Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de junho de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA ~

   Transcorrido um ano após o assassínio de Assunta, Dom Girólamo foi assaltado por inesperado pavor. Apareceu-lhe em palácio um irmão da jovem, que vinha em nome da família inteirar-se da vida e da razão do seu demorado silêncio…

   Receando que o visitante estivesse, por acaso, informado de qualquer dado que o pudesse conduzir à verdade, sondou-lhe com toda a habilidade o íntimo, certificando-se de que podia continuar em tranquilidade. Senhor, da situação, apresentou uma estória, que já havia engendrado desde anteriormente, pressupondo qualquer circunstância, e explicou que, na ocasião em que estivera em Florença, a jovem lhe aparecera, dizendo-se cientificada da sua presença na cidade. Informou-lhe necessitar de recursos para se evadir da Toscana. Confessou-lhe pertencer a um jovem que então se encontrava em Génova, preparando-se para seguir ao estrangeiro, e que lhe enviava um mensageiro para consultá-la e levá-la ao seu encontro… Apiedado da moça, aduziu, por quem nutria sentimentos de afeição, em homenagem à sua tia Ângela, não tergiversara em auxiliá-la devidamente, não possuindo, desde a ocasião, qualquer notícia com a qual pudesse ajudar.

   Arengou mais algumas palavras de consolação e ofereceu-lhe o palácio para o necessário repouso da viagem… O visitante, porém, humilde, agradeceu e, comovido, penalizado com a situação da irmã, informou que retornaria incontinente aos seus sítios.

   Fingindo-se sensibilizado pelo destino da moça, ofereceu-lhe pequena bolsa em moedas de prata, pedindo fosse encaminhada à sua mãe, como homenagem pessoal…

   No seu conceito, o dinheiro fora feito para subornar, apagar razões, comprar consciências e silêncios… Facilmente, as moedas mudavam qualquer panorama, segundo pensava, abrindo portas seladas e alargando estradas abruptamente interrompidas. No seu espírito mórbido, somente havia raciocínio para a dissimulação e a iniquidade.

   Evadindo-se de Florença após o assassínio, Girólamo buscara Siena para homiziar-se longe das suspeitas, como fizera antes, fugindo de Siena para Florença.

   Acreditando-se perfeito na sementeira dos delitos, supunha-se sem testemunhas. O espectáculo da paisagem, naquela manhã, brilhava na sua mente. Todavia, entre as moitas, jovem pastor, estarrecido, acompanhara a cena brutal, na qual ele abatera a amante infeliz.

   Depois de um sono hediondo, em que experimentava as Fúrias nas próprias carnes, a desditosa moça, transcorrido longo período de inconsciência – menos para as dores superlativas –, despertou agónica, irreconhecível, no Mundo Espiritual. Seu espírito, que chafurdara demoradamente nos ultrajes à matéria e às leis do equilíbrio, após a destruição dos tecidos orgânicos na vala em abandono, revolvida por chacais e aves de rapina, em que experimentava as punhaladas certeiras que lhe foram cravadas e que não cessavam de perfurar-lhe o corpo, cujas sensações estavam fortemente impressas no perispírito, acordou exangue, atordoado, só a muito custo concatenava ideias e recordando, por fim, o que lhe ocorrera. Ignorando as realidades da vida após a morte, surpreendeu-se por se  encontrar viva, não obstante tudo quanto sofrera. Desejando, porém, sair dali, sentiu-se amarrada aos despojos e constatou, a custo, horrorizada, a realidade em que se encontrava. Surpreendeu-se com a presença de outros seres que a desvencilharam dos vínculos que a retinham ao local, passando a sofrer-lhes nefasta perseguição, em cuja aflição era acometida incessantes vezes por delíquios, de que despertava mais violentada, mais sofrida…

   O tempo perdera a significação na sua desdita. Conquanto seviciada pela horda que a arrastava, impiedosa, para toda parte, sabia-se vítima do amante, por quem experimentava o ardor do ódio incessante queimando e requeimando-a por dentro. Por mais desejasse vê-lo, enfrentá-lo, desferir sua vingança, não conseguia libertar-se da chusma de sequazes do mal, iguais a ela, a que aderira por força que lhe era desconhecida.

   É que faltava um elemento preponderante para reencontrar o nefando companheiro. E esse elo foi ele próprio quem forneceu.

   Na noite de núpcias, enquanto se entregava às muitas libações, pareceu recordar as cenas acontecidas no lustro passado, naquele palácio e, automaticamente, febricitado de desejos, recordou a comparsa, lamentando ter sido obrigado a silenciá-la. Foi, então, acometido de estranha saudade…

   O pensamento em desalinho – vibração que se espraia e sintoniza onde e quando encontra equivalente de onda – foi localizar Assunta atada à turba de vândalos espirituais.

   Chamada mentalmente, sentiu-se ligar ao lúbrico dissipador e como ele prosseguisse recordando os múltiplos lances da vida que levavam, conquanto às ocultas, arrancou-a para o seu lado. Como o pensamento prosseguisse em desvairada imaginação, a infeliz, que recebia o apelo telepaticamente, descobriu-se ao lado do criminoso, violentamente convidada e aceita na primeira comunhão mental, depois da tragédia.

   Ressumando todo o ódio de que era capaz seu espírito selvagem, perfeitamente par de Girólamo, agrediu-o violentamente, descarregando nele o vírus mefítico da sua vingança. O moço, em semiletargia, inesperadamente a viu e se estarreceu ante a cena da amante sangrando, deformada, vestes rasgadas, cabelos desalinhados e colados à face suja de sangue e lama. Despertando violentamente, fugiu às pressas do local em que estava, para partilhar de novos brindes, que o inutilizariam, roubando-lhe a lucidez e deixando-o totalmente embriagado, na noite da boda, começando, inconsciente, desde logo, a afligir a esposa, que o acompanhou ao leito em lastimável estado íntimo de apreensão e desencanto…

   Hospedada pela mente de Girólamo, a vítima reencontrou o solar da sua loucura e passou e rever os sítios onde fora feliz e nos quais se desgraçara. Recordando a vida amargurada e vã, lembrou-se do duque, da Senhora Ângela, de Lúcia e das crianças que ela ajudara a matar. Acometida de remorso de fogo, pôs-se a ulular, arrependida, chorando lágrimas de fogo, que lhe pareciam ferir a face e a alma, quando, oh! desdita maior, apareceu-lhe o duque, igualmente deformado, sombrio, acusador…

   – Por que, desgraça – exprobrou-lhe o antigo amo –, te fizeste sicária dos meus amados? Retribuíste afeição com veneno e foste vítima de ti mesma. Acreditavas que o monstro não te consumiria na própria voragem em que se fará consumir logo mais? Esqueceste de tudo quanto recebeste, para somente cuidar das tuas ambições? Onde está o teu esposo, condessa Cherubini?

   A frase final, pronunciada com sarcasmo e ira, penetrou a jovem desventurada de maneira fulminante.

   O espírito da infortunada mulher estribou gargalhada infrene, saindo a correr, seguida pelo duque, que lhe gritava:

   – “Louca! Mesmo louca não me escaparás…”

   Terminadas as festas, o Palácio di Bicci, lentamente, foi retomando a normalidade, conquanto agora o luxo substituía-se a parcimónia de hábitos dos antigos senhores.

   Enquanto as emoções eram novas, no matrimónio, Girólamo desdobrava-se em cortesias e zelos com a esposa. Saía à caça, passeava no bosque, demorava-se em Siena, sempre acompanhado da bela invejada consorte. Os amigos estranhavam-lhe o comportamento, considerando o dito popular na Toscana, originado de Veneza *|, que muito bem caracterizava a dignidade da época.

   Religioso na aparência, participava das solenidades na catedral e na basílica de Provenzano e ostentava as insígnias de cavaleiro nos ofícios públicos, exibindo as honras da Terra, enquanto penetrava cada vez mais fundo nos abismos da própria insânia.
/...

*| Era, então, popular o adágio: “Pela manhã uma missazinha, à tarde uma mesinha de jogo e à noite uma mulherzinha.”



VICTOR HUGO, Espírito – PÁRIAS EM REDENÇÃO, Livro Primeiro, 5 ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA (fragmento 3 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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