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segunda-feira, 1 de maio de 2017

o grande desconhecido ~


VII – A Medicina e O Espiritismo |

Por que motivo, o Espiritismo, desde o início da sua elaboração doutrinária, teve de enfrentar a mais cerrada oposição das corporações médicas em todo o mundo? Por estranho que pareça, o motivo fundamental é simplesmente este: a Ciência Espírita abre novas e grandiosas perspectivas para o desenvolvimento da Medicina, oferecendo-lhe nada menos do que a metade desconhecida da realidade humana e das possibilidades terapêuticas de que ela necessita. 
Pasteur, que não era médico, mas químico, teve de enfrentar a mesma oposição por razões semelhantes. No seu tempo, a Medicina conhecia apenas um quarto da realidade humana e Pasteur oferecia-lhe mais um quarto. Foi ridicularizado e espezinhado por esse gesto de atrevimento. Kardec era professor de ciências médicas e exerceu em Paris, como o demonstra André Moreil na sua recente biografia do Codificador. Mas nem por isso escapou da excomunhão científica. É curioso o paralelo entre eles. Pasteur descobriu e revelou, provando-o cientificamente, a existência do mundo invisível das bactérias microbianas, que respondem, juntamente com as viroses, pela totalidade das doenças infecto-contagiosas, e descobriu a maneira científica de prevenir e curar essas doenças. Kardec descobriu e revelou cientificamente o mundo invisível dos espíritos infestadores e, descobriu a maneira, científica, de prevenir e curar essas infestações. Estes dois mundos invisíveis não estão localizados no Além, mas aqui mesmo, na Terra, envolvendo e, interpenetrando o mundo visível. Porém, a Medicina é um organismo vivo do mundo das ciências e, como todo o organismo biológico ou conceptual, é dotado do instinto de sobrevivência, repelindo instintivamente toda e qualquer interferência estranha à sua estrutura.

Além disso, temos de considerar que descobertas desta natureza rompem sempre ameaçadoras fendas na estrutura superior das civilizações. A civilização científica, que nascera de brechas abertas na civilização teológica, enfrentando batalhas impiedosas para se desenvolver, reagiu com a mesma violência instintiva na defesa da sua estrutura. Rémy Chauvin, director do laboratório do Instituto de Altos Estudos de Paris, considerou recentemente a existência de uma doença alérgica no meio científico e chamou-lhe de alergia ao futuro. É essa alergia, o novo nome do instinto de sobrevivência, que ainda hoje mantém acesa a luta defensiva da Medicina contra o Espiritismo, não obstante as comprovações científicas actuais de toda a realidade espírita.

Espiritismo aliou-se à Medicina desde os primórdios, a partir das investigações sobre as curas espíritas, realizadas na Clínica do Dr. Demeure, em Paris, a pedido de Allan KardecA terapêutica espírita desenvolveu-se à revelia da Medicina, ao contrário do que Kardec desejava, revestindo-se de aspectos anti-espíritas. Mas, apesar disso, os espíritas não tomaram, salvo raras excepções, geralmente individuais e da parte de pessoas incultas, a posição das religiões ou de seitas terapêuticas milagreiras. É grande o número actual de médicos espíritas e existem até mesmo associações de Medicina e Espiritismo, como as do Rio e São Paulo. Esse é o aspecto institucional do problema, sem dúvida importante, porque dele depende, em grande parte, a aceitação da verdade espírita nos meios culturais oficiais, facto que talvez possa ocorrer no próximo milénio, com o desenvolvimento da Civilização do Espírito. A situação actual é curiosa: só a Filosofia Espírita goza de cidadania oficial, enquanto a Ciência Espírita e a Religião Espírita continuam em posição marginal. Essa marginalização é a mesma que o Cristianismo sofreu no mundo romano, agora atenuada pelas conquistas do mundo moderno no tocante aos direitos humanos. Espiritismo não é nem pode fazer-se (uma) religião institucionalizada e muito menos oficializada em parte alguma, porque os seus princípios são contrários a toda a sistemática fingida e fechada. O que importa no Espiritismo, como Kardec acentuou desde o início, não é a forma, mas a substância. Toda a tentativa de institucionalização exige hierarquia, que implica autoridade e é acção autoritária. O fundamento ético do Espiritismo é a liberdade, sem a qual não há actividade criadora nem responsabilidade individual. Por isso, só a associação livre convém ao Espiritismo, que perde com isso em representação social, mas ganha em compensação no tocante à responsabilidade individual.

Nas suas relações com as instituições sociais e políticas da actualidade Espiritismo encontra muitas dificuldades, mas a liberdade tem o seu preço. É preferível lutar com dificuldades externas, a expor-se ao perigo das congestões internas. Por toda a parte, no nosso mundo, pululam os mestres pretensiosos e os tiranetes vaidosos, prontos a servirem-se dos títulos e dos cargos oficiais para esmagarem a liberdade. Muitos espíritas não compreendem esse problema e tentam sujeitar o movimento espírita a cúpulas pretensiosas. Tratando desse tipo de institucionalização, fatalmente dogmáticaKardec recomendou a multiplicidade dos Centros Espíritas pequenos, unidos por laços de fraternidade, e Emmanuel, através da mediunidade de Francisco Cândido Xavier, declarou numa mensagem orientadora: "A Religião organizada é o cadáver da Religião". Isso porque a organização religiosa está sempre sujeita à dominação dos fanáticos e ambiciosos. A ambição do poder asfixia o espírito democrático. O Espiritismo iniciou no campo religioso a era democrática que Jesus lançara no seu tempo, mas que morreu asfixiada com o fracasso da Comunidade Apostólica.

No tocante às relações do Espiritismo com a Medicina a institucionalização "espírita igrejeira" cortaria qualquer possibilidade de entendimento. O Espiritismo não tem por objectivo opor-se à Medicina, mas ajudá-la na melhor compreensão da natureza humana e dos recursos naturais de que esta pode dispor para o seu maior progresso. Ajudando a Medicina a completar a imagem parcial do homem, de que dispõe, o Espiritismo a levará, como já vai acontecendo, à utilização dos recursos insuspeitados do espírito. A mediunidade, fonte inesgotável de recursos espirituais no combate às doenças, que seria renegada pelos médicos. A finalidade do Espiritismo nesse campo é colocar os recursos mediúnicos nas mãos de médicos esclarecidos, para benefício de toda a Humanidade. As descobertas de Kardec seriam assim postas à disposição de todos, como o foram as de Pasteur. Esse é um dos motivos da exigência kardeciana de mediunidade gratuita. A profissionalização mediúnica seria um atentado à própria finalidade do Espiritismo, sempre aberto a todas as investigações para melhor servir a todos e em todos os tempos.

Kardec intuiu desde logo esse problema, recorrendo à Clínica Demeure para o controle dos casos de mediunidade curadora. Disso resultou a conjugação médico-espírita, hoje em franco desenvolvimento, evitando o divinismo fanático das seitas religiosas que proíbem aos adeptos recorrer à Medicina. Não somos apenas espíritos, mas espíritos encarnados, dotados do corpo material que é objecto dos estudos e da terapêutica médica. A maioria absoluta dos espíritas utiliza-se de ambos os recursos, o médico e o mediúnico, no tratamento das doenças. Compreendem que os recursos em causa atendem aos dois elementos da constituição humana, o material e o espiritual, sendo por isso necessário conjugar as duas acções terapêuticas, agindo cada uma no seu campo específico. Na proporção em que se acentuar a evolução espiritual do homem, os recursos espirituais se intensificarão no plano mediúnico, contribuindo para a espiritualização da Medicina. A Medicina espiritualizada pertence aos mundos superiores, entre os quais a Terra brilhará um dia, como planeta vitorioso, apesar de todas as incompreensões e dificuldades desta fase de transição. Compreenderemos então que Deus concede os seus recursos ao homem, na medida em que ele se torna capaz de utilizá-los, sem se demorar na espreguiçadeira do comodismo e da irresponsabilidade.

mediunidade curadora, é hoje mais perigosa do que benéfica, no nosso mundo, porque excita a vaidade e a ambição dos médiuns e dos seus familiares, além dos agudos interesses políticos sempre despertados na comunidade, envolvendo os médiuns em manobras subtis que acabam por afectar a sensibilidade mediúnica e desviar o médium da sua verdadeira missão. Na maioria dos médiuns de cura os primeiros sucessos provocam espanto e humilde respeito pelos espíritos que os assistem, mas a continuidade dos sucessos tornam os factos corriqueiros e o médium acaba convencendo-se de que age por si mesmo. A fascinação do dinheiro e do prestígio social e político, levam o médium à exploração simoníaca dos seus dons. Ao benefício das curas materiais, opõe-se então o malefício das enfermidades espirituais, criando dificuldades e conflitos de toda a espécie. O pior desses males é a situação contraditória em que o médium acaba caindo (por cair), fingindo humildade e cultivando a arrogância, e não raro, na falta da assistência espiritual que se afasta, entregando-se à prática de expedientes condenáveis. As condições morais do nosso mundo ainda não permitem a constância da terapêutica mediúnica ostensiva no planeta. Os médiuns de cura são voluntários da espiritualidade que se julgam capazes de vencer essas condições adversas, mas na maioria fracassam, cedo ou tarde, caindo nas mãos de exploradores visíveis e invisíveis. Com isso aumentam as suspeitas e desconfianças, por parte da Medicina, acrescidas pelo ambiente de competição entre os médiuns e os médicos. Lutas mesquinhas que se desenvolvem, envolvendo famílias e comunidades, num torvelinho absorvente de ódios e disputas desesperadas. O que era uma bênção, transforma-se, então, em maldição. Esses os reais motivos por que a mediunidade curadora de grande eficácia é rara, aparece esporadicamente, facto que também contribui para afastar o interesse científico puro, desse campo de tantas e tão grandiosas possibilidades para o desenvolvimento da Medicina.

Quando os médiuns resistem a todas às tentações, não escapam ainda assim às calúnias, perseguições, processos criminais e prisões, como já acontecia na era apostólica. Os métodos de combate aos factos mediúnicos inegáveis continuam a ser os mesmos nos nossos dias.

Para superar essas dificuldades milenares, os Espíritos Superiores preferem agir em silêncio nos processos de curas espirituais directas, geralmente despercebidos, em que a Medicina só considera a acção espontânea dos recursos naturais do organismo do doente. Nessa cómoda posição hipotética, a maioria dos médicos não percebe a contradição em que cai, atribuindo poderes sobrenaturais ao organismo carnal dos doentes, onde ocorrem os milagres da fé ingénua, com a violação, pela própria natureza humana, das leis naturais. As relações entre a medicina e o espiritismo são de importância básica para ambos, e particularmente para a Humanidade. Mas não poderão melhorar enquanto os espíritas não tomarem consciência da sua responsabilidade doutrinária e os médicos não superarem os seus preconceitos, mais profissionais do que científicos, em relação aos problemas espirituais e em particular ao Espiritismo e à mediunidade curadora, hoje comprovada na sua realidade auspiciosa nos grandes centros universitários do mundo. Os conceitos do sagrado e do sobrenatural, de um lado, e os preconceitos científicos de outro, ainda pesam esmagadoramente sobre a nossa cultura, que terá de alijar esse fardo para sobreviver.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, VII – A Medicina e O Espiritismo, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

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