Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 14 de agosto de 2016

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XII
Autoridade e Liberdade (1)

|Julho de 1917|

   Já faz três anos que estamos assistindo a um dos maiores dramas da História. Dois mundos, ou melhor, dois grandes princípios – autoridade e liberdade – se entrechocam, estremecendo a Terra inteira.

   Debaixo da anarquia aparente, no meio do caos das paixões, estão em actividade forças criadoras, trabalhando para uma nova ordem. A consciência do mundo se desenvolve e se afirma por intermédio das humilhações que recebe. Através das vicissitudes dos tempos o homem se encaminha para uma forma de vida mais completa; o ideal se realiza e a marcha para o absoluto continua.

   Os acontecimentos históricos mais importantes são apenas uma revelação dessa luta, ora surda, ora violenta, entre o espírito de dominação e os esforços tentados para a conquista da liberdade.

   No seu aparecimento, o Cristianismo não foi apenas um grande movimento religioso, porque, convocando todos os homens, até os escravos, para os bens celestes, tornava-os iguais perante Deus e perante as leis deste mundo. Graças a isso os pequenos e os deserdados o abraçaram com ardor. As primitivas comunidades representaram a forma mais completa do socialismo cristão.

   Será um efeito da lei dos refluxos? O Cristianismo, que é, na sua origem, de fundo democrático, se tornou, pelos concílios e pela constituição da Igreja Romana, sob o nome de Catolicismo, uma teocracia autoritária e despótica. O domínio temporal do padre é o mais pesado de todos os jugos, pois oprime, simultaneamente, o corpo e o espírito, impõe dogmas, recusados pela razão, exigindo que sejam considerados verdadeiros.

   O poder dos papas dominou a Europa durante séculos, anulando a vida do pensamento e dobrando o Ocidente com a ameaça do inferno ou da excomunhão. Depois veio a Reforma, que entreabriu as portas do penumbroso cárcere, dando à alma um pouco de ar e de luz.

   A Revolução Inglesa de 1688 e, um século depois, a Revolução Francesa constituem uma terceira grande etapa para a liberdade. Apartando-se os erros e os excessos perpetrados, o sangue derramado nesses lamentáveis acontecimentos, é preciso reconhecer-se que as ideias então surgidas germinaram e se expandiram em fartas messes democráticas.

   Inicialmente as campanhas de Napoleão e, depois, a guerra actual, se constituíram em regressos ofensivos da autocracia, porém a tentativa orgulhosa de Guilherme II para dominar o mundo parece que vai terminar, por ironia do destino, na definitiva libertação dos povos.

   Na guerra actual, os elementos que se confrontam têm um carácter mais marcante do que nos conflitos anteriores, pois não se trata já de uma luta de raças, de línguas ou de religiões; tanto dos conflitantes como dos neutros, dois partidos se erguem um contra o outro.

   De uma parte, encontram-se todos os fermentos do absolutismo monárquico ou clerical, todos quantos se apegam ao espírito de casta e às tradições da autoridade sob todas as formas: administrativa, militar e eclesiástica; todos os que admiram, sem reservas, o imperialismo alemão, as suas instituições, a sua organização sábia, a sua forte disciplina e o seu sistema educativo.

   Do outro lado se colocam todas as pessoas e as colectividades desejosas de independência, revoltadas contra a opressão e a falsa infalibilidade, colocando acima de tudo o direito dos povos e da justiça social.

   O entusiasmo que alguns têm pelos impérios centrais, por outros é reservado para a França, considerada como a campeã da liberdade do mundo e que, a seus olhos, se ofereceu em sacrifício pela salvação das nações.

   A esse respeito, são expressivas as opiniões e os testemunhos que nos chegam de todas as partes do globo e o nosso país já começa a ser ressarcido pelas humilhações e fracassos sofridos durante 50 anos.

   À medida que a verdade se espalha, as causas reais e as responsabilidades dessa guerra aparecem mais claramente. A opinião e a consciência das Américas tornam-se cada vez mais favoráveis à França. O apoio e a ajuda recebidos são acrescidos da simpatia.

   O drama inicial, o assassinato de Sarajevo (do arquiduque da Áustria, Francisco Ferdinando e, de sua esposa, a princesa de Hohenberg), permanece envolto em mistério e ainda não se conhecem os seus verdadeiros instigadores, porém quaisquer que eles sejam, a brutal agressão contra uma sérvia disposta a todas as concessões permanecerá como um acto odioso.

   A declaração de guerra à França por motivos falsos e pueris, inventados sem motivo e, principalmente o atentado contra uma Bélgica inocente, apesar de solenes compromissos assumidos, o carácter de ferocidade que os alemães imprimiram à luta, o sacrifício dos pequenos povos vencidos por ela, tudo isso determinou um sentimento universal de reprovação e horror.

   Caso tais factos inqualificáveis não tivessem ocorrido, nem a Inglaterra, nem a Itália e nem os Estados Unidos se teriam envolvido na luta e, a França teria de suportar sozinha a investida formidável dos alemães.

   Existe, portanto, um elemento moral de fundamental importância, parecendo que nessa luta, onde as forças materiais conseguem o seu máximo poder, serão as forças imponderáveis que dirão a última palavra.

   Neste mundo de ferro, onde o método de esmagamento parecia soberano, a lei moral reaparece e o direito recupera a sua força. Aqueles países que acreditam estar com a verdade e a justiça, que disso se encontram compenetrados e que conseguem fazer com que todos participem desse sentimento, podem contar com uma solução favorável do conflito. Ao contrário, há muito tempo a incerteza, quanto à legitimidade de sua causa, vem se infiltrando na alma alemã. Nos povos do além Reno, aparece a certeza de que chefes orgulhosos e cegos os obrigam a sacrifícios rudes e privações duras, sem compensação alguma.

   Pouco a pouco os gritos de vitória se transformam em maldições. O Kaiser vê erguer-se contra ele o fantasma da revolução. Os espectros da abdicação, da fome e da ruína rondam as suas noites.

   Por sua vez, a situação da Rússia tornou-se um problema aflitivo, pois o poder dos czares, carcomido pelas intrigas alemãs e pela traição, desmoronou diante do impulso robusto do povo.

   O colosso de pés de barro despedaçou-se em poucos instantes, nascendo uma nova democracia.

   Saberá ela organizar-se, disciplinar-se, estabelecer-se em bases sábias e permanentes ou, caindo na demagogia e no anarquismo, determinará a desagregação daquele vasto império? As desconfianças e paixões que reinam nos meios políticos, o estado de insubordinação do exército, justificam todos os receios.

   A crise russa, realmente, é de autoridade e de liberdade, e não basta conquistar a liberdade, é preciso maturidade para saber praticá-la. No perpétuo conflito das coisas do mundo nenhum desses princípios (autoridade e liberdade) é vitorioso a não ser com o prejuízo do outro. Quando não se alcançam a paz e a harmonia social pelo entendimento, com um acordo perfeito das duas forças, unidas equilibradamente, uma das duas prevalece quase sempre, com prejuízo da ordem e da actividade individual.

   A excessiva liberdade gera a anarquia que, por sua vez, traz consigo o despotismo. A humanidade, então, se agita num círculo vicioso, por falta de sabedoria e de equilíbrio moral.

   Alguns povos pequenos, como a Suíça, a Noruega e a Dinamarca, se aproximam notavelmente desse perfeito acordo entre a autoridade e a liberdade, sob diversas formas, monarquia ou república. Neles, a instrução geral, um sentimento religioso elevado e uma forte educação popular favoreceram a prática daqueles meios, mas o mesmo não acontece nos grandes Estados, onde as paixões políticas, a ambição e o desejo de expansão e de dominação mundial monopolizaram as forças vitais em prejuízo da paz interior e do legítimo progresso.

   Então, onde buscar um exemplo, um modelo e uma regra certa para conseguir a estabilidade e o equilíbrio das instituições humanas?

   Só o estudo da vida invisível nos poderá tornar conhecido um mundo em que a autoridade e a liberdade se combinem e se completem harmonicamente. As revelações dos espíritos nos mostram, claramente, a existência, no Além, de uma hierarquia de poderes e de inteligências que vão se escalonando até Deus, mas essas revelações também nos ensinam que, na vida espiritual, todos os seres gozam de uma liberdade proporcional ao seu estado de adiantamento.

   A hierarquia das almas é sempre relacionada com os seus méritos, não sendo possível enganarmo-nos a esse respeito porque a sua irradiação é a característica da sua elevação moral. Na medida em que o espírito ultrapassa os degraus da vida celeste, torna-se mais brilhante, mais luminoso e a sua vontade se impõe magneticamente, aumentando com o seu poder de irradiação. Assim, permanecemos longe das condições da pobre sociedade terrena, onde é tão fácil a velhacaria, o vício e a mentira, que se dissimulam sob aparências bem cuidadas, maneiras sedutoras ou a palavra fácil. Enquanto as organizações sociais não estiverem em adequação com as leis do espaço, a perturbação, a desordem e a confusão permanecerão na Terra.

   Na vida universal tudo se regulamenta para a evolução. Cada uma de nossas encarnações terrestres e cada uma de nossas existências planetárias é uma etapa da nossa caminhada eterna. Viemos do infinito aos mundos materiais para prosseguir na nossa educação e depois voltaremos para a vida espiritual, estando assim sujeitos a recomeçar a vida terrena até que os progressos necessários se realizem.

   A ordem social deve, portanto, estar organizada de modo que faculte a cada um de nós a maior soma de resultados do ponto de vista evolutivo. Sendo bastante variadas as situações das almas, as condições sociais também devem sê-lo, igualmente.

   As condições elevadas são relativamente raras, pois são perigosas para o espírito encarnado na Terra rodeado com as tentações da riqueza e do poder e cujo orgulho elas provocam.

   As situações inferiores, ao contrário, são incontáveis, porque as necessidades, as duras exigências que trazem consigo obrigam o espírito ao trabalho, desenvolvem o seu interior, a sua personalidade, a sua consciência, aumentando-lhe as energias latentes. Dores físicas e da alma, necessidade do trabalho, domínio da matéria, da doença e da morte, eis os meios pelos quais o espírito consegue compreender as rígidas disciplinas e praticar a lei do dever. A vida terrena é o crisol, onde a alma se transforma e se aparelha para as grandes missões futuras.

   A nossa existência actual, considerada isoladamente, parece obscura e sem sentido para a maior parte dos homens, todavia, se a examinarmos no seu conjunto, relacionada com a que a precedeu e com a que a seguirá, ela se nos apresenta como um esplêndido campo, onde o ser constrói o seu destino, edifica a sua crescente personalidade, chegando a tornar-se totalmente livre, ao dominar o mal e vencer os maus instintos.

   Em face das visões de horror que a guerra apresenta aos nossos olhos, diante dos milhões de túmulos cuja terra recém-revolvida ainda desnivela as planícies da Europa; ante os pedaços enegrecidos de parede, únicos vestígios das inúmeras aldeias que ainda ontem ressoavam com os ruídos da vida campestre, com o alegre som dos campanários e com os saudáveis risos das crianças, convém se afirme que o homem, na sua essência, é imortal e que se recorde que, as vicissitudes, os prazeres, as provações e as dores, tudo contribui para o nosso progresso e elevação.

   Acima dessas cenas de tristeza e de luto, a vida invisível prossegue em sua serena majestade. Vivos ou mortos, somos arrebanhados pela grande força evolutiva para uma vida melhor, no seio do Universo ilimitado e da divina harmonia!

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XII Autoridade e Liberdade (1) Julho de 1917, 28º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

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