O problema do Ser
O primeiro problema que se apresenta ao pensamento é o do
próprio pensamento, ou, seja, do ser pensante. É isso, para
todos nós, assunto principal, que domina todos os outros e cuja solução nos
reconduz às próprias origens da vida e do universo.
Qual é a natureza da nossa personalidade? Comporta ela um
elemento susceptível de sobreviver à morte? A esta questão estão afectas todas
as apreensões, todas as esperanças da humanidade.
O problema do ser e o problema da alma
fundem-se num só. É a alma (ii) que fornece ao homem o seu
princípio de vida e movimento. A alma humana é uma vontade livre e soberana, é
a unidade consciente
que domina todos os atributos, todas as funções, todos os elementos materiais
do ser, como a Alma divina domina, ela coordena e liga todas as
partes do universo para harmonizá-las.
A alma é imortal, porque o nada não existe e coisa alguma
pode ser aniquilada, nenhuma individualidade pode deixar de ser. A
dissolução das formas materiais prova simplesmente uma coisa: que a alma ao ser
separada do organismo por meio do qual comunicava com o meio terrestre. Não
deixa, por esse facto, de prosseguir a sua evolução em novas condições, sob
formas mais perfeitas e sem nada perder da sua identidade. De cada vez que ela
abandona o corpo terrestre, encontra-se de novo na vida do espaço, unida ao seu
corpo espiritual, do qual é inseparável, à forma imponderável que
para si preparou com os seus pensamentos e as suas obras.
Esse corpo subtil, essa duplicação fluídica existe em nós em
estado permanente. Embora invisível, serve, entretanto, de molde ao nosso corpo
material. Este não representa, no destino do ser, o papel mais
importante. O corpo visível, ou corpo físico, varia. Formado de acordo com as
necessidades da vida terrestre, é temporário e perecível; desagrega-se e
dissolve-se quando morre. O corpo subtil permanece; preexistindo ao nascimento,
sobrevive às decomposições da sepultura e acompanha a alma nas suas
transmigrações. É o modelo, o tipo-original, a verdadeira forma humana, à qual
vêm incorporar-se temporariamente as moléculas da carne.
Essa forma subtil, que se mantém no meio de todas as variações e de todas as
correntes materiais, mesmo durante a vida pode separar-se, em
certas condições, do corpo carnal e, também agir, aparecer, manifestar-se à
distância, como mais adiante veremos, de modo a provar de maneira incontestável
a sua existência independente. (iii)
As provas da existência da alma são de duas espécies: morais
e experimentais.
Vejamos primeiro as provas morais e as de
ordem lógica; não obstante haverem servido muitas vezes, conservam toda a sua
força e valor.
Segundo as escolas Materialista e Monista, a alma não é mais
do que a resultante das funções cerebrais. “As células do cérebro – disse Haeckel –
são os verdadeiros órgãos da alma. Esta está-lhes ligada à integridade. Cresce,
decai e desaparece com elas. O gérmen material contém o ser completo,
físico e mental.”
Responderemos em substância: A matéria não pode
gerar qualidades que ela não tem. Os átomos, sejam eles triangulares, circulares
ou aduncos, não podem representar a razão, o génio, o amor puro, a caridade
sublime. O cérebro, dizem, cria a função. É coisa compreensível que uma função
possa conhecer-se, possuir a consciência e a sensibilidade? Como explicar a
consciência, a não ser pelo espírito? Vem da matéria? Quantas vezes não está a
primeira em luta com a última! Vem do interesse e do instinto de conservação?
Revolta-se ela contra eles e nos leva até ao sacrifício!
O organismo material não é o princípio da vida e das faculdades;
é, ao contrário, o seu limite. O cérebro é um simples instrumento que serve ao
Espírito para registar as suas sensações. É comparável à execução de uma
harmonia por um instrumento, em que cada tecla representaria um género especial
de sensações. Quando o instrumento está perfeitamente afinado, as teclas dão,
sob a acção da vontade, o som peculiar a cada uma delas e reina a harmonia nas
nossas ideias e nos nossos actos; mas se as teclas estiverem estragadas, ou
desfalcadas, o som produzido não será o que devia ser, a harmonia resultará
incompleta. Resultará daí uma desafinação, por mais esforços que faça a
inteligência do artista e, ao qual será impossível tirar do instrumento
defeituoso uma combinação de manifestações regulares. Assim se explicam as
doenças mentais, as neuroses, a idiotia, a perda temporária da palavra ou da
memória, a loucura, etc., sem que, por isso, a existência da alma fique
comprometida. Em todos esses casos o Espírito subsiste, mas as suas
manifestações são contrariadas e, às vezes, até aniquiladas por falta
de correlação com o seu organismo.
Sem dúvida, o desenvolvimento do cérebro denota, de maneira
geral, faculdades elevadas. Uma alma delicada e poderosa necessita
de um instrumento mais perfeito, que se preste a todas as manifestações
de um pensamento elevado e fecundo. As dimensões e circunvoluções do cérebro
estão muitas vezes em relação directa com o grau de evolução do Espírito. (iv) Não
se deve daqui deduzir que a memória seja um simples jogo das células cerebrais.
Estas modificam-se e renovam-se sem cessar, diz a Ciência, a tal ponto que o
cérebro e o corpo passam por uma completa mudança material em poucos
anos. (v)
Nestas condições, como explicar que nos possamos recordar
dos factos que remontam a dez, vinte, trinta anos? Como relembram os velhos com
surpreendente facilidade todos os pormenores da sua infância? Como podem a
memória, a personalidade, o “eu” persistir e manter-se no meio das contínuas
destruições e reconstruções orgânicas? Outros tantos problemas insolúveis para
o materialismo!
Os sentidos, dizem os psicólogos contemporâneos, são o único
veículo da alma, a suspensão destes implica o desaparecimento daquela. Notemos,
entretanto, que o estado de anestesia, isto é, a supressão momentânea da
sensibilidade, não elimina, de modo nenhum, a acção da inteligência. Esta
revela-se, ao contrário, em casos nos quais, segundo as doutrinas
materialistas, deveria estar aniquilada.
Buisson escrevia: “Se existe alguma coisa que possa
demonstrar a independência do “eu”, é com certeza a prova que nos fornecem os
pacientes submetidos à acção do éter. Neste estado as suas faculdades
intelectuais resistem aos agentes anestésicos.”
Velpeau, tratando do mesmo tema, dizia: “Que mina fecunda
não são para a Fisiologia e para a Psicologia factos como estes, que separam
o espírito da matéria, a inteligência do corpo!”
Havemos de ver também por que forma, no sono comum ou no
provocado, no sonambulismo (i) e
na exteriorização, a alma pode viver, perceber e agir sem o auxílio dos
sentidos.
Se a alma, como diz Haeckel,
fosse unicamente a soma dos elementos corporais, haveria sempre no homem,
correlação entre o físico e o mental. A relação seria directa, constante e
perfeito o equilíbrio entre as faculdades, as qualidades morais de um lado e, a
constituição material, do outro. Os mais bem-dotados do ponto de vista físico
possuiriam também as almas mais inteligentes e mais dignas. Sabemos que assim
não é, porque, muitas vezes, almas de escol têm habitado corpos débeis. A
saúde e a força não implicam, nos que as possuem, um espírito subtil e
faculdades brilhantes.
Mens sana in corpore sano, diz-se, é verdade; mas, há
tantas excepções a esta máxima que não é possível considerá-la em regra geral.
A carne cede sempre à dor; não sucede o mesmo com a alma, que, muitas vezes,
resiste, exalta-se no sofrimento e triunfa dos agentes
externos.
Os exemplos de Antígono, de Jesus, de Sócrates,
de Jeanne
d'Arc, dos mártires cristãos, dos hussitas e
de tantos outros que embelezam a História e enobrecem a raça humana aí estão
para lembrar-nos que as vozes do sacrifício e do dever podem elevar-se muito
acima dos instintos da matéria. Nas horas decisivas, a vontade dos heróis sabe
dominar as resistências do corpo.
Se o homem estivesse integralmente contido no gérmen físico,
encontrar-se-iam nele unicamente as qualidades e os defeitos dos seus
progenitores, na mesma proporção; mas, ao contrário, vêem-se por toda a parte
crianças que diferem dos pais, são-lhes superiores ou inferiores. Irmãos,
irmãos-gémeos, de uma semelhança física flagrante, apresentam, mental e
moralmente considerados, caracteres dessemelhantes entre si e com os seus
ascendentes.
As teorias do atavismo e da hereditariedade são impotentes
para explicar os casos célebres de crianças artistas ou sábias – músicos
como Mozart ou Paganini,
matemáticos como Mondeux e Inaudi,
pintores aos dez anos como Van der Kerkhove e tantos outros meninos-prodígio,
cujas aptidões não se encontram nos pais ou só se encontram em grau muito
inferior, como, por exemplo, nos ascendentes de Mozart.
As propriedades da substância material, transmitidas pelos
pais, manifestam-se na criança pela semelhança física e pelos males
constitucionais; mas a semelhança só persiste, quando muito, durante o primeiro
período da vida. Desde que o carácter se define, desde que a criança se faz
homem, vêem-se as feições modificar-se pouco a pouco, ao mesmo
tempo que as tendências hereditárias vão diminuindo e dando
lugar a outros elementos, que constituem uma personalidade diferente, um ser às
vezes distinto, pelos gostos, pelas qualidades, pelas paixões, de tudo quanto
se encontra nos ascendentes. Não é, pois, o organismo material o que constitui
a personalidade, mas sim o homem interior, o ser psíquico. À
medida que este se desenvolve e se afirma por sua própria acção na existência,
vê-se a herança física e mental dos pais ir pouco a pouco enfraquecendo e,
muitas vezes, desaparecer.
A noção do bem, gravada no fundo das
consciências, é, igualmente, prova evidente da nossa origem espiritual. Se o
homem procedesse do pó ou fosse resultante das forças mecânicas do mundo, não
poderíamos conhecer o bem e o mal, sentir remorso nem dor moral.
“Essas noções – dizem-nos – provêm dos vossos antepassados,
da educação, das influências sociais!”
Mas, se essas noções são heranças exclusivas do passado, de
onde foi que ele as recebeu? E por que se multiplicam em nós, não encontrando
terreno favorável nem alimento?
Se verdes o mal vos tem causado sofrimento, se tendes
chorado por vós e pelos outros, haveis de ter podido entrever, nessas horas de
tristeza, de dor reveladora, as secretas profundezas da alma, as suas ligações
misteriosas com o Além e, deveis compreender o encanto amargo e
o fim elevado da existência, de todas as existências. Esse fim é a educação dos
seres pela dor; é a ascensão das coisas finitas para a vida infinita.
Não, o pensamento e a consciência não derivam de um universo
químico e mecânico. Ao contrário, dominam-no, dirigem-no e subjugam-no do Alto.
Com efeito, não é o pensamento que pesa os mundos, mede a extensão e discrimina
as harmonias do Cosmo? Só por um lado pertencemos ao mundo
material. É por isso que tão vivamente padecemos com os seus males. Se lhe
pertencêssemos completamente, sentir-nos-íamos muito mais no nosso elemento e
ser-nos-iam poupados muitos sofrimentos.
A verdade acerca da natureza humana, da vida e do destino, o
bem e o mal, a liberdade e a responsabilidade não se descobrem no fundo das
retortas nem na ponta os escalpelos. A ciência material não pode julgar coisas
do espírito. Só o espírito pode julgar e compreender o espírito e, isso na
razão do grau da sua evolução. É da consciência das
almas superiores, dos seus pensamentos, dos seus trabalhos, dos seus exemplos,
dos seus sacrifícios, que brotam a luz mais intensa e o mais nobre ideal que
podem guiar a humanidade no seu caminho.
O homem é, pois, ao mesmo tempo, espírito e matéria, alma e
corpo; mas talvez espírito e matéria não sejam mais do que simples palavras,
exprimindo de maneira imperfeita as duas formas da vida eterna, a qual dormita na
matéria bruta, acorda na matéria orgânica, adquire actividade,
se expande e se eleva no espírito.
Não haverá, como admitem certos pensadores, mais do que uma
essência única das coisas, forma e pensamento ao mesmo tempo, sendo a forma um
pensamento materializado e o pensamento a forma do espírito? (vi) É
possível. O saber humano é limitado e até os olhares do génio não são mais do
que relâmpagos no domínio infinito das ideias e das leis.
Todavia, o que caracteriza a alma e absolutamente a
diferencia da matéria é a sua unidade consciente. Sob a acção da
análise, a matéria dispersa-se e dissipa-se. O átomo físico divide-se em
sub-átomos, que, por sua vez, se fragmentam indefinidamente. A matéria é
inteiramente desprovida de unidade, como o estabeleceram as recentes
descobertas de Becquerel, Marie e Pierre Curie, Le Bon.
No universo só o espírito representa o elemento uno,
simples, indivisível e, por conseguinte, logicamente indestrutível,
imperecível, imortal.
/…
(ii) Demonstra-lo-emos mais adiante com uma série
completa de factos de observação, de experiência e de provas objectivas.
(iii) A ciência fisiológica, à qual escapa ainda a maior
parte das leis da vida, entreviu, no entanto, a existência do perispírito (i) ou
do corpo fluídico, que é ao mesmo tempo o molde do corpo material, o vestuário
da alma e o intermediário obrigatório entre eles. Claude
Bernard escreveu (Recherches sur les Problèmes de la Physiologie): “Há
como um desenho preestabelecido de cada ser e de cada órgão, de modo que, se
considerado isoladamente, cada fenómeno do organismo é tributário das forças
gerais da Natureza; em conjunto, parecem eles revelar um laço especial, parecem
dirigidos por alguma condição invisível pelo caminho que seguem, na ordem que
os concatena.”
Sem a noção do corpo fluídico, a união da alma com o
corpo material torna-se incompreensível. Daí o enfraquecimento de certas
teorias espiritualistas, que consideravam a alma como “Espírito puro”. Nem a
razão nem a Ciência podem admitir um ser sem forma. Leibnitz,
no prefácio das suas – Nouvelles Recherches sur la Raison Humaine, diz:
“Creio, com a maior parte dos antigos, que todos os Espíritos, todas as almas,
todas as substâncias simples, activas, estão sempre unidas a um corpo e que
nunca existem almas completamente desprovidas deles.”
Enfim, existem numerosas provas, objectivas e
subjectivas, da existência do perispírito. São, em primeiro lugar, as sensações
chamadas “de integridade”, que acompanham sempre a amputação de qualquer
membro. Alguns magnetizadores afirmam que podem exercer influência nos seus
pacientes, magnetizando o prolongamento fluídico dos membros amputados (Carl du Prel,
La Doctrine Monistique de l'Ame, cap. VI). Vêm depois as aparições dos
fantasmas dos vivos. Em muitos casos, o corpo fluídico, concretizado, tem
impressionado placas fotográficas, deixado impressões e moldagens em
substâncias moles, traços no pó e na fuligem, provocado o deslocamento de
objectos, etc. (Ver: No Invisível, caps. XII e XX.)
(iv) A regra não é absoluta. O cérebro de Gambetta, por
exemplo, não pesava mais do que 1.246 gramas, ao passo que a média humana
é de 1.500 a 1.800 gramas.
(v) Claude Bernard – La Science Expérimentale,
Phénomènes de la Vie.
(vi) Entendemos aqui por espírito o princípio da
inteligência.
Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O
Problema do Ser, [...] III – O problema do Ser, 4º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe),
de uma pintura atribuída a Josefina
Robirosa)
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