Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Inquietações Primaveris ~


os voluntários | da morte

A tendência para o suicídio caracteriza os candidatos ao voluntariado da morte. A necrofilia é uma componente natural do psiquismo de todos os seres vivos. A teoria, antiga e actual, da existência de povos necrófilos, como os egípcios e os japoneses, por exemplo, é discriminativa e exagerada. Mas não há dúvida de que a necrofilia, como todas as variantes psico-afectivas, se acentua mais em alguns povos, em razão de concepções religiosas, tradições de honra, condicionamentos culturais e morais, heranças tribais sobreviventes e até mesmo condições mesológicas, como nas regiões sujeitas a catástrofes geológicas periódicas. A verdade é que em todos os povos, como o revelam as estatísticas do suicídio em todo o mundo, as ocorrências dessa natureza se verificam com alternativas de crescimento e, também, de diminuição. É evidente a existência de uma repercussão social do suicídio no nosso tempo, mais acentuada agora pela divulgação mais intensa dos meios de comunicação. A teoria parapsicológica de Jung, sobre as coincidências significativas, sugere a presença de uma forma de contágio mental e afectivo nos meios sociais. Seja como for, a existência do suicídio no reino animal, como elemento ligado à própria reprodução da espécie – como nas aranhas, escorpiões e abelhas – prova que a tendência para o suicídio existe em todos nós e pode ser intensificada não só por factores individuais, mas também por factores de ordem exterior. A concepção antropomórfica de Deus, levou as religiões a considerarem geralmente o suicídio como um acto de rebeldia e desobediência a Deus. Disso resultam as condenações assustadoras das religiões que negam o socorro dos sacramentos à alma do suicida. Essa também é uma manifestação da necrofilia nas religiões, que nega o amparo e a ajuda precisamente aos seres mais necessitados, procurando matar a própria alma do suicida, numa exasperação sádica do instinto da morte. Disso resultam as condenações assustadoras das religiões que negam o socorro dos sacramentos à alma do suicida. Embora essa medida seja, duma maneira geral, tomada no sentido de repressão ao suicídio, a impiedade é chocante para com as vítimas do suicídio e para com as suas famílias, que se sentem impedidas de dar ao suicida o menor dos consolos. Essa medida extrema, como alias todas as dessa ordem, servem apenas para exasperar o instinto de morte nos meios atingidos pela desgraça. Do ponto de vista da Ciência, da Parapsicologia e do Espiritismo, o suicídio, que interrompe de maneira brusca o processo vital, causa transtornos graves a quem o pratica. A mente se conturba já antes da prática do acto criminoso, pois o suicídio é um auto-assassínio, não raro longamente meditado. Seja dessa natureza ou determinado por condições patológicas, loucura ou decepções violentas, é sempre uma interrupção brusca do curso vital de uma existência necessária. Esse corte violento de todas as possibilidades em curso produz um choque reversivo na estrutura psicológica mental e afectiva do suicida, levando-o a um estado de confusão e angústia que pode durar longo tempo. Deus não castiga o suicida, é ele mesmo, o suicida, que se castiga no próprio acto de se suicidar. Negar socorro religioso a um espírito nessas condições é uma impiedade, é abandonar a si mesmo o espírito em desequilíbrio. Pensar no suicida como num condenado eterno é aumentar a sua angústia e o seu desespero, colocando-nos na posição de torturadores cruéis. Além disso, há suicídios que se justificam, como no caso de imolação voluntária para salvar outras pessoas. Essa intenção, se for justa e real, e não apenas fantasiosa ou criada por precipitações, abranda o chamado martírio dos suicidas, tão insistentemente divulgado no meio espírita com a finalidade de evitar esses actos. Cada pensamento, cada palavra, cada gesto nosso tem as suas repercussões inevitáveis no curso existencial. As leis naturais, que tanto são materiais como espirituais, não podem ser violadas sem que essa violação nos acarrete as consequências do abuso. A ordem universal, instituída em todo o Universo, não se comprova apenas na vida carnal, mas em todos os planos existenciais. Não se deve temer no suicídio o suposto castigo de Deus, mas as consequências naturais do acto de violação de um processo vital. Temos de compreender a dinâmica da Natureza, tanto para viver como para morrer. Temos de inteirar-nos do aspecto racional da realidade em que vivemos e morremos, para escaparmos à ilusão do antropomorfismo religioso, carregado de misticismo e de medo, que nos faz ver nos processos naturais a mão oculta de um Deus que não usa as mãos mas o seu poder mental para nos levar ao conhecimento de nós mesmos, dos nossos deveres e dos compromissos espirituais. Só assim poderemos racionalizar a nossa vida de maneira espontânea e clara, evitando os caminhos tortuosos de crenças e descrenças antigas. O acto de crer é emotivo e antecede a razão. A fé nascida da crença é sugestiva e, portanto, emocional. Pode levar-nos à paixão e ao fanatismo, gerando os monstros sagrados dos torturadores e assassinos ao serviço de Deus. Só a razão, assente na experiência objectiva e em princípios lógicos pode dar-nos a fé verdadeira que nos permite dizer, como Dennis Bladley: “Eu não acredito, eu tenho a certeza.” O saber é superior ao crer, pois é uma conquista da experiência individual no trato directo com os factos reais. O voluntariado da morte não cresce nas searas positivas do saber, mas nos campos fantasiosos da ilusão. Quando a razão periclita e desfalece ao impacto das emoções tumultuadas, nos embates do mundo, podemos perder os freios da razão e entregar-nos ao desespero. Nesse caso a razão só poderá restabelecer o seu controlo se for socorrida pela vontade amadurecida no tempo.

Acusa-se a razão de frieza e insensibilidade, mas a razão possui o calor do entusiasmo e a sensibilidade da justiça sem venda nos olhos. A visão clara, precisa e serena da realidade pode explodir na razão, em surtos de indignação contra os corruptores da verdade. Podemos aferir esse facto nas páginas do Evangelho, nas passagens decisivas em que o Cristo desferiu os raios da sua indignação contra a hipocrisia e a astúcia interesseira dos fariseus. Os que amam a verdade não podem tolerar a mentira nem se fazerem cúmplices dos exploradores da mentira.

A morte não é uma porta de escape para os fracos, mas a catapulta da transcendência para os bravos que enfrentam as batalhas da vida sem se acobardarem. Ninguém é obrigado a amadurecer antes do tempo, mas os que já estão maduros não podem regredir sem trair a si mesmos e à verdade.

Se existem as atenuantes do suicídio, como já vimos, a verdade é que elas são mais rigorosas do que as exigências da vida. Isto porque a programação de cada vida está incluída no processo da evolução geral do planeta. Temos as nossas obrigações a cumprir na encarnação, não somente em nosso benefício, mas também a favor dos que foram designados para participar das nossas lutas. Não podemos pensar no suicida que escapou aos seus deveres, sem nos lembrarmos também dos que ficaram abandonados a si mesmos perante a fuga e a deserção, ante o engolfar-se o suicida no seu egoísmo, como se não tivesse com eles nenhum compromisso. Por essas razões colectivas, e não por motivos particulares, nem pelo pressuposto absurdo da Ira de Deus é, que o crime da fuga se transforma em traição, que pesará fatalmente na consciência culpada. O voluntariado da morte não é desastroso por ser da morte – pois todos morremos – mas por ser a legião dos traidores da vida e dos que ficaram vivos na Terra.

Os batalhões de voluntários da morte são sempre seguidos, em todo o mundo, pelo cortejo dos frustrados da vida. É um cortejo esfarrapado, esquálido, formado pelos milhões de crianças natimortas ou que não conseguiram sobreviver ao nascimento mais do que alguns dias. Pode deduzir-se, da lei de causa e efeito, que esses bandos anónimos, procedentes, em geral, dos subúrbios miseráveis das metrópoles ricas, se constituem de ex-voluntários que voltam à encarnação ansiosos por retomar as oportunidades de realização que desprezaram no acto do suicídio. Numa reunião mediúnica de que participávamos, manifestou-se um espírito que, a princípio, parecia de um brincalhão. Reclamava por o terem convencido, no plano espiritual, a reencarnar-se para aliviar na vida terrena a consciência pesada. E explicava: “Aceitei a proposta, submeti-me a todos os preparativos, suportei pacientemente os pesados meses de uma gestação em que eu e a minha nova mãe passamos momentos difíceis. Por fim, nasci, mas não tive a possibilidade de sentir o gosto da nova vida. Morri e voltei imediatamente para o mundo espiritual. De que me serviu todo esse sacrifício? Quero que vocês me expliquem, pois aqui não tenho possibilidade de conversar com ninguém que entenda deste assunto. Aí na Terra vivemos em cambulhada, mas aqui a situação é diferente, cada qual tem de se ajeitar no meio que lhe é próprio.” Nesse momento o médium tomou uma posição estática, parecia caído em êxtase. Logo a seguir voltou à naturalidade e disse: “O sujeito que me fez passar por essa chegou e está a explicar-me que ganhei tempo. Passei por tudo isso para aliviar a minha consciência do remorso do suicídio. Já me sinto mais aliviado.”

Esta história, real, levanta uma ponta do véu que oculta, aos nossos olhos, o mistério das mortes prematuras. Não existe acaso nos processos da natureza. Existem leis. Pelos dados fornecidos pelo espírito frustrado, foi relativamente fácil, comprovarmos a realidade dos factos. Nenhum dos participantes da reunião, conhecia nenhuma das pessoas vivas relacionadas com o caso, mas os factos-chave do suicídio e do nascimento frustrado, foram comprovados. Nos anais das Sociedades de Pesquisas Psíquicas da Europa e da América, há numerosos registos de casos desta natureza. Todas as interpretações teóricas contrárias à teoria espírita, parecem arranjos, mal costurados, ante a evidência e a coerência das provas obtidas.

Há pessoas, que não aceitam estes factos mediúnicos, alegando que tudo neles se passa de maneira muito semelhante aos factos da vida terrena. Não percebem, que estão condicionadas pelas fantasias do maravilhoso, oferecidas pelas religiões de que já se desligaram sem abandonar os seus fardos. A ideia de que o morto é uma alma do outro mundo, transformou-se numa entidade mitológica, continua a funcionar, no inconsciente dessas criaturas, que são contraditórias sem o perceber. Os reflexos mentais, condicionados, exigem maravilhas dos pobres mortos, humanos, que continuam humanos, por não terem conseguido ainda alcançar os planos da angelitude. Os espíritos humanos, são almas humanas, que animaram corpos humanos na Terra. Quando os espíritos, se apresentam de maneira mirabolante, não merecem o crédito dos estudiosos do assunto, mas conseguem, facilmente, encantar e fascinar os amantes do maravilhoso. Essa, como assinalou Kardec desde meados do século XIX, é a maior dificuldade para a aceitação da realidade espiritual.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 17 – Os Voluntários da Morte, 22º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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