Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 17 de dezembro de 2017

Victor Hugo e o invisível ~


Perguntas sobre o próprio eu

  A filosofia de todas as idades pergunta pela existência do Eu individual. Fizeram-se perguntas, certamente muitas técnicas, sobre este Eu que nos conforma como um Ser existente, perguntas que não têm chegado à carne viva do homem: existir nos braços da incerteza e sobre a obscuridade do nada.

  Eu sou um eu, tem-se dito; mas este não foi nunca real e objectivo, antes um eu académico, envernizado por complicados tecnicismos psicológicos, metafísicos e ontológicos. Um eu que ao sair do âmbito oficial se esfuma como realidade existencial, surgindo dela um Ser sem nenhuma relação com a realidade humana. Quer dizer, é um eu desvinculado do dramatismo da vida diária em cujas esferas se prova a veracidade espiritual do Ser.

  Falou-se de um eu superficial, baseado no conceito fisicalista da vida, uma vez que para a filosofia oficial o homem não possui profundidade espiritual nem existencial, esta o considera uma ''massa fisiológica" e um mecanismo sem mundo interior. Mas o pensamento tem apetências que se tornam imperativos em todos os níveis ideológicos. Estas apetências são causadas pela sede de verdade que existe no eu e se sobrepõem ao físico e corporal, porque nisso está a vida do homem e dos seus processos interiores e exteriores.

  Que é o eu? pergunta a filosofia, ao que se pode acrescentar: quem sou eu? Nestas perguntas se concentra a essência ontológica do Ser e do mundo. São duas perguntas que persistem nas investigações filosóficas. O que e o quem constituem o saber ontológico que perdura com muito valor num momento do homem em que tudo muda e se confunde.

  Afinal, existe o eu para "algo" ou é o resultado de uma cega casualidade? O eu é uma entidade com dimensões ainda desconhecidas ou só existe para entrar no nada?

  Dir-se-á que estas inquietudes foram experimentadas pela alma humana em todos os tempos do planeta. Mas aqui, pela sua urgência, pode peguntar-se: quem deu sobre elas uma resposta capaz de satisfazer a alma da humanidade? Quem demonstrou por bases experimentais que o eu é um Ser profundo com dimensões desconhecidas? Quem demonstrou que no eu físico pode estar o eu metafísico?

  Foi esta última sempre aceite teoricamente, o que nada representa perante o mundo material da inteligênciaAgora trata-se de uma demonstração material, da mesma carne do homem, de uma metafísica existencial e viva do eu. Pois bem, aspirar a esta demonstração não é estar no campo de uma "má filosofia", mas buscar o homem e a vida como realidades espirituais que se sobreponham a todos os conceitos niilistas do Ser.

  O eu, porém, sempre sedento de infinito, não se detém à direita nem à esquerda da filosofia. O seu Ser profundo se sobrepõe ao conceito de "massa fisiológica" para exprimir os seus brados existenciais. A consciência moderna não se aquietará perante suposições teóricas; se o subjectivo não se transforma em realidade prática e objectiva, o eu prosseguirá reclamando um saber que esteja de acordo com as suas profundidades ontológicasSeguirá reclamando "direitos espirituais", posto que intui que existe nele um Ser que luta por instalar-se como uma realidade no mundo. É como um novo Ser que é vida com disposições espirituais bem diferentes das do passado, ansioso de encarnar no histórico e conduzi-lo mediante um novo processo tanto material como espiritual.


A pré-existência como base existencial do eu

  Se o eu existe, é para a vida ou para a morte? Essa ideia de regresso que se agita nas profundezas do eu pode ser tomada como uma prova de sua perdurabilidade espiritual? Se o eu pressente que o seu nascimento é um regresso, isso nos leva a supor que possui um pré-existir e não apenas um existir presente. Intui que regressa porque possui, de facto, um pré-existir ou um tempo anterior ao actual. Sente que regressa porque já esteve em alguma parte, o que assinala que o seu presente existir se baseia em um pré-existir.

  O eu existe hoje porque existiu antes e existirá depois porque existe agora. E por esse encadeamento de pré-existências, existências e super-existências o eu se afirma sobre a base de um novo existir consciente e definitivo. Deste modo, o homem reconhecerá um eu existencial responsável pelo seu crescimento como personalidade espiritual, até alcançar o sentido palingenésico de seu próprio Ser.

  eu ao possuir uma pré-existência poderá projectar-se sobre o passado, o presente e o futuro até perceber o enlace do humano e do divino. Sem pré-existência, o eu não passa de um Ser limitado às relatividades do presente. Existe sim uma conexão com o passado e o futuro. A história possui para ele apenas uma face, que consegue perceber com o seu sentido de presente. Mas com o tempo pré-existente, o eu é um Ser comprometido com o histórico em razão de sua participação no tempo passado que, para a filosofia universitária, carece de vinculação com o eu do tempo presente. O eu está comprometido com o histórico por causa do seu estar no pré-histórico, como o estará, por sua permanência no histórico actual, com o supra-histórico e o futuro histórico.

  A pré-existência do eu é uma prolongação do Ser desde o antigo e, uma projecção para o novo. eu já foi ontem e será novamente amanhã por ser hoje. Como se vê, a ideia da pré-existência determina no eu um enlace dialéctico que esclarece o processo histórico e nos dá essa historiosofia cristã de que falou Nicolas Berdiaev.

  A ideia de regresso experimentada pelo eu é o resultado de sua natureza pré-existenteeu intui que volta de algum lugar porque o seu Ser provém de um passado que, à medida em que se actualiza na sua memória, recorda o seu pré-existir constituído por uma série de extractos existenciais. Do que se infere que o eu é uma sucessão de seres que passaram através de um tempo infinito. Esta sucessão de seres que constituem o eu actual é o que determina a segurança de sua pré-existência e dá fundamento à sua natureza imortal. O eu, em suma, é infinito por causa de seu pré-existir, já que sem ele não seria mais que uma máquina sem capacidade de recordar ou de intuir um regresso mediante a penetração dos seus extractos pré-existenciais.

  A imortalidade do eu tem a sua base na sua própria pré-existênciaNenhum eu pode ser e existir sem que nele exista uma acumulação de idades e de tempos, pois todo o eu é uma formação sucessiva de outros eus cujas imagens estão gravadas na sua memória histórica.Ser é uma teoria de eus que não se decompôs através do processo histórico em razão de uma acumulação de experiências existenciais.

  O eu perdura através do tempo histórico e avança para o seu próprio estado absoluto, ou seja, para a sua perdurabilidade imortal por causa de seu Ser pré-existencialO passado nele traz a intuição, que se traduz pela lembrança de "algo" que regressa para a sustentação do seu Ser imortal. Em suma, a pré-existência do eu é que assegura ao Ser "salvar-se'' do nada, desse nada que destrói tanto o passado como o presente e o futuro, simultaneamente.


O nascimento como um regresso do eu

  O eu existe não obstante as negações que pretendem destruí-lo. Há nele um Ser que existe para algo transcendental, como se penetrasse na realidade material para sobrevir um "existente corporal". Mas o eu não é um existente corporal; a sua existência, quando está no mais profundo de si mesmo, vislumbra ou pressente as novas representações existenciais.

  A isso se poderia objectar o seguinte: o eu nasce como todo o humano, por conseguinte está exposto ao finito e ao relativo; é o resultado de um nascimento fisiológico e é, por isso mesmo, um factor psíquico determinado por combinações fisioquímicas, o que o situaria num plano puramente material. Porque se tem acreditado sempre que tudo o que nasce está sujeito a deteriorar-se, à categoria das coisas finitas. Sem dúvida, a sua afirmação como Ser existencial tem numerosos recursos a seu favor; contudo, o mais decisivo é essa percepção em si mesmo de uma presença anterior no seu Ser actual. Essa presença faz pressentir ao eu que o seu nascimento não é um fenómeno fisiológico, mas um regresso, um caminho pelo qual vem avançando através de um tempo infinito.

  De facto, o eu se sente como um-ser-que-nas-ce, mas sabe que regressa ou que vem de alguma parte. O seu nascimento não anula a sua sede de imensidade; pelo contrário, sem deter-se frente ao que nele é do ponto de vista corporal, continua sentindo-se no seu Ser como ''algo" que regressa, que é alguém que se está a formar através de um mundo que dura pelo espaço e o tempo.

  O que se agita no eu profundo está a comover as bases do saber materialista. Pois, enquanto do fundo do eu surgirem ideias e novas apetências gnosiológicas, o saber resultará sempre inseguro, já que os seus dogmas só se converterão em realidades experimentais se se consegue demonstrar que o eu não é mais que uma "massa fisiológica" ou uma consequência psíquica segregada pelos lóbulos cerebrais.

  Nas profundidades do eu está o novo saber da existência do Espírito. E isto não é uma simples expressão, posto que existe uma dialéctica do eu pela qual a sua natureza e o seu Ser se compreendem como o regresso de alguém que quer fazer-se presente no cenário do mundo. Essa dialéctica do eu é que determinará uma nova realidade nos campos do conhecimento, ou seja, uma realidade mutante e progressiva cujas raízes se encontram nos tempos pretéritos do Ser. Será um eu que se manifestará no temporal para dizer: eu fui, logo sou e serei eternamente.

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Humberto Mariotti (i)Victor Hugo Espírita, Adendo | perguntas sobre o próprio eu, a pré-existência como base existencial do eu, o nascimento como um regresso do eu, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

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