Cérebro e Espírito
Não está totalmente errada a ciência moderna, ao considerar
o homem sob o aspecto monista definido por Espinoza. O Espiritismo, na sua função de síntese dos conhecimentos humanos, abre largas perspectivas novas ao
pensamento do século, permitindo sobretudo o esclarecimento de velhas questões
e velhas rixas, que pareciam para sempre insolúveis. Assim, enquanto os
defensores da biologia moderna acham intransponível o abismo que separa o
dualismo de Descartes do monismo de Espinoza, o Espiritismo entende que tudo não passa de simples jogo
de palavras, facilmente desfeito à luz dos seus princípios. De facto, se o
biólogo afirma que o corpo e espírito são um todo único e, o teólogo responde
que, pelo contrário, o espírito é independente do corpo, o Espiritismo não tem dificuldades
em conciliar essas aparentes contradições, lembrando que, segundo um
princípio de fisiologia, cada coisa pode mostrar-nos, de um ângulo diverso, uma
diversa aparência. Nem por isso, entretanto, a realidade deixa de ser uma só.
O biólogo diz que o corpo e o espírito formam uma unidade
indissolúvel e que não pode entender outra coisa. Do seu ponto de vista, ele
está certo. Entramos aí no terreno da relatividade e precisamos compreender que
a verdade do biólogo é relativa. Ele só estudou e conhece os processos vitais
de natureza orgânica. Para ele, o espírito é o cérebro ou um simples
complexo de funções vitais do córtex cerebral. As crianças prodígio
romperam há muito a velha teoria do paralelismo psicofisiológico, mas o biólogo
encontrou uma porta de escape nas curvas surpreendentes da hereditariedade. Ele
é um homem que joga com dados materiais e que está firmemente disposto a negar
qualquer possibilidade de fuga à realidade, para a explicação dos problemas que
tem diante dos olhos. Para ele, a independência do espírito seria a negação de
todo o seu aprendizado, tão laboriosamente efectuado até agora. A sua reacção é
quase orgânica, instintiva, contra a ameaça dessa nova teoria.
Para o teólogo, o problema se apresenta da mesma maneira,
mas de ângulo oposto. Enquanto o biólogo olha o indivíduo humano de baixo para
cima, o teólogo o vê de cima para baixo. Ele não pode dizer a mesma coisa que
diz aquele, nem pode concordar com a descrição que aquele lhe faz, de
um fenómeno que ele “sabe” ser de outra maneira. A conciliação entre os
dois é absolutamente impossível, enquanto não se conseguir arredar o biólogo e
o teólogo dos seus respectivos lugares, para juntá-los num outro, que
poderíamos considerar o interior do fenómeno. Só então eles
poderiam verificar, directamente, que muitos dos seus dados estavam errados,
sofrendo de um desvio de visão, embora muitos outros continuassem certos.
O Espiritismo realiza
precisamente esse milagre. Não endossando o ponto de vista do biólogo, nem
aceitando a posição do teólogo, ele se coloca em outro ângulo e consegue chegar
à equação que parecia impossível. Pois, de facto, o corpo e o espírito
são uma e a mesma coisa, desde o momento em que se verificou o fenómeno da
encarnação, desde o instante em que eles se fundiram, para a experiência da
vida terrena. Quando, porém, um novo processo se verifica – o da morte –, eles
deixam de constituir a unidade transitória do indivíduo biológico, voltando
cada qual à sua independência natural.
O apego dos biologistas à tese monista faz-nos lembrar o
perigo de certas ilusões científicas que chegaram a durar séculos. Poderíamos
citar, a propósito, a velha teoria geocêntrica ou a da invisibilidade atómica.
Temos, assim, uma ilusão antiga e outra moderna. Mas comentemos um pouco mais a
primeira, que serve admiravelmente aos nossos desígnios. Durante séculos, os
homens se apegaram à ideia de que a Terra era o centro do Universo. Ainda
hoje, são inúmeros os que defendem a tese da habitabilidade exclusiva do nosso
pequeno planeta, negando a possibilidade da existência humana em outros corpos
celestes. Mas o progresso dos conhecimentos levou a ciência a não mais
admitir o geocentrismo, que é hoje uma teoria de museu.
No tocante ao problema do corpo e espírito, acontece coisa
semelhante. Os homens continuam esposando uma teoria que poderíamos chamar, por
analogia, de organocêntrica. Para eles, só há vida em organismos
materiais, a possibilidade vital está centralizada nas chamadas formas
vivas. Fora dessas formas, a vida é absolutamente impossível. Entretanto há
factos que atestam o contrário. E não está longe o dia em que esses factos se
imporão ao raciocínio científico, descentralizando-o dos chamados
organismos vivos, a manifestação do fenómeno vital. As mesas giram,
dizia Kardec. E as mesas aí estão, juntamente com a causa que as faz girar...
No livro A nossa vida mental, da série A
ciência da vida, de H.
G. Wells, Julian
Huxley e G. P.
Wells, encontramos um interessante capítulo sobre a questão espírita. Os
autores colocam-se no ponto de vista materialista e, condenando a imaginosa
explicação espírita dos fenómenos, que não negam, chegam por sua vez a
imaginar explicações, negativas as mais curiosas e, a fazer afirmações
nitidamente anti-científicas. Uma delas é a de que as materializações dos
primeiros tempos do Espiritismo eram românticas,
como a focalizada num célebre quadro de Tissot e, as de hoje
são informes e rígidas. A fotografia informe que o livro estampa é uma das mais
belas conquistas da fotografia psíquica, pertencente ao acervo dos trabalhos de Schrenck-Notzing e
Madame Bisson. Mostra uma cabeça materializada em processo de elaboração, o que
é altamente significativo. Isso demonstra, sobretudo, que o fenómeno
pode ser observado nas suas diferentes fases. Mas os materialistas não
entenderam assim e inventaram que agora só obtemos figuras
hediondas e abomináveis. Foi, sem dúvida, uma conclusão apressada. Mesmo
porque, a fotografia pertence aos primórdios do Espiritismo científico, não é
de hoje. E, todos nós, que lidamos com os fenómenos espíritas, sabemos de
materializações tão “românticas” quanto as de Tissot, assistidas no presente.
Outras conclusões interessantes desse livro referem-se às
comunicações psicográficas. Segundo os autores, tais comunicações são
desinteressantes e fúteis. Citam mesmo o caso de Raymond, de sir Oliver Lodge, frisando a
diferença existente entre as cartas do jovem soldado e as suas comunicações. Não
parece evidente que a avaliação de interesse pode variar de pessoa para pessoa
e, que as diferenças notadas devem corresponder à diferença de vida neste plano
e no outro? Mas os autores fazem questão de manter o seu ponto de
vista materialista e, para isso chegam a dizer que as descrições do outro
lado, feitas pelos espíritos, variam ao infinito, sendo incompatíveis umas
com as outras, a tal ponto, que reciprocamente se destroem. Ora,
todos os que já estudaram o assunto sabem que as coisas se passam de maneira
exactamente contrária.
As descrições de Raymond, por exemplo, coincidem com as obtidas por Ochorowicz,
as anotadas por Denis Bradley, as espontaneamente dadas por numerosos espíritos
ao doutor Carl
A.Wikland, em Los Angeles, ao doutor Oscar Parkes, em Londres, com
as descrições feitas, aos milhares, nas sessões espíritas de vários países,
os relatos publicados pela Revue Spirite, de Kardec, ao registado
pela Society for Psychical Research, de Londres e, por último com
as comunicações recebidas no Brasil pelo médium Chico Xavier. Poderíamos
esgotar várias páginas de citações. Justamente o que mais impressiona, em tais
casos, é a identidade, a confirmação de aspectos de um relato por outro, em
lugares, épocas e através de médiuns diversos.
Só mesmo o desejo de negar a evidência, ou de pelo menos
confundi-la, pode levar os nossos homens de ciência e de letras a tais atitudes.
Mas quem quiser, por cima dos informantes suspeitos, verificar o que de
real se passa no terreno das informações espíritas sobre o outro lado da vida,
por certo há de ver que elas coincidem tão bem como as impressões de vários
viajantes sobre um mesmo país estrangeiro.
É pena que os defensores extremados do “milagre” do córtex
cerebral não tenham compreendido que as suas teorias sobre a imortalidade da
espécie e sobre um outro aspecto perceptivo da matéria são muito mais
complicadas e altamente improváveis do que a tantas vezes comprovada
imortalidade pessoal.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Cérebro
e Espírito, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A
escola de Atenas de Rafael
Sanzio, 1509)
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