Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 19 de julho de 2016

O sentido da vida ~


Cérebro e Espírito

Não está totalmente errada a ciência moderna, ao considerar o homem sob o aspecto monista definido por Espinoza. O Espiritismo, na sua função de síntese dos conhecimentos humanos, abre largas perspectivas novas ao pensamento do século, permitindo sobretudo o esclarecimento de velhas questões e velhas rixas, que pareciam para sempre insolúveis. Assim, enquanto os defensores da biologia moderna acham intransponível o abismo que separa o dualismo de Descartes do monismo de Espinoza, o Espiritismo entende que tudo não passa de simples jogo de palavras, facilmente desfeito à luz dos seus princípios. De facto, se o biólogo afirma que o corpo e espírito são um todo único e, o teólogo responde que, pelo contrário, o espírito é independente do corpo, o Espiritismo não tem dificuldades em conciliar essas aparentes contradições, lembrando que, segundo um princípio de fisiologia, cada coisa pode mostrar-nos, de um ângulo diverso, uma diversa aparência. Nem por isso, entretanto, a realidade deixa de ser uma só.

O biólogo diz que o corpo e o espírito formam uma unidade indissolúvel e que não pode entender outra coisa. Do seu ponto de vista, ele está certo. Entramos aí no terreno da relatividade e precisamos compreender que a verdade do biólogo é relativa. Ele só estudou e conhece os processos vitais de natureza orgânica. Para ele, o espírito é o cérebro ou um simples complexo de funções vitais do córtex cerebral. As crianças prodígio romperam há muito a velha teoria do paralelismo psicofisiológico, mas o biólogo encontrou uma porta de escape nas curvas surpreendentes da hereditariedade. Ele é um homem que joga com dados materiais e que está firmemente disposto a negar qualquer possibilidade de fuga à realidade, para a explicação dos problemas que tem diante dos olhos. Para ele, a independência do espírito seria a negação de todo o seu aprendizado, tão laboriosamente efectuado até agora. A sua reacção é quase orgânica, instintiva, contra a ameaça dessa nova teoria.

Para o teólogo, o problema se apresenta da mesma maneira, mas de ângulo oposto. Enquanto o biólogo olha o indivíduo humano de baixo para cima, o teólogo o vê de cima para baixo. Ele não pode dizer a mesma coisa que diz aquele, nem pode concordar com a descrição que aquele lhe faz, de um fenómeno que ele “sabe” ser de outra maneira. A conciliação entre os dois é absolutamente impossível, enquanto não se conseguir arredar o biólogo e o teólogo dos seus respectivos lugares, para juntá-los num outro, que poderíamos considerar o interior do fenómeno. Só então eles poderiam verificar, directamente, que muitos dos seus dados estavam errados, sofrendo de um desvio de visão, embora muitos outros continuassem certos.

Espiritismo realiza precisamente esse milagre. Não endossando o ponto de vista do biólogo, nem aceitando a posição do teólogo, ele se coloca em outro ângulo e consegue chegar à equação que parecia impossível. Pois, de facto, o corpo e o espírito são uma e a mesma coisa, desde o momento em que se verificou o fenómeno da encarnação, desde o instante em que eles se fundiram, para a experiência da vida terrena. Quando, porém, um novo processo se verifica – o da morte –, eles deixam de constituir a unidade transitória do indivíduo biológico, voltando cada qual à sua independência natural.

O apego dos biologistas à tese monista faz-nos lembrar o perigo de certas ilusões científicas que chegaram a durar séculos. Poderíamos citar, a propósito, a velha teoria geocêntrica ou a da invisibilidade atómica. Temos, assim, uma ilusão antiga e outra moderna. Mas comentemos um pouco mais a primeira, que serve admiravelmente aos nossos desígnios. Durante séculos, os homens se apegaram à ideia de que a Terra era o centro do Universo. Ainda hoje, são inúmeros os que defendem a tese da habitabilidade exclusiva do nosso pequeno planeta, negando a possibilidade da existência humana em outros corpos celestes. Mas o progresso dos conhecimentos levou a ciência a não mais admitir o geocentrismo, que é hoje uma teoria de museu.

No tocante ao problema do corpo e espírito, acontece coisa semelhante. Os homens continuam esposando uma teoria que poderíamos chamar, por analogia, de organocêntrica. Para eles, só há vida em organismos materiais, a possibilidade vital está centralizada nas chamadas formas vivas. Fora dessas formas, a vida é absolutamente impossível. Entretanto há factos que atestam o contrário. E não está longe o dia em que esses factos se imporão ao raciocínio científico, descentralizando-o dos chamados organismos vivos, a manifestação do fenómeno vital. As mesas giram, dizia Kardec. E as mesas aí estão, juntamente com a causa que as faz girar...

No livro A nossa vida mental, da série A ciência da vida, de H. G. WellsJulian Huxley e G. P. Wells, encontramos um interessante capítulo sobre a questão espírita. Os autores colocam-se no ponto de vista materialista e, condenando a imaginosa explicação espírita dos fenómenos, que não negam, chegam por sua vez a imaginar explicações, negativas as mais curiosas e, a fazer afirmações nitidamente anti-científicas. Uma delas é a de que as materializações dos primeiros tempos do Espiritismo eram românticas, como a focalizada num célebre quadro de Tissot e, as de hoje são informes e rígidas. A fotografia informe que o livro estampa é uma das mais belas conquistas da fotografia psíquica, pertencente ao acervo dos trabalhos de Schrenck-Notzing e Madame Bisson. Mostra uma cabeça materializada em processo de elaboração, o que é altamente significativo. Isso demonstra, sobretudo, que o fenómeno pode ser observado nas suas diferentes fases. Mas os materialistas não entenderam assim e inventaram que agora só obtemos figuras hediondas e abomináveis. Foi, sem dúvida, uma conclusão apressada. Mesmo porque, a fotografia pertence aos primórdios do Espiritismo científico, não é de hoje. E, todos nós, que lidamos com os fenómenos espíritas, sabemos de materializações tão “românticas” quanto as de Tissot, assistidas no presente.

Outras conclusões interessantes desse livro referem-se às comunicações psicográficas. Segundo os autores, tais comunicações são desinteressantes e fúteis. Citam mesmo o caso de Raymond, de sir Oliver Lodge, frisando a diferença existente entre as cartas do jovem soldado e as suas comunicações. Não parece evidente que a avaliação de interesse pode variar de pessoa para pessoa e, que as diferenças notadas devem corresponder à diferença de vida neste plano e no outro? Mas os autores fazem questão de manter o seu ponto de vista materialista e, para isso chegam a dizer que as descrições do outro lado, feitas pelos espíritos, variam ao infinito, sendo incompatíveis umas com as outras, a tal ponto, que reciprocamente se destroem. Ora, todos os que já estudaram o assunto sabem que as coisas se passam de maneira exactamente contrária.

As descrições de Raymond, por exemplo, coincidem com as obtidas por Ochorowicz, as anotadas por Denis Bradley, as espontaneamente dadas por numerosos espíritos ao doutor Carl A.Wikland, em Los Angeles, ao doutor Oscar Parkes, em Londres, com as descrições feitas, aos milhares, nas sessões espíritas de vários países, os relatos publicados pela Revue Spirite, de Kardec, ao registado pela Society for Psychical Research, de Londres e, por último com as comunicações recebidas no Brasil pelo médium Chico Xavier. Poderíamos esgotar várias páginas de citações. Justamente o que mais impressiona, em tais casos, é a identidade, a confirmação de aspectos de um relato por outro, em lugares, épocas e através de médiuns diversos.

Só mesmo o desejo de negar a evidência, ou de pelo menos confundi-la, pode levar os nossos homens de ciência e de letras a tais atitudes. Mas quem quiser, por cima dos informantes suspeitos, verificar o que de real se passa no terreno das informações espíritas sobre o outro lado da vida, por certo há de ver que elas coincidem tão bem como as impressões de vários viajantes sobre um mesmo país estrangeiro.

É pena que os defensores extremados do “milagre” do córtex cerebral não tenham compreendido que as suas teorias sobre a imortalidade da espécie e sobre um outro aspecto perceptivo da matéria são muito mais complicadas e altamente improváveis do que a tantas vezes comprovada imortalidade pessoal.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Cérebro e Espírito, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

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