Perguntas sobre o próprio eu
A filosofia de todas as idades pergunta pela existência
do Eu individual. Fizeram-se perguntas, certamente muitas
técnicas, sobre este Eu que nos conforma como um Ser existente,
perguntas que não têm chegado à carne viva do homem: existir nos braços da
incerteza e sobre a obscuridade do nada.
Eu sou um eu, tem-se dito; mas este não foi
nunca real e objectivo, antes um eu académico, envernizado por
complicados tecnicismos psicológicos, metafísicos e ontológicos. Um eu que
ao sair do âmbito oficial se esfuma como realidade
existencial, surgindo dela um Ser sem nenhuma relação com a
realidade humana. Quer dizer, é um eu desvinculado do dramatismo da
vida diária em cujas esferas se prova a veracidade espiritual
do Ser.
Falou-se de um eu superficial, baseado no
conceito fisicalista da
vida, uma vez que para a filosofia oficial o homem não possui
profundidade espiritual nem existencial, esta o considera uma ''massa
fisiológica" e um mecanismo sem mundo interior. Mas o pensamento tem
apetências que se tornam imperativos em todos os níveis ideológicos. Estas
apetências são causadas pela sede de verdade que existe
no eu e se sobrepõem ao físico e corporal, porque
nisso está a vida do homem e dos seus processos interiores e exteriores.
Que é o eu? pergunta a filosofia, ao que se pode
acrescentar: quem sou eu? Nestas perguntas se concentra a essência ontológica do Ser e
do mundo. São duas perguntas que persistem nas investigações filosóficas.
O que e o quem constituem o saber ontológico
que perdura com muito valor num momento do homem em que tudo muda e se
confunde.
Afinal, existe o eu para "algo"
ou é o resultado de uma cega casualidade? O eu é uma entidade
com dimensões ainda desconhecidas ou só existe para entrar no nada?
Dir-se-á que estas inquietudes foram
experimentadas pela alma humana em todos os tempos do planeta. Mas aqui, pela
sua urgência, pode peguntar-se: quem deu sobre elas uma resposta capaz de satisfazer a alma
da humanidade? Quem demonstrou por bases experimentais que
o eu é um Ser profundo com dimensões desconhecidas?
Quem demonstrou que no eu físico pode estar o eu metafísico?
Foi esta última sempre aceite teoricamente, o que
nada representa perante o mundo material da inteligência. Agora
trata-se de uma demonstração material, da mesma carne do
homem, de uma metafísica existencial
e viva do eu. Pois bem, aspirar a esta demonstração não
é estar no campo de uma "má filosofia", mas buscar o
homem e a vida como realidades espirituais que
se sobreponham a todos os conceitos niilistas do Ser.
O eu, porém, sempre sedento de infinito, não se
detém à direita nem à esquerda da filosofia. O seu Ser profundo
se sobrepõe ao conceito de "massa fisiológica" para exprimir os seus brados existenciais. A
consciência moderna não se aquietará perante suposições teóricas; se o
subjectivo não se transforma em realidade prática e objectiva,
o eu prosseguirá reclamando um saber que esteja de acordo com as suas profundidades ontológicas. Seguirá
reclamando "direitos espirituais", posto que intui que existe nele
um Ser que luta por instalar-se como uma realidade no mundo. É
como um novo Ser que é vida com disposições espirituais bem
diferentes das do passado, ansioso de encarnar no
histórico e conduzi-lo mediante um novo processo tanto material como
espiritual.
A pré-existência como base existencial do eu
Se o eu existe, é para a vida ou para a
morte? Essa ideia de regresso que se agita nas profundezas do eu pode
ser tomada como uma prova de sua perdurabilidade espiritual? Se o eu pressente que o
seu nascimento é um regresso, isso nos leva a supor que possui um pré-existir e
não apenas um existir presente. Intui que regressa
porque possui, de facto, um pré-existir ou um tempo anterior ao actual. Sente
que regressa porque já esteve em alguma parte, o
que assinala que o seu presente existir se baseia em um pré-existir.
O eu existe hoje porque existiu antes e
existirá depois porque existe agora. E por esse encadeamento de pré-existências,
existências e super-existências o eu se afirma sobre a base de
um novo existir consciente e definitivo. Deste
modo, o homem reconhecerá um eu existencial responsável pelo
seu crescimento como personalidade espiritual, até alcançar o sentido palingenésico de
seu próprio Ser.
O eu ao possuir uma pré-existência poderá projectar-se sobre
o passado, o presente e o futuro até
perceber o enlace do humano e do divino. Sem pré-existência, o eu não
passa de um Ser limitado às relatividades do presente. Existe
sim uma conexão com o passado e o futuro. A história possui para ele apenas uma
face, que consegue perceber com o seu sentido de presente. Mas com o
tempo pré-existente,
o eu é um Ser comprometido com o histórico em
razão de sua participação no tempo passado que, para a filosofia universitária,
carece de vinculação com o eu do tempo presente. O eu está
comprometido com o histórico por causa do seu estar no pré-histórico, como
o estará, por sua permanência no histórico actual, com o supra-histórico e o
futuro histórico.
A pré-existência do eu é
uma prolongação do Ser desde o antigo e, uma projecção para
o novo. O eu já foi ontem e será novamente amanhã por
ser hoje. Como se vê, a ideia da pré-existência determina no eu um
enlace dialéctico que
esclarece o processo histórico e nos dá essa historiosofia cristã de que falou Nicolas Berdiaev.
A ideia de regresso experimentada pelo eu é
o resultado de sua natureza pré-existente. O eu intui que volta de
algum lugar porque o seu Ser provém de um passado que, à
medida em que se actualiza na sua memória, recorda o seu pré-existir
constituído por uma série de extractos existenciais. Do que se infere
que o eu é uma sucessão de seres que
passaram através de um tempo infinito. Esta sucessão de seres que
constituem o eu actual é o que determina a segurança de sua
pré-existência e dá fundamento à sua natureza imortal. O eu,
em suma, é infinito por causa de seu pré-existir, já que sem ele não
seria mais que uma máquina sem
capacidade de recordar ou de intuir um
regresso mediante a penetração dos seus extractos pré-existenciais.
A imortalidade do eu tem a sua base na sua
própria pré-existência. Nenhum eu pode ser e existir sem que nele exista uma acumulação de idades e de tempos, pois todo o eu é uma formação sucessiva de outros eus cujas imagens estão gravadas na sua memória histórica. O Ser é uma teoria de eus que não se decompôs através do processo histórico em razão de uma acumulação de experiências existenciais.
O eu perdura através do tempo histórico e
avança para o seu próprio estado absoluto, ou seja, para a sua perdurabilidade imortal por causa de
seu Ser pré-existencial. O
passado nele traz a intuição, que
se traduz pela lembrança de "algo" que regressa para a sustentação do
seu Ser imortal. Em suma, a pré-existência do eu é
que assegura ao Ser "salvar-se'' do nada, desse
nada que destrói tanto o passado como o presente e o futuro, simultaneamente.
O nascimento como um regresso do eu
O eu existe não obstante as negações que
pretendem destruí-lo. Há nele um Ser que existe para
algo transcendental,
como se penetrasse na realidade material para sobrevir um "existente
corporal". Mas o eu não é um existente
corporal; a sua existência, quando está no mais profundo de si mesmo,
vislumbra ou pressente as
novas representações existenciais.
A isso se poderia objectar o seguinte: o eu nasce
como todo o humano, por conseguinte está exposto ao finito e ao relativo; é o resultado de
um nascimento fisiológico e é, por isso mesmo, um factor psíquico determinado
por combinações fisioquímicas, o que o situaria num plano puramente
material. Porque se tem acreditado sempre que tudo o que nasce está
sujeito a deteriorar-se, à categoria das coisas finitas. Sem dúvida, a sua
afirmação como Ser existencial tem numerosos recursos a seu favor;
contudo, o mais decisivo é essa percepção em
si mesmo de uma presença anterior no seu Ser actual. Essa
presença faz pressentir ao eu que o seu nascimento não é um
fenómeno fisiológico, mas um regresso, um caminho pelo
qual vem avançando através
de um tempo infinito.
De facto, o eu se sente como
um-ser-que-nas-ce, mas sabe que regressa ou que vem
de alguma parte. O seu nascimento não anula a sua sede de imensidade; pelo
contrário, sem deter-se frente ao que nele é do ponto de vista corporal,
continua sentindo-se no seu Ser como ''algo" que
regressa, que é alguém que se está a formar através de um mundo
que dura pelo espaço e
o tempo.
O que se agita no eu profundo está a comover as bases do saber materialista. Pois, enquanto do fundo do eu surgirem ideias e novas apetências gnosiológicas, o saber resultará sempre inseguro, já que os seus dogmas só se converterão em realidades experimentais se se consegue demonstrar que o eu não é mais que uma "massa fisiológica" ou uma consequência psíquica segregada pelos lóbulos cerebrais.
O que se agita no eu profundo está a comover as bases do saber materialista. Pois, enquanto do fundo do eu surgirem ideias e novas apetências gnosiológicas, o saber resultará sempre inseguro, já que os seus dogmas só se converterão em realidades experimentais se se consegue demonstrar que o eu não é mais que uma "massa fisiológica" ou uma consequência psíquica segregada pelos lóbulos cerebrais.
Nas profundidades do eu está o novo saber
da existência do Espírito. E isto não é
uma simples expressão, posto que existe uma dialéctica do eu pela
qual a sua natureza e o seu Ser se compreendem como o regresso de alguém
que quer fazer-se presente no cenário do mundo. Essa dialéctica do eu é que determinará uma nova realidade nos campos do conhecimento, ou seja, uma realidade mutante e progressiva cujas raízes se encontram nos tempos pretéritos do Ser. Será um eu que se manifestará no temporal para dizer: eu fui, logo sou e serei eternamente.
/…
Humberto Mariotti (i), Victor
Hugo Espírita, Adendo | perguntas sobre o próprio eu, a
pré-existência como base existencial do eu, o nascimento como
um regresso do eu, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca,
pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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