira dos delitos,
supunha-se sem testemunhas. O espectáculo da paisagem, naquela manhã, brilhava
na sua mente. Todavia, entre as moitas, jovem pastor, estarrecido, acompanhara
a cena brutal, na qual ele abatera a amante infeliz.
Depois de um sono hediondo, em que experimentava as Fúrias nas próprias carnes, a desditosa
moça, transcorrido longo período de inconsciência – menos para as dores superlativas
–, despertou agónica, irreconhecível, no Mundo Espiritual. Seu espírito, que
chafurdara demoradamente nos ultrajes à matéria e às leis do equilíbrio, após a
destruição dos tecidos orgânicos na vala em abandono, revolvida por chacais e aves
de rapina, em que experimentava as punhaladas certeiras que lhe foram cravadas
e que não cessavam de perfurar-lhe o corpo,
cujas sensações estavam fortemente impressas no perispírito, acordou exangue,
atordoado, só a muito custo concatenava ideias e recordando, por fim, o que lhe
ocorrera. Ignorando as realidades da vida após a morte, surpreendeu-se por se encontrar viva, não obstante tudo quanto
sofrera. Desejando, porém, sair dali, sentiu-se amarrada aos despojos e
constatou, a custo, horrorizada, a realidade em que se encontrava. Surpreendeu-se
com a presença de outros seres que a desvencilharam dos vínculos que a retinham
ao local, passando a sofrer-lhes nefasta perseguição, em cuja aflição era
acometida incessantes vezes por delíquios, de que despertava mais violentada,
mais sofrida…
O tempo perdera a significação na sua desdita. Conquanto seviciada
pela horda que a arrastava, impiedosa, para toda parte, sabia-se vítima do
amante, por quem experimentava o ardor do ódio incessante queimando e
requeimando-a por dentro. Por mais desejasse vê-lo, enfrentá-lo, desferir sua
vingança, não conseguia libertar-se da chusma de sequazes do mal, iguais a ela,
a que aderira por força que lhe era desconhecida.
É que faltava um elemento preponderante para reencontrar o
nefando companheiro. E esse elo foi ele próprio quem forneceu.
Na noite de núpcias, enquanto se entregava às muitas libações,
pareceu recordar as cenas acontecidas no lustro passado, naquele palácio e,
automaticamente, febricitado de desejos, recordou a comparsa, lamentando ter
sido obrigado a silenciá-la. Foi, então, acometido de estranha saudade…
O pensamento em desalinho – vibração que se espraia e sintoniza
onde e quando encontra equivalente de onda – foi localizar Assunta atada à
turba de vândalos espirituais.
Chamada mentalmente, sentiu-se ligar ao lúbrico dissipador e
como ele prosseguisse recordando os múltiplos lances da vida que levavam,
conquanto às ocultas, arrancou-a para o seu lado. Como o pensamento
prosseguisse em desvairada imaginação, a infeliz, que recebia o apelo
telepaticamente, descobriu-se ao lado do criminoso, violentamente convidada e
aceita na primeira comunhão mental, depois da tragédia.
Ressumando todo o ódio de que era capaz seu espírito
selvagem, perfeitamente par de Girólamo, agrediu-o violentamente, descarregando
nele o vírus mefítico da sua vingança. O moço, em semiletargia, inesperadamente
a viu e se estarreceu ante a cena da amante sangrando, deformada, vestes
rasgadas, cabelos desalinhados e colados à face suja de sangue e lama. Despertando
violentamente, fugiu às pressas do local em que estava, para partilhar de novos
brindes, que o inutilizariam, roubando-lhe a lucidez e deixando-o totalmente
embriagado, na noite da boda, começando, inconsciente, desde logo, a afligir a
esposa, que o acompanhou ao leito em lastimável estado íntimo de apreensão e
desencanto…
Hospedada pela mente de Girólamo, a vítima reencontrou o
solar da sua loucura e passou e rever os sítios onde fora feliz e nos quais se
desgraçara. Recordando a vida amargurada e vã, lembrou-se do duque, da Senhora Ângela, de Lúcia e
das crianças que ela ajudara a matar. Acometida de remorso de fogo, pôs-se a
ulular, arrependida, chorando lágrimas de fogo, que lhe pareciam ferir a face e
a alma, quando, oh! desdita maior, apareceu-lhe o duque, igualmente deformado, sombrio, acusador…
– Por que, desgraça – exprobrou-lhe o antigo amo –, te
fizeste sicária dos meus amados? Retribuíste afeição com veneno e foste vítima
de ti mesma. Acreditavas que o monstro não te consumiria na própria voragem em
que se fará consumir logo mais? Esqueceste de tudo quanto recebeste, para
somente cuidar das tuas ambições? Onde está o teu esposo, condessa Cherubini?
A frase final, pronunciada com sarcasmo e ira, penetrou a
jovem desventurada de maneira fulminante.
O espírito da infortunada mulher estribou gargalhada infrene,
saindo a correr, seguida pelo duque,
que lhe gritava:
– “Louca! Mesmo louca não me escaparás…”
Terminadas as festas, o Palácio di Bicci, lentamente, foi
retomando a normalidade, conquanto agora o luxo substituía-se a parcimónia de hábitos
dos antigos senhores.
Enquanto as emoções eram novas, no matrimónio, Girólamo
desdobrava-se em cortesias e zelos com a esposa. Saía à caça, passeava no
bosque, demorava-se em Siena, sempre acompanhado da bela invejada consorte. Os amigos
estranhavam-lhe o comportamento, considerando o dito popular na Toscana,
originado de Veneza *|, que muito bem caracterizava a dignidade da época.
Religioso na aparência, participava das solenidades na
catedral e na basílica de Provenzano e ostentava as insígnias de cavaleiro nos
ofícios públicos, exibindo as honras da Terra, enquanto penetrava cada vez mais
fundo nos abismos da própria insânia.
/...
*| Era, então, popular o adágio: “Pela manhã uma
missazinha, à tarde uma mesinha de jogo e à noite uma mulherzinha.”
VICTOR HUGO, Espírito – PÁRIAS EM REDENÇÃO, Livro Primeiro,
5 ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA (fragmento 3 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura
de Edgar Maxence)
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