(IV)
Bichat definiaa vida como o conjunto de funções que resistem à morte. Sem tomarmos
puerilmente, à letra, esta definição, perguntamos: qual é a primeira
imagem que nos oferece o exame da estrutura de um vegetal ou de um animal?
Certo, é a coordenação das funções orgânicas que constituem o ser vivente.
E o que será esta coordenação, senão um sistema de forças
destinadas a movimentar a máquina animada?
Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a
ideia dinâmica. Banida esta, o que nos fica é nada mais que um
cadáver.
Se, da descrição do órgão apropriado ao seu
funcionamento e desse conceito de forças particulares remontarmos ao do seu
conjunto e à sua conservação, desde o começo ao fim da vida, concluiremos
com Cuvier que
“a vida é um turbilhão contínuo, cuja directiva, por mais complexa que seja,
permanece constante, tal como a espécie de moléculas
que consigo arrasta, mas não as moléculas individuais em si
mesmas”. Aqui, ainda há que reconhecer a presença da força, que, através da
incessante mutação dos corpos, lhes assegura e conserva a identidade da forma.
Ela – essa força – é pois a característica principal de todo o
organismo. E frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas
individuais circulam perpetuamente, mas a espécie permanece sempre idêntica”.
Essa permanência devemo-la à força.
Que sucederia, por exemplo, se apenas a forma se salvaguardasse e nenhuma direcção virtual presidisse à eleição das moléculas químicas?
Teríamos, a breve trecho, o mais heterogéneo dos corpos imagináveis, ainda que
guardando a perfeição da sua formação.
Imaginai, por exemplo, que o elemento essencial de uma
face clara como a neve, que o coralino de uns lábios, a
gracilidade de uma boca, o matiz expressivo de uns olhos pulcros,
fossem, ocasionalmente, refeitos por moléculas de outra espécie, como, por
exemplo, do iodo, que se torna negro ao contacto da luz, do ácido butírico,
fundente ao Sol, ou de um sal qualquer, solúvel pela humidade, etc... Que
belos espécimes daria assim a Humanidade! E contudo, eis aí ao que se chega,
quando negamos a existência de uma força vital.
Passando do indivíduo à espécie, ainda aí notamos o
predomínio necessário da força. Se cada indivíduo se mantém vivo, é graças à
sua dinâmica íntima. Se
as espécies vegetais ou animais permanecem, é graças à força inicial que, só
ela, pode caracterizar a identidade da espécie, transmissível à descendência e
existente em estado latente,
ou sensível, no óvulo vegetal como no óvulo animal.
Como pôde um carvalho enorme sair da ínfima bolota caída no solo? Como
se fez carvalho, ao lado de uma vagem que
expeliu a faia; da pinha, que engendrou o pinheiro; da amêndoa, que se fez
tumba do pilriteiro desdobrando-se
em bagas escarlate; ou ainda, ao lado do grão de trigo e de aveia, na mesma
terra, com o mesmo sol e a mesma chuva; em suma: nas mesmíssimas condições?
Porque será que os elefantes de hoje são exactamente
idênticos aos de que Pyrrhus se
utilizava, há 20 séculos, e o corvo de Noé (se é que Noé existiu) se vestia do
mesmo luto destes que aí sulcam os nossos céus de Setembro? Certo, porque
o germe orgânico não
reside somente na estrutura anatómica, mas, também e sobretudo, numa força especial que se
encarrega, sem enganos possíveis, da organização do ser, de modo a
não dar a um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho uns pés de pato!
Afirmando tão apaixonadamente a inexistência de
uma força especial nos seres vivos e que a vida mais não é que o resultado da
presença simultânea das moléculas constitutivas do animal ou vegetal, justo seria procurassem, os arautos de tão audaciosas
afirmativas, comprová-las experimental e ainda que modestamente. Improvisai um
único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós nos renderemos. Vejamos: aqui está
uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potássio, fosfato de soda,
cal, magnésio, ferro, ácido sulfúrico e sílica.
Sois vós mesmos a confessá-lo (i) que
neste frasco está contido o princípio vital, completo, de plantas e animais. Fazei,
portanto, uma plantinha, um só bichinho... Como assim? Calai-vos? Nada
obstante, sois patrícios de Goethe! Não
vos lembrais do lúgubre laboratório de Wagner, atochado de aparelhos
esquisitos, disformes; de fornos e cubos destinados a fantásticas experiências?
Ele, Wagner, já tem nas mãos a garrafa.
Apelai à vossa memória e ouvi a cena maravilhosa do
eterno Mefistófeles a dialogar com o alquimista.
Wagner, atento ao forno: “O sino tocou, uma
percussão formidável! Abalou as paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza
desta expectativa tão solene não pode prolongar-se mais. As trevas como que se desfazem,
estou a ver no fundo da lente algo que reluz (ii) como o
carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante, a clarear de mil facetas a
escuridão ambiente. Agora, uma luz pura, branquíssima. Bem, desta vez espero
que não escapará... ah! maldição, quem bate assim à porta, justamente...
Mefistófeles: (entrando) – Que há?
Wagner: (baixinho) – Está a fabricar-se um
homem...
Mefistófeles: – Um homem? Mas, que amoroso casal
meteste aí nessa chaminé?
Wagner: – Ora, valha-me Deus! Essa velha fórmula
de procriar já foi, há muito, considerada de mero gracejo. O foco subtil de
onde brotava a vida, a força suave que de si exalava, dava e voltava a dar,
destinada a formar-se por si só, alimentando-se a princípio das substâncias
circunvizinhas e, a seguir, de substâncias estranhas, tudo isso caducou e
perdeu o seu prestígio. Se o animal ainda lhe encontra prazer, ao homem
convém, por dotado de mais nobres qualidades, uma origem mais pura e mais alta.
(Voltando-se para a fornalha) Quanto brilho! veja... De agora em diante, é
lícito esperar que, se de cem matérias, e por mistura – pois tudo depende
da mistura – conseguimos com facilidade preparar a massa humana,
aprisioná-la num alambique, o "cohober" a preceito,
a obra se completará em silêncio.(Voltando-se de novo para a fornalha) É o
que está a acontecer: ela se clareia e mais convencido me deixa, a cada
instante. Tentamos, judiciosamente, experimentar o que se chamava –
mistérios da Natureza – e o que ela produzia outrora, organizando,
fazemo-lo hoje cristalizando.
Mefistófeles: – A experiência vem com a idade e a
quem quer que tenha vivido o bastante, nada acontece de novo, na Terra. Por
mim, confesso que nas minhas viagens encontrei, variadíssimas vezes, muita
gente cristalizada...
Wagner: (que não tirara o olho de sua lente) – A
coisa está crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais e a obra estará
pronta. Não há ideal grandioso que à primeira vista não pareça insensato;
contudo, doravante, queremos enfrentar a chance e dessa arte, futuramente, um
pensador não deixará de fabricar um cérebro pensante...
(Contemplando a redoma extasiado) O cristal
retine, vibra; comove-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se
aclara, o sucesso não tarda. Já estou a ver a forma elegante de um homenzinho
gesticulando... Que mais desejar? Que pode o mundo querer de melhor? Eis o
mistério a desnudar-se! Atenção! Esse timbre se articula, vozeia, fala!
Homúnculo: (de dentro da redoma, para Wagner)
– Bom dia, papá! então sempre era verdade, hein?
Toma-me, aconchega-me nos teus braços com ternura, mas, olha, não me apertes
muito, senão... quebras o vidro. Isso é a propriedade das coisas: ao que é
natural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao contrário, reclama o
limitado. (Voltando-se para Mefistófeles) Tu aqui? Velhaco... Mas,
ainda bem que o momento é azado e
dou graças porque a boa estrela te trouxe até nós. Já que estou no mundo, quero
agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu para me desbravares o caminho.
Wagner: – Uma palavra ainda... Até aqui, muitas
vezes me vi indeciso, quando jovens e velhos me vêm acumular de problemas.
Ninguém, por exemplo, ainda compreendeu como a alma e o corpo, tão intimamente
conjugados e ajustados entre si, ao ponto de os julgarmos para sempre
inseparáveis, vivem em luta sem tréguas e chegam a envenenar a própria
existência... e depois...
Mefistófeles: – Alto lá! Eu antes quisera saber a
razão por que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão que te há
de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e o petiz deseja fazê-lo...“
Voltai, porém, à página do libreto. Vamos ao 1º acto,
é Fausto, é a velha e a
nova Ciência quem fala:
"Como tudo se movimenta para o trabalho
universal! Como operam e cooperam as actividades todas, umas pelas outras! Como
sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão os seus vasos de ouro, a
tocá-los com as suas asas que exalam, neste vaivém, do céu à Terra, como uma
bênção de universal harmonia!
“Estupendo espectáculo! Mas... ó tortura! nada mais
que espectáculo! Onde apreender-te, ó Natureza! Ó fontes de toda a vida!
que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se voltam os seios
desnutridos, correis aos borbotões, inundais o mundo, enquanto em vão me
consumo.”
Sim. Em vão vos consumis, tentando reivindicar para o
homem a obra do Criador. E em vão que escreveis: A omnipotência
criadora é a afinidade da vida... Com todo o vasto conhecimento da matéria e
das suas propriedades, não conseguistes engendrar sequer um
cogumelo.
Creio, porém, que de os fazeres decimais vos
desculpais. O que não podemos, pode a Natureza, visto que ela ainda é mais
hábil que nós. (Bela modéstia, na verdade.) Mas, então, que fazeis da
inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não haver espírito na Natureza?
Mas vamos adiante. Ao demais – acrescentais argutamente –, se ainda não
produzimos seres vivos por processos químicos, temos, todavia, produzido
matérias como, por exemplo, o ácido característico da urina, e o óleo essencial
da mostarda (éter alilsulfociânico), o que muito nos lisonjeia. Detenhamo-nos,
pois, um instante, nas decisivas manipulações destes ilustres químicos.
A partir dos fins do último século, como adverte Alfred Maury (iii),
tem-se reconhecido que as matérias que se desenvolvem nos vegetais e nos
animais, recolhidas dos seus restos, encerram quase exclusivamente carbono,
oxigénio, hidrogénio e azoto. Daí se concluiu serem estes quatro corpos os
princípios básicos elementares de todas as substâncias orgânicas e que se
encontram muitas vezes combinados com alguns outros corpos simples e diversos
sais minerais.
Este primeiro resultado nos ensinou que, se
vegetação e vida são forças à parte, insusceptíveis de se confundirem com o
simples movimento, com a afinidade e a coesão, elas de si nada criam e apenas
apropriam o material do reino mineral que as rodeia. De facto, os quatro
elementos orgânicos existem inteiramente formados na atmosfera. O ar é um
composto de oxigénio e azoto, associados à pequena porção de ácido carbónico,
ou seja de carbono combinado com o oxigénio. A atmosfera tem, ao demais, em
suspensão, o vapor de água e ninguém ignora que a água é um composto de
oxigénio e hidrogénio. Portanto, as matérias orgânicas tiram desta massa
fluídica e inorgânica que as envolve e compenetra o nosso globo os elementos de
sua composição. Quanto às outras substâncias encontradas, por assim dizer,
acidentalmente, na sua trama, são apropriadas ao solo. As plantas os sugam e os
animais, nutrindo-se das plantas, os assimilam.
A Química pode criar imediatamente esses elementos
orgânicos e foi o Sr. Büchner o
primeiro a proclamá-lo, com entusiasmo. Os químicos fizeram o açúcar de uva bem
como vários ácidos orgânicos. Criaram, dizem, diferentes bases orgânicas e
entre elas a ureia,
substância orgânica por excelência, em desmentido aos médicos que os acusavam
de incapazes de obter produtos do organismo. Dia a dia vemos aumentarem as
experiências químicas no sentido de criar combinações. O Sr. Berthelot conseguiu
engendrar, de corpos inorgânicos, os derivados das combinações de carbono e
hidrogénio e esta descoberta, mau grado ao seu desacordo com a natureza
orgânica, forneceu um ponto de partida para a composição
artificial dos corpos orgânicos.
Hoje se fabrica o álcool e perfumes preciosos do
carvão vegetal; da ardósia extraem-se velas; o ácido prússico, a ureia, a taurina e quantidade de
outros corpos, havidos outrora por só criados de substâncias vegetais ou animais,
tornam-se obteníveis de simples elementos da Natureza inorgânica. Assim,
se apagou, graças as estas manipulações, a clássica distinção entre
a Natureza orgânica e inorgânica.
Em 1828, produzindo ureia artificial, Wöhler derrubou
a velha teoria que sustentava só possíveis as combinações orgânicas engendradas
por corpos orgânicos. Em 1856, Berthelot criou
o ácido fórmico com substâncias inorgânicas, isto é, óxido carbónico e água,
aquecendo estas matérias com a potassa cáustica e sem cooperação
de quaisquer plantas ou animais. Logo após, conseguiram directamente
destes elementos a síntese do álcool. Chegaram mesmo a produzir a gordura
artificial do ácido oléico e da glicerina, duas substâncias que se podem obter
por processos exclusivamente químicos, e aí temos um dos resultados mais
extraordinários até hoje conseguidos na Química sintética.
Destes dados, o autor de Força e Matéria (Büchner) concluiu
que importa banir da vida e da Ciência a ideia de uma força orgânica, produtora dos
fenómenos da vida, de maneira arbitrária e independente das leis da
Natureza. Tal como ele, também repelimos o arbitrário, mas guardamos a força. Ele
nos garante que a pretendida distinção rigorosa entre o orgânico e o inorgânico
é meramente arbitrária. Mas, nisso, tem contra si os representantes da
vida terrena, na sua totalidade.
Sem embargo, Carl Vogt acrescenta
que, “alegar a força vital, não passa de circunlóquio para
mascarar a ignorância, espécie de alçapões de que a Ciência está cheia e pelos
quais se salvam sempre os espíritos superficiais, que recuam perante o exame de
uma dificuldade, para somente se contentarem com milagres imaginários”.
Neste caso, a doutrina da força vital representaria hoje uma
causa perdida. “Nem os esforços dos naturalistas místicos, no intuito de
reanimar essa sombra; nem os lamentos dos metafísicos esconjurando as
pretensões e a irrupção iminente do materialismo fisiológico e contestando-lhe
o contingente filosófico; nem as vozes isoladas que assinalam os factos
da Fisiologia ainda obscuros; nada disso pode salvar a força vital de
próxima e completa ruína.
Há alguns anos, Bunsen e Playfer
mostraram – diz o autor de A Circulação da Vida, e Rieken confirmou
logo após – que é possível obter cianogénio (combinação de azoto e hidrogénio)
à custa de substância inorgânica. Por outro lado, sabemos que o hidrogénio, no
momento em que se separa das suas combinações, pode unir-se ao azoto para
formar o amoníaco. De resto, pode-se ir do cianogénio ao amoníaco. Basta expor
ao ar o cianogénio dissolvido em água, para que se vejam flocos pardacentos
desagregando-se do líquido, sinal de decomposição, em seguida à qual
encontramos o ácido carbónico, o prússico, amoníaco, oxalato de amoníaco
e ureia, dissolvidos no
líquido. O ácido oxálico é uma combinação de carbono e oxigénio que, pela mesma
quantidade de carbono, não contém senão três quartos do peso de oxigénio e
ácido carbónico. O ácido oxálico é o causador do paladar acidulado de azeda, da
oxálida e de muitas outras plantas. É um ácido orgânico que, conforme acabamos
de dizer, podemos preparar mediante corpos simples, sem o concurso de
qualquer organismo.
“Assim, ficamos agora a conhecer três substâncias –
exclama Moleschott –: uma
base orgânica – o amoníaco; um principio acidulante orgânico – o cianogénio, e
um ácido orgânico – o oxálico, que podemos fabricar com corpos simples.
“Não há muitos anos, acreditava-se possível preparar
um e outro mediante decomposição de combinações orgânicas as mais complexas,
mas ninguém imaginaria obtê-las de elementos simples. No amoníaco temos
uma combinação de azoto e hidrogénio, sem partilha de corpos orgânicos. Este
enigma, que a esfinge da força vital nos antepunha como espantalho, para
impedir o nosso avanço na preparação artificial das combinações orgânicas, foi
resolvido por Berthelot.
Ele derrubou a esfinge e os seus adoradores, substituindo-os por uma plêiade de
investigadores, a cujas mãos passou os fios que lhes deverão servir para levar
por diante a trama das descobertas, a fim de reproduzirem todas as peças do
mundo orgânico.”
Acrescentamos que se obtém hoje o ácido acético,
fazendo passar por três estados um combinado de cloro e carbono, que são:
percloreto de carbono, ácido cloracético e cloreto de carbono, bem como que a
combinação directa de carbono e hidrogénio dá a síntese do acetileno (iv).
Mais fácil ainda é preparar o ácido fórmico só com o
auxílio de corpos simples,
qual o conseguiu o professor do Colégio de França, operando com a potassa
húmida sobre o gás óxido-carbónico, num globo de vidro à prova de fogo e por
espaço de setenta e duas horas, à temperatura de 100 graus (v).
De resto, a Natureza extrai as substâncias
orgânicas da mesma fonte a que recorrem os químicos nas suas experiências de
laboratório.
Certamente, palmeamos a duas mãos (mesmo porque com
uma só fora impossível) essas admiráveis tentativas
da Ciência e não é a nós que poderiam imputar embargos ao génio criador do
homem. Ele, o homem, está na Terra para conhecer a Natureza e assenhorear a
matéria. O conhece-te a ti mesmo dos antigos se traduz nos nossos dias
pelo estudo do mundo exterior e é por este estudo fecundo que verdadeiramente
aprenderemos a conhecer-nos a nós mesmos.
Acreditamos, com o Sr. Maury, que o alcance de
tantas descobertas compensa de sobejo o esforço para as compreender. Que
ciência nos poderá mais cativar do que a que nos revela a matéria de que nos
constituímos e nos alimentamos; as substâncias com as quais estamos em
contacto, os efeitos físicos que se operam dentro e fora de nós, onde transitam
e como rejeitamos as partículas incessantemente assimiladas?
Não são assuntos de somenos, estes, particularismos e
instantâneos: antes são problemas que abrangem a humanidade física na sua
totalidade, é o mundo dos seres a que pertencemos que está em jogo.
Despendendo amiúde muito trabalho e inteligência para
penetrar no labirinto de mesquinhas controvérsias e factos insignificantes,
como descurarmos o que mais interessa, ou seja, esta maravilhosa Natureza no seio da qual
nascemos, vivemos e morremos; que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a
todas as gerações os princípios essenciais de sua própria existência?
Mas, nem por isso nos associamos às pretensas consequências
que os senhores materialistas deduzem, consequências que os senhores Berthelot, Pasteur, e os químicos
práticos são os primeiros a repudiar. Os materialistas presumem ter a
chave mais difícil do enigma, uma vez que podem produzir gás artificial com os
corpos simples. Misturando-se cianato de potassa e sulfato de
amoníaco, a potassa combina-se com o ácido sulfúrico e o ácido ciânico com o
amoníaco. Esta última combinação não é cianeto de amoníaco mas
sim ureia. Admirai agora a
ilação: “É graças a esta brilhante descoberta que Liebig e Wöhler abriram
dilatadas perspectivas nessa via e conquistaram um eterno galardão, dando, um tanto
involuntária e não preconcebidamente, a prova de que, doravante, a flama da
vida se resolve em forças físicas e químicas.” Que honra para Liebig e Wöhler o
serem assim arrastados para as nascentes do Aqueronte. Os nossos
adversários gostam desse rio e das suas margens sombrias. “Certo – acrescentam
–, o químico isento de preconceitos, que não fala ao serviço do trono e do
altar, contando tranquilamente com a vitória certa, pode sorrir do pobre
filósofo, cujo saber não ultrapassa o conhecimento da ureia e que acredita impor
limites ao poder do fisiologista.” Que altar e que trono nomeariam
ministros uns tais lógicos? A própria Ciência vive retraída no seu
santuário e os deixa rondar o templo, ao repicar dos sinos e fazer evoluções.
Que conclusão definitiva tira a escola materialista
destas manipulações? A de que a Química e a Física nos oferecem provas
evidentes de que as forças conhecidas,
das substâncias inorgânicas,
exercem a sua acção,
tanto na Natureza viva como
na morta.
Pela mesma razão que os obrigou a divinizar a matéria,
em substituição a Deus, vemo-los animar, sem cerimónias, a matéria
para destronar a vida.
/…
(i) Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.
(ii) A
ideia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum na feitiçaria medieval.
O Papa Benedito IX expeliu sete Espíritos de um açucareiro.
(iii) Revue des Deux Mondes – 1º de
Setembro de 1865.
(iv) Berthelot – Chimie
Organique Fondée sur la Synthèse.
(v) Sobre os recentes progressos da Química
orgânica, convém consultar os interessantes relatos das sessões da Academia,
principalmente nestes últimos tempos.
Camille
Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – A
Vida 1, Circulação da Matéria (4 de 5), 20º fragmento da
obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)
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