A Força e a Matéria II – A Terra (III)
É nesses instantes de contemplação fugazes e
indescritíveis, que a ideia estética de Deus me surge mais luminosa e mormente
me avassala. São estas revelações, que não posso exprimir e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me subjugado pela necessidade de
reconhecer uma causa para essa beleza, uma causa que não posso dizer e que, não
obstante, me surge com as características da própria beleza, da bondade, da
ternura, do amor e assim também com as do poder, da magnitude e da dominação. Não
é mais, então, pela inteligência, mas pelo coração que me compenetro da
existência de Deus. Deverei confessar que me sinto às vezes surpreso e
acabrunhado por uma emoção profunda? Nem, por isso que, na opinião dos
contraditores, todo o sinal de emoção só tem origem na centralidade variável do
coração anatómico, ou na secreção da glândula lacrimal, mais ou menos sensível
por temperamento e que, portanto, todas as maravilhas aqui expendidas não
passam de cego resultado, baldo de senso, das combinações materiais engendradas
pela química e pela física orgânicas!
“O Deus eterno, omnisciente, omnipotente,
infinitamente sábio, passou-me perante os olhos.” – exclamava Linnaeus, após os seus
admiráveis trabalhos de Botânica. – “Não o vi face a face, mas o seu
reflexo me saturou o espírito de pasmo e admiração. Acompanhei-lhe o traço em
todas as coisas criadas, e em todas as suas obras, das menores às maiores, e
mesmo nas mais imperceptíveis, quanta força, quanta sabedoria, quanta perfeição
indefinível! Observei como os seres animados se sobrepõem e se
encadeiam no reino vegetal, os vegetais por sua vez, nos minerais que jazem nas
entranhas do globo, ao mesmo tempo em que este globo gravita, num plano invariável,
à volta do sol que lhe deu a vida. Enfim, vi o Sol e todos os astros, todo o
sistema sideral imenso, incalculável na sua infinitude, moverem-se no espaço,
suspensos no vácuo por um motor primário, incompreensível, o Ser dos seres, o
Guia, o Conservador do Universo, Mestre e Operário de toda a obra universal...
“Todas as coisas criadas dão testemunho do poder e
sabedoria divinos, ao mesmo tempo em que se fazem tesouro e pábulo de nossa felicidade.
A utilidade que elas têm testificam a
bondade de quem as fez; a sua beleza demonstra sabedoria, enquanto que por sua
harmonia, conservação, proporcionalidade e inesgotável fecundidade, proclamam a
grandeza do poder divino!
“É a isso que quereis chamar – Providência? É
efectivamente o seu nome, e não há outro que o seu conselho, para explicar o
mundo. É, pois, justo acreditar que há um Deus imenso, eterno, incriado, sem o qual nada
existe e que tenha feito e coordenado esta obra universal.
“Esse Deus escapa-se-nos à vista e, não obstante,
no-la repleta da sua luz. Só em pensamento podemos aprendê-lo e é neste
profundo santuário que se oculta a sua majestade.”
Os nossos adversários não compreendem estes arroubos da alma. Ao
demais, para sentir a poesia das coisas, é preciso, antes de tudo, possuir a poesia
dentro de si mesmo, é preciso que a alma entre em vibração. O espírito
que se degrada à função de produto químico não é susceptível de emoções que
tais.
Por consequência, e já que aqui falamos da estética
da Natureza inanimada, notemos de passagem um exemplo da tendência dos nossos
químicos para estender a todas as coisas o rigorismo de suas concepções.
Deixemo-los resvalar do verdadeiro ideal para um realismo irreal.
O Sr. Moleschott é, sem
favor, o apóstolo da realidade físico-química. Diga-se mesmo, de um realismo
assaz exagerado. Julgai-o, pois, pela sua maneira de poetizar a Natureza.
Gostais, sem dúvida, do brilho das flores, dos seus matizes delicados, dos seus
aromas tão subtis? Pois bem: mal podeis imaginar o que sucede quando vos
debruçais sobre uma rosa para, narinas dilatadas, aspirar-lhe a fragrância.
Ouçamos o químico:
“Quando respiramos o balsâmico perfume dos prados, não
absorvemos mais que verdadeiras substâncias excrementais dos vegetais.
“Seguramente, não temos o direito de nos surpreender
ao vermos coleópteros fimícolas e outros
animais, de uma ordem superior, comerem carniça (sic) e excrementos, bem como
que todo o reino vegetal viva de excretos dos animais, uma vez que nós também
nos deliciamos com as substâncias decompostas por efeito da vida vegetal e cuja
origem é análoga à da urina e das matérias fecais.”
Nunca o suspeitastes? Pois aí tendes uma coisa bem
séria para as flores e para quantos as estimam e admiram, porque,
enfim... (i)
Para retornar ao assunto e terminar pela consideração
geral da acção da lei no ambiente da Terra, lembremo-nos de que essa acção
permanente é condicional à existência do mundo, tanto quanto de sua beleza. Quando
os corpos vibram, quando a corda ressona ao atrito do arco; quando o sino geme
ao toque do badalo, as moléculas se agitam cadenciadas, tal como as esferas no
espaço. A harmonia das esferas não é uma frase vã. Ela é efeito de uma
força e essa força é a mesma para os dois casos, quer se chame coesão, quando
agrupa moléculas, quer se chame gravitação, quando junge os corpos celestes.
Força primordial, elementar, que anima toda a substância, ora determinando uma
simples aproximação molecular, ora sujeitando-a a directivas determinadas,
segundo as condições em que estejam colocadas. Essa força, podemos denominá-la
físico-química. Célere havemos de verificar a existência de uma força distinta,
a reger o turbilhão da matéria nos seres vivos. É pelo sistema nervoso
que o animal se distingue do mineral e do vegetal. A partir do estado
rudimentar, onde se apresenta com os zoófitos, até ao seu mais
completo desenvolvimento na espécie humana, o sistema nervoso é o índice da
animalidade e preside aos fenómenos imateriais. Por ele
é que percebemos toda e qualquer sensação; é ele que possibilita os nossos movimentos
voluntários e é por ele, ainda, que manifestamos o pensamento. Eliminai os
nervos e tereis de facto destruído a sensação. Cortai o fio telegráfico e já
não transmitireis a mensagem.
Se o nervo óptico paralisar, ainda que intacto o
globo ocular, o animal fica cego; as imagens prosseguirão, formando-se na
câmara visual, mas insensíveis. O ouvido pode estar perfeitamente são,
fisicamente constituído para recolher as vibrações sonoras e, no entanto, não
haverá sons perceptíveis, desde que lá não exista o nervo acústico para os
captar e transmitir ao cérebro e também que haja um cérebro vivo para os
receber.
No reino vegetal, particularmente em certas espécies
como sejam a sensitiva, a dioneia,
o desmódio, nós
reconhecemos uma energia latente, correspondente ao nosso sistema nervoso.
Indiscutível é, todavia, que a força físico-química,
a força vegetal, a força animal, a inteligência, não são uma só força-matéria.
Expliquem-nos, então, como uma molécula é sucessivamente animada por forças tão
distintas.
Como admitir que o átomo de ferro, que agora se
integra num homem, num animal ou numa planta, constituísse momentos antes a
ferrugem de uma velha estátua, por exemplo? Se ele é ao mesmo tempo matéria e força, e se a força é única,
como explicar produza fenómenos tão distintos?
Acima da matéria existe um princípio imaterial,
absolutamente distinto. Um espírito anima a matéria, qual o disse Vergílio.
Diante da organização regular dos seres terrestres,
não nos cabe mais que repetir a resposta, já de um século, dada ao Sistema da
Natureza. A matéria é passiva e incapaz de se coordenar por si mesma
num todo regular. Contudo, ela é dotada de umas tantas propriedades que a fazem
susceptível de obediência às leis. Ora, como pode a matéria cega ter
desígnios e tender para uma finalidade? Como, ininteligente, teria engendrado
seres inteligentes? Como se governaria por leis sábias, se não conhece o que
seja a sabedoria? Como
reinar numa ordem majestosa
entre as suas partes, se ela não conhece a ordem?
Como, enfim, essa utilidade sensível e perceptível em
todas as suas operações, se ela, de facto, não tem alvo?
Aí estão uns tantos problemas a que os materialistas hodiernos vão tentar
responder em detalhe nas suas discussões (ii).
Assim, para resumir o estado da questão e os
princípios de nossa refutação do ponto de vista do mundo inorgânico, temos
estabelecido que, no céu como na Terra, a força rege a matéria, que a harmonia é constituída
pelo número e
que este leva consigo, por toda a parte, o cunho intelectual. Em
parte alguma, porém, a inteligência criadora
aparece tão evidente como na organização da vida e na existência do homem.
É o que vamos verificar nos capítulos seguintes.
/…
(i) Não será que esta físico-química vai longe
de mais assimilando tão radicalmente funções vegetais e funções animais? Os
lírios cândidos e as mimosas violetas em nada se parecem, traço por traço, com
os animais peludos dos nossos estábulos; nem o perfume dos goivos se exala,
precisamente, do mesmo objecto, que o odor nada equívoco, das pesadas pipas que
rolam à meia-noite pelas ruas de Paris. A Química, decerto, não tem
falsos decoros e nós queremos admitir que, num capítulo sobre a digestão, o Sr. Moleschott discuta
a ideia do Sr. Liebig,
de identificar o valor digestivo do alimento pela grossura toda particular dos
resíduos da refeição, deixados pelos transeuntes ao longo dos muros. Mas, num
capítulo tratando de flores, pensamos não ser necessário exagerar similitudes
do reino vegetal e animal para o conseguir. De resto, não passa isto de mera
digressão extratextual, para mostrar aos adversários sob um aspecto particular.
Encerremo-la.
(ii) Proclamando alto e a bom som que a força
governa a substância, não o fazemos a ponto de pretender, como certos metafísicos, que não
existe substância e sim, unicamente, a força. É um exagero para nós tão falso
como o dos materialistas.
Ouçamos por momentos uma demonstração metafísica da incoexistência dos
corpos e da extensão. (É de Magy, em Science et Nature.) “Se
supusermos que a extensão, assim como a força, convém aos objectos da
experiência e se tornam dela um elemento inseparável, então, como as
propriedades da primeira são precisamente inversas das da segunda, chega a
admitir-se implicitamente que as contraditórias possam coexistir num mesmo
objecto – erro típico que caracteriza de si mesmo o absurdo.
Mas, se, ao contrário, reconhecermos que só a força é real, de uma
realidade absoluta e substancial, enquanto que a extensão não passa de acto
psicológico, que só pelo facto de aparecer sob o olhar da consciência requer
umas tantas condições físico-fisiológicas, logo se desvanece a contradição. De
modo que a nossa resposta à questão de saber qual a realidade objectiva da
noção de extensão, tão estranha à primeira vista, é, no fundo, a única
verdadeiramente racional, visto não admitir recusa sem colidir, por assim
dizer, com a razão em si mesma.
Mas, objectar-se-à, esta resposta está em contradição
expressa com a experiência, pois ela reduz a extensão a uma simples aparência
psicológica, ao passo que a vista e o facto, relativamente a todos os corpos
que podem atingir, nos atestam uma extensão peculiar a cada qual e,
manifestamente, exterior à alma. Não são extensos esses objectos com os quais
estou em relação, ou seja: este mesmo corpo a que me ligo pela ala, esta mesa
na qual me debruço, esta casa, esta terra, este sol que me aclara, todo o
Universo, enfim? Será possível e mesmo concebível uma ilusão tão geral e tão
constante?
Esta objecção pressupõe justamente o que está em jogo,
responde o filósofo. De facto, que nos ensinam a vista e o tacto, sobre o grau
de realidade da extensão corporal? Nada, absolutamente, pois uma vez percebido
um corpo, é sempre lícito indagar se a imagem dimensória que
acompanha a percepção não seria uma simples aparência.
Trata-se dessa aparência, aqui, no sentido da existente em alguns
fenómenos astronómicos, tal como o movimento solar, de que nos podemos
certificar tão facilmente pela rotação da Terra como do Sol. Quanto à própria
experiência, literalmente neutra no caso, o seu pretenso desacordo com a nossa
tese procede, não dos factos invocados, mas do sentido arbitrário que
implicitamente lhes atribuem.
Os mesmos princípios que nos conduziram à verdadeira teoria
da extensão corporal, sugerem-nos, igualmente, a explicação da extensão incorpórea, ou seja, do
espaço.
A extensão corporal
é o simples fenómeno que acompanha a reacção natural
dessa força híper
orgânica chamada alma, contra a
acção das forças que constituem os corpos brutos, e das quais é advertida pelas
forças orgânicas do nosso corpo. Mas, se as forças orgânicas, de
que o corpo humano é o sistema,
suscitam em nós a aparência de extensão, quando operam como intermediárias
entre a alma e o mundo exterior, também poderiam, por sua actuação incessante
sobre a alma, a que estão tão intimamente ligadas, poderiam, dizemos, não
provocar um fenómeno análogo, cujos caracteres específicos seria difícil
assinar “a priori”, mas que devem, infalivelmente, encontrar-se entre os
fenómenos psicológicos? Ora, isto é o que precisamente acontece e a
consciência nos informa incessantemente. A reacção permanente da alma contra
as forças orgânicas engendra a todo o momento um fenómeno homogéneo ao da
extensão corporal. É o fenómeno da extensão corporal ou do espaço puro, no qual
localizamos naturalmente todos os corpos. O movimento no espaço, como
qualquer outro fenómeno sensível, não é mais que o sinal visível de acções
invisíveis e de permutas não menos inacessíveis aos nossos órgãos, no modo de
coexistência das forças.
Mas, de todas as soluções armadas ao problema, a mais
notável, sem contestação, é a de Kant. Este grande
pensador, que tanto meditara as condições primordiais do pensamento entre as
quais a noção de espaço lhe pareceu, com razão, uma das principais, foi o
primeiro a suspeitar que ele – o espaço – não poderia ser um objecto extrínseco
ao ser, qual o presumem os físicos, nem a ordem de coexistência das coisas,
como pretendia Leibnitz,
mas, verdadeiramente, um simples modo do ser pensante. “A Geometria –
diz – é uma ciência que determina as propriedades do espaço sinteticamente e,
todavia, “a priori”. Ora, qual deverá ser a representação de espaço para que
tenhamos a respeito um conhecimento possível? Uma intuição primitiva.
O espaço para Kant, como para nós –
conclui o escritor –, é, pois, essencialmente, uma afecção psicológica.
Por um lado, segundo a lei objectiva do conhecimento, todas
as ideias científicas se ligam às noções de força e extensão, Únicas
verdadeiramente primordiais e irredutíveis; e por outro lado, segundo o
aprofundado exame a que acabamos de submeter essas duas noções, a de força representa o
elemento substancial dos seres e a de extensão um modo puramente subjectivo de nossa
natureza.
Assim se expressam, ainda, os partidários da interpretação
puramente subjectiva.
Pode fazer-se, a respeito, um reparo assaz curioso e
suficiente para responder a essa teoria algo exagerada e vem a ser que, se
a extensão não existisse,
os corpos não tinham como ocupar um lugar, tal como o ensina a Física. Daí se
conclui que nós não ocupamos lugar e
que não estamos em parte alguma!
Quanto ao primeiro ponto, que se precatem os teatrólogos; e, quanto
ao segundo, que dele se valham os malfeitores, se bem lhes aprouver, para justificarem a
sua metafísica.
Estes argumentos muito se assemelham ao dos fraseólogos modernos,
que levantam contendas de palavras acreditando discutir factos.
Neste caso, por exemplo, os que repetem com Broussais que
Deus e alma não existem, porque a linguagem humana os designa, algumas vezes,
em termos negativos! O mesmo valeria dizer da matéria, qualificada impenetrável
nos seus atributos, por ser uma expressão negativa.
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria II – A Terra 3 de 3, 16º
fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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