Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
…/

   A noite avançava lavada e varrida pelas chuvas e ventos, que desabavam abundantes, e o moço revira-se impaciente no leito, desassossegado. A avançadas horas, deixou-se abater por torpor dominante e, assaltado por esquisito

pesadelo, sentiu-se amarrado ao leito, experimentando os sentidos psíquicos exaltados. Foi dominado pela sensação desusada de que, embora caído pesadamente sobre a cama, podia locomover-se no quarto em brumas espessas, entre as quais, direcção estóica e hierática, como sempre o fora. Agitando-se penosamente e desejando evadir-se do desagradável e insólito fenómeno que o avassalava, compreendeu-se vencido ante aquela que lhe fora mãe espiritual dedicada e cujo amor ele estava prestes a desrespeitar, por meio de hediondo crime. A entidade acercou-se dele e, traduzindo inconfundível melancolia na voz, marcada por acento de doída angustia, inquiriu:

   – Que pretendes, Girólamo? Assim retribuis, através do crime nefário que premeditas, o calor da afeição pura e da dedicação que recebeste deste lar? Substituíste por ácido o sangue que pulsa nas tuas veias para, enlouquecido, te comprometeres por penosos séculos de infeliz peregrinação ressarcidora? Susta o golpe, antes que o golpe te vença, sem que consigas aniquilar-te a ti mesmo. Ninguém tem o direito de erguer a mão, que se torna sacrílega quando investe contra a vida de outrem. Mesmo diante do revel, a nós não nos pertence o direito de destruir, e sim Àquele que a produz, e que se utiliza de recursos que nos escapam, para equilibrar tudo, no padrão da Sua Sabedoria. Estaca, e modifica a intenção! Ignoras que a vida não cessa e que nós outros, os que antecipamos na jornada do túmulo, vivemos?!

   Desfigurado pela visita inusitada, o moço, em febre, arguiu, desafiadoramente:

   – Deliro, oh! Deus. Enlouqueço! Ninguém volta da morte. Você está morta, titia! Deixe-me em paz, antes que me estourem os miolos avassalados por demónios perversos. Não pode ser você. Deve ser algum enviado das geenas, para aniquilar-me.

   – Não, filho, sou eu mesma, quem retorna. É a voz da minha alma que te fala hoje, como fizera ontem, despertando as mínimas expressões de consciência, de dignidade, na tua razão, obnubilada pela ambição ignóbil que te vence. Morri, mas não fiquei destruída. Não encontrei o céu de repouso ou o inferno de desdita. Deparei-me com a vida estuante, colocada pela Excelsa Misericórdia Divina ao alcance dos que Lhe respeitam as leis. A vida aqui é a razão da vida daí. Ressurgimos do portal de cinzas da sepultura com as asas de anjos ou os pesados grilhões atros, resultantes das nossas atitudes na Terra, que nos alçam a regiões de paz inefável ou nos conduzem a abismos de dores demoradamente remissíveis, até a consciência ferida no seu mais fundo sentir experimente a necessidade de tudo recomeçar e refazer… Somos os construtores da nossa ventura como também do nosso infortúnio. Por isso, reprime o passo e detém-te, antes que seja tarde demais.

   – Agora já é tarde demais! O ódio que me arde nalma destruir-me-á antes que eu possa recuar. Tenho que cumprir esse destino…

   – O destino nos pertence. A cada instante estamos a elaborá-lo, modificando-o ou estabelecendo-o através do que pensamos, do que dizemos, do que fazemos. Cada um consegue o que cultiva, quanto acontece ao agricultor que recolhe a resposta da terra através do grão que lhe atira na cova. Susta o vil pensamento e reflecte. Por que te voltas contra a inocência de Lúcia e a pureza das crianças? Que te fizeram, revel? O ódio que lhes devotas são as farpas da inveja e do despautério do teu espírito ingrato. Volta-te para Deus e escuta a insuperável mensagem de amor do Seu Filho Jesus. Escolhe: agora, ou será tarde demais, realmente. Esquece a sandice e não serás esquecido pela Justiça Celeste. Este é o momento da tua redenção: pára! Ignoras as realidades da vida: do ontem e do amanhã…

   – Não posso, não posso. É muito tarde para mim. Tudo está pronto. Não posso, nem desejo recuar…

   – Eu lamento, por ti e por outrem que não está em condições de perguntar-te e de amar-te. Na minha imensa, incomparável dor, eu te perdoo e choro por ti e por alguém mais. No entanto, ouve-me, Girólamo, é tempo. Foge, viaja, sai desta casa, evade-te ainda hoje, buscando renovação noutros sítios e retorna depois. Serás sempre bem recebido. Terás o de que necessitas, o que ambicionas, porém, por outros meios. Dai em busca da paz, enquanto luze a oportunidade, pelo amor de Deus eu te rogo, meu filho!

   Tresloucado, espírito em alucinação, o moço gritou:

   – Nunca! Agora irei até ao fim, até a minha total desgraça ou ventura. Não pararei!

   – Atingirás, sim, a desgraça. Deus tenha piedade de ti! Eu te perdoo, filho. Perdoe-nos Senhor a todos nós!

   A emissária espiritual levou a nívea mão ao peito levemente ofegante e lágrimas silenciosas, longas, lhe escorreram pela face venerada. Um olhar de indizível dor foi endereçado ao moço, conduzido pela teimosa incoerência de raciocínios e, embora distendendo, logo após, os braços para recolhê-lo outra vez no seio sofrido, Girólamo, como se libertasse do magnetismo que o retinha preso, atirou-se na direcção do corpo que se debatia em desespero no leito e despertou gritando, de olhar esgazeado, suado, aturdido…
Ergueu-se de um salto, apoiou-se à janela, abriu-a e aspirou o ar húmido e frio da noite para recobrar a lucidez e coordenar as ideias assaltadas pela quase demência.

   Transcorridos alguns minutos, aumentando a luz no quarto, entregou-se aos sombrios pensamentos já habituais, enquanto ruminava com a desconcertante visão, que parecia persegui-lo, embora desperto. Sentia-se assistido pela tia; conquanto não a pudesse ver naquele instante, percebia-se por ela visitado. Deixou repentinamente a alcova, desceu ao patamar da parte térrea, abriu a porta de entrada, procurando, sem saber exactamente o quê, meios de reencontar-se. A chuva torrencial, porém, prosseguia. Em derredor da herdade, os rios transbordavam, as estradas estavam quase intransponíveis…

   Em inquisição crescente, aguardou a madrugada e o dia brumoso raiou. O cansaço venceu-o com a chegada da manhã, quando, então, se recolheu por algumas horas, em pesado e tormentoso sono.

   Levantou-se tarde e não compareceu à refeição matinal.

   Amainada a tormenta, deambulou a esmo pela terra encharcada e ao retornar, com a alma em frangalhos, foi recebido pela vigilante Assunta, que o aguardava ansiosamente.

   Higienizando-se, tomou caldo quente e reparador, que a serva lhe trouxe. Amolentado de carácter, deixou-se arrastar pelas paixões absorventes e cuidou, com a consócia, do crime em delineamento, sobre todos os detalhes da tragédia que logo mais seria consumada. Buscou repousar, enquanto Assunta, que guardara o soporífico que ele lhe entregara, desceu à cozinha.

   Naquela noite, Assunta oferecera-se a Lúcia para cuidar do repasto das crianças, prontificando-se a ajudá-las a se recolherem ao leito, informando que também lhe traria a refeição, contanto que descansasse das últimas e longas fadigas.

   Embora pressentindo a borrasca que a ameaçava, Lúcia, exaurida pelo cansaço, aceitou a oferenda da mulher pusilânime e se quedou em leve recreio com os pequenos órfãos.

   Após servir a refeição frugal, Assunta trouxe imensa bandeja de prata com chávenas e bule de chá fumegante, bolinhos de milho, leite e açúcar. Antes, porém, adicionara forte quantidade de pó sonífero, que se misturara ao chá, e, sorridente, serviu às vítimas em potencial, que ignorando a trama cruel, se deixaram conduzir inermes pela má e injusta adversária gratuita. Transcorridos poucos minutos, e não podendo vencer a moleza e o sono que de todos se apossou, recolheram-se aos leitos, vestidos conforme se encontravam.

   A astuta comparsa de Girólamo trocou os trajes das crianças, que ressonavam sob o peso do produto forte, e as depôs nas respectivas camas. Lúcia, porém, foi arrastada, como se encontrava, para o lado do cataló da menina Grazziella, ali ficando adormecida, enquanto a relutância que oferecera ao invencível mal-estar. Isto feito, Assunta cerrou a porta, deu ciência a Girólamo de toda a ocorrência e demandou, por sua vez, o próprio dormitório.


   A noite, embora ameaçadora, não se encontrava sacudida pelas chuvas nem pelos ventos da véspera. Uma lua fria e triste espiava entre nuvens carregadas. O relâmpago aparecia de longe em longe e a voz do trovão chegava cansada e rouca aos cenários dos próximos e tristes acontecimentos.

   Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em trajes de dormir.

   O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes penetrava no quarto, colocado sobre delidada arca de cânfora trabalhada.
/...


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 3 de 4) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

Sem comentários: