Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (II)

   À porta do palácio, formou-se um pequeno cortejo: os amos, os porta-estandartes, os convidados, os áulicos e os amigos, que desceram na direcção da Praça do Campo, já regurgitante.

  Diante das autoridades presentes, fez-se o sorteio dos bairros inscritos, dos quais seriam destacados os que deviam competir. Logo após, começou o corteo. As multidões vibraram de entusiasmo.

  Evocando os dias passados da cidade, as suas glórias e as suas conquistas, as suas tradições e o folk-lore, desfilaram, pela ordem de importância, os representantes das diversas classes, tendo à frente as Entidades Governamentais e os componentes dos diversos bairros inscritos, destacando-se nas suas cores características. Crianças ostentavam bandeiras dos contrada. Cada bairro se faz representar por 13 figurantes. O jogo das bandeiras brilha e nele os exímios acrobatas conquistam ensurdecedores aplausos: é nota viva, comovedora, agradável na festa. E atrás, encerrando o cortejo, aparece o Carroccio, puxado por quatro bovinos seleccionados, conduzidos, a seu turno, por dois homens encapuzados. Nesse carro de guerra está o Pallium – donde derivou o nome da festa – que será entregue ao vencedor, e na qual está estampada a efígie de Maria de Nazaré. O Pallium faz-se guarnecer por quatro trompetistas, a rigor, que anunciam a hora culminante.

  Tem início, então, a grande mossa dos animais escolhidos, representando os bairros atribuidos pelo sorteio. Os animais de raça, adestrados para disputa, partem com desabalada sofreguidão, enquanto os partidários se esganam aos gritos, louvando e encorajando os seus jóqueis preferidos. A corrida sobre lajes derrapantes é feita de emoções e receios. Alguns animais escorregam e atiram longe os condutores, que se ferem no atrito com as pedras luzidias.

  O Conde Lorenzo, entre as autoridades, na tribuna de honra, freme e alardeia as excelências do seu palafrém, do ginete florentino e estertora, ansioso.

  Girólamo, graças às deferências do Senhor Bispo, que a seu turno indicou ao Arcebispo aqueles que deveriam compor o Carroccio, como guardas de honra, figura em destaque, deslumbrado, provocando inveja e erguendo as insígnias da sua herdade e dos sítios que representava.

  A chegada dos concorrentes deu ao Bairro Oca a honra de receber o Pallium. Desceram da tribuna o Conde e a Condessa di Castaldi, que, ao lado do florentino, empapado de suor, receberam das mãos de Sua Eminência o cobiçado troféu.

  Carlo, ovacionado delirantemente, agradeceu o aplauso natural, espontâneo, festivo. Era o homem do dia. Os Castaldi foram cercados pelos amigos, pelos bajuladores, pelo povo e, com o animal, deixaram-se conduzir pela multidão, que carrega o ginete, entre delírios e animações. As cordas que isolam da pista a multidão são arriadas e toda a praça se transforma num imenso palco, para as festas regionais, bailes, teatros, espectáculos improvisados, e grupos alegres, bebendo em odres trabalhados o capitoso vinho, relaxam-se no prazer.

  Girólamo, conquanto os triunfos colhidos, martiriza-se com o êxito daquela estranha personagem, cuja lembrança o aflige e por quem nutre crescente despeito, que se transforma em surto de ódio.

  À noite, o Palácio Castaldi está regurgitante e o nobre casal abre-lhe as portas aos amigos que os vão saudar, homenageando-os pela honra do alto prémio conquistado. Empalmando as apostas numerosas, Dom Lorenzo retribui regiamente ao servo, atestando a generosidade de que se encontra possuído, e concede-lhe a liberdade de viver intensamente quanto possível aquela noite, que lhe será inesquecível.

  Longas serão as horas de oferendas a Baco e às dissipações. Tem-se a impressão de que todo o povo delira e não há problemas na Siena triunfadora. Ninguém recorda o amanhã. “Hoje, agora, é o nosso dia, a nossa hora!” – gritam bandos álacres, agitados.

  Tendo acompanhado o cortejo que seguiu, pressuroso, à casa dos sogros, Girólamo, ante a presença indesejável do moço engalanado pelos louros da vitória, cumpre o dever de banquetear-se e rever os amigos, retirando-se depois, na direcção das tabernas e casinos, onde a ilusão venenosa se desprende a peso de ouro e se faz colher com as ávidas mãos da loucura. Desgarrando-se de Francesco, que, após conduzir a esposa ao palácio, retorna aos ninhos de encantamento da cidade, misturando juventude e excessos, acorre ao casino “La Conchiglia”, para fruir as horas de enlevo e embriaguez.

  Vencido quase pelos vapores do álcool e do fumo, que emprestam ao grande salão, o moço senense divisou Carlo numa banca larga de dados, exibindo as qualidades de ganhador.

  – “Feliz no jogo, infeliz no amor”, – cantarola, abraçando mulheres atormentadas e profissionais da luxúria. Apresentando a bolsa recheada de moedas, o hábil cavaleiro, invejado e comentado, desafia ao jogo. Espicaçado pela inveja e por injustificável ciúme, Girólamo aceita a provocação, e a sala silencia para ouvir, sentir e viver a disputa. O ar abafado, pestilento, enche todos os recantos. De quando em quando, rebentam gargalhadas e gritos. Os dados correm no pano de feltro verde bem cuidado, as apostas aumentam e o Conde, jogador ardiloso e inveterado, reduz o adversário a mísera condição, para zombaria geral.

  – “Feliz nos cavalos, desditoso nos dados, impotente no amor” – baldoa Girólamo, picado pela jactance et forfanterie que o dominam acerbadamente.

  Vencido e humilhado naquele ambiente infeliz, ferido nos seus brios de ganhador do palio, Carlo sente que se deve desforçar do rival. Sai da sala em busca do ar da noite. Precisa pensar. Algo conspira contra ele, mas o seu signo o protege, – pensa revoltado. – Doestos e chacotas zombam, na comparação que fazem dele com o nobre Conde, com quem desejou duelar nos dados…

  Não obstante a hora avançada, a cidade continua febril e a taça do prazer generosamente derrama os seus perfumes abundantes e fáceis.

  Depois de caminhar até à Via del la Sapienza e atingir a Piazza de San Domenico, (i) o rapaz recebe as lufadas do ar brando, que sopram na larga área fronteira ao templo imponente. Olha o santuário, que é uma das glórias da cidade; aquele edifício teve o início da sua construção por volta de 1225 e o término somente 240 anos depois, estando situado em local de destaque, donde oferece ampla visão da cidade, em várias direcções. Sentando-se na relva macia, Carlo rebusca a imaginação:

  “O Conde Cherubini – pensa, estimulado pelo ódio que o domina –, após espezinhá-lo, vencido ante todos… Embora sob o estigma das tragédias que deveriam esmagar qualquer homem, aparenta triunfo e galhardia… Conforme lhe narraram os pajens e cavalariços, falou-se que ele bem poderia ter contribuído para que a fortuna do duque lhe viesse parar às mãos, flutuando em abundante rio de sangue e crimes… O duque di Bicci…”

  No mundo espiritual, o duque concertava um plano para atirar Girólamo entre as grades do cárcere ou no laço da forca. Estimulara, pela inspiração, a jovem Senhora Lucrécia a cair-lhe nos braços, a fim de que Francesco o convidasse a duelo reparador, não colimando o desejo. Ajudado, agora, pela conjuntura das Leis Desconhecidas para ele, – Leis que trouxeram Carlo a Siena –, eis surgida a oportunidade ambicionada pelo inimigo desencarnado.

  Aproximou-se do moço em reflexão, cujo pensamento desordenado conseguia perceber, conquanto não apreendesse a forma como lhe chegavam as vibrações mentais, começou a falar, acusador, acolitado por Assunta, em desalinho total, na sua deformação espiritual – vítima do homicídio e vítima, simultânea, do novo sicário que a exauria em crua vampirização psíquica, roubando-lhe todas as energias e fazendo-a tresloucada, em longo curso de desesperação

  Em lugar, distante da bulha, debaixo do aplauso das estrelas miúdas e faiscantes, engastadas na transparência do céu de verão, Carlo interrogava-se, freneticamente. A perseverança do ódio consegue, não raro, vencer os negligentes do amor e os comparsas da insensatez, graças à constrição actuante do pensamento que vibra destruição, aniquilamento.

  Mergulhado cada vez mais nas recordações, exigindo da mente um esforço raro, passou a sintonizar com as duas entidades desditosas que lhe compartilhavam a aversão. Estabelecida a ligação psíquica, pôs-se a recordar a infância, os primeiros anos da juventude em Florença, quando pastoreava as colinas de San Miniato… (San Miniato brilhou-lhe na mente, como o espocar de fogos.) reviu a cena de sangue. Sim, era de lá que o conhecia, era ele o assassino, cujo crime vira naquela primavera do horror – reflectiu.

– Na tela mental, estimulada pelas evocações e sincronizada com o pensamento dos verdugos espirituais, delineou-se o rosto de Assunta, debatendo-se no punhal certeiro do criminoso em fúria. Evocou o desespero que dele se apossara – mantendo vivas as tintas do crime hediondo e do soberbo assassino –, fazendo-o correr logo recuperou as forças e o comando das pernas. Sim, não havia dúvidas… Saberia cobrar a dívida ao infame. “À quelque chose malheur est bon.”(*)

(*) “Para alguma coisa serve a desgraça.”

  “Na ocasião, – continuava a desfilar o novelo das recordações –, comunicara ao pai, que o acompanhara ao local  e nada encontrara, senão os sinais da terra revolvida e as manchas de sangue dos animais em fúria, como lhe dissera o genitor, ao aplicar-lhe algumas bastonadas, afirmando-lhe que delirava… E como nada mais soubesse, perdurou-lhe a dúvida. Agora, tinha a certeza.”

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (2 de 3) 27º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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