Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 26 de novembro de 2011

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa* I

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)




Quœrens – Vós me haveis prometido, ó LÚMEN!, fazer a narrativa dessa hora, estranha entre todas, que se seguiu ao vosso derradeiro suspiro, e descrever de que modo, por uma lei natural, embora mui singular, revistes o passado no presente e penetrastes um mistério que havia permanecido oculto até hoje.

Lúmen – Sim, meu velho amigo, vou cumprir a promessa e, graças à longa correspondência de nossas almas, espero compreendereis esse fenómeno estranho, conforme o classificastes. Há contemplações cuja força o olhar mortal não pode suportar. A morte, que me libertou dos frágeis e fatigáveis sentidos do corpo, ainda não vos tocou com a sua mão emancipadora. Pertenceis ao mundo dos vivos. Apesar do isolamento de ermo, nessas reais torres do arrabalde
Saint-Jacques, onde o profano não vem perturbar vossas meditações, fazeis, sem embargo disso, parte da existência terrestre e das suas superficiais preocupações. Não vos admireis, pois, no instante de vos associar ao conhecimento do meu mistério, do convite para que vos isoleis, mais ainda, dos ruídos exteriores e me presteis toda a –  intensidade de atenção – de que o vosso Espírito seja capaz de concentrar nele próprio.

Quœrens – Serei todo ouvidos, para vos escutar, ó LÚMEN!, e todo o meu Espírito estará concentrado em vos compreender. Falai, sem receio nem circunlóquio, e dignai-vos de me fazer conhecedor das impressões, ignotas para mim, que sucedem à cessação da vida.

Lúmen – Por onde desejais comece a narração?

Quœrens – Se bem recordardes, a partir do momento em que, mãos trémulas, eu vos fechei os olhos. Gostaria que daí partisse a vossa origem.

Lúmen – Oh! a separação do princípio pensante e do organismo nervoso não deixa na alma nenhuma espécie de recordação. É como se as impressões do cérebro, que constituem a harmonia da memória, se apagassem inteiramente e fossem logo restabelecidas sob outro modo. A primeira sensação de identidade que se experimenta depois da morte assemelha-se à que se sente ao despertar, durante a vida, quando, acordando pouco a pouco, à consciência da manhã, ainda se está penetrado pelas visões da noite. Chamado pelo futuro e pelo passado, o Espírito busca, por seu turno, retomar a plena posse de si mesmo e deter as impressões fugitivas do sonho esvaecido, que passam ainda nele com o respectivo cortejo de quadros e acontecimentos. Às vezes, absorvido em tal retrospecção de um sonho cativante, sente sob as pálpebras, que de novo se fecham, os elos ténues da visão reatados e o espectáculo prosseguir; recai, então, no sonho e numa espécie de meio-sono. Assim se balança nossa faculdade pensante ao sair desta vida, entre uma realidade que não compreende ainda e um sonho não desaparecido completamente. As mais diversas impressões se amalgamam e confundem, e se, sob o peso de sentimentos perecedouros, tem saudades da Terra de onde vem exilado, é então oprimida por um sentimento de tristeza indefinível que pesa sobre nossos pensamentos, nos envolve de trevas e retarda a clarividência.

Quœrens – Experimentastes essas sensações imediatamente após a morte?

Lúmen – Após a morte? Mas não existe morte. O facto que designais sob tal nome, a separação do corpo e da alma, não se efectua – por assim dizer – sob uma forma dita material, comparável à separação química de elementos dissociados que se observa no mundo físico. Não se percebe essa separação definitiva, que vos parece tão cruel, mais do que a pode perceber o recém-nascido, saindo do ventre materno. Somos verdadeiramente nascidos para a vida celeste, tal qual o fomos para a existência terrestre. Apenas, não estando a alma envolta nas faixas corporais que a revestem na Terra, adquire ela mais prontamente a noção do seu estado e da sua personalidade. Tal faculdade de percepção varia todavia – essencialmente – de uma para outra alma. Há as que durante o viver nunca se elevaram rumo do céu, nem sentiram o desejo de penetrar as leis da Criação. Essas, dominadas ainda pelos apetites corporais, permanecem longo tempo em estado de perturbação e de inconsciência. Outras existem, felizmente, que, desde esta vida, voaram com as suas aspirações aladas rumo aos cimos do belo eterno. Estas, vêem chegar com calma e serenidade o instante da separação; elas sabem que o progresso é a lei da existência, que entraram no Além, numa vida superior à de aquém; seguem, passo a passo, a letargia que sobe ao coração e, quando o último movimento, vagaroso e insensível, pára em seu curso, elas estão já acima do corpo e daí já observaram o adormecimento. Libertando-se dos liames magnéticos, sentem-se rapidamente arrebatadas por uma força desconhecida rumo do ponto da Criação, a que as suas aspirações, sentimentos e esperanças as atraem.
/…

(*) Escrito em 1866. Publicado pela primeira vez, na "Revista do XIX.º Século", de 1 de Fevereiro de 1867. Desenvolvido, depois, pelas aplicações sucessivas do mesmo princípio de óptica transcendente.  


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I. 1º fragmento global da obra (Camille Flammarion faz falar, pela mediunidade, uma alma após a morte, que em vida havia preparado e a quem passou a chamar Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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