XII
Autoridade e Liberdade (2)
Autoridade e Liberdade (2)
|Agosto de 1917|
Retornemos ao problema da liberdade, cuja noção está marcada
na consciência individual e, sob o nome de livre-arbítrio, designa o privilégio
que o homem tem de se decidir num sentido determinado e orientar os seus actos
para o bem ou para o mal, sendo que a ideia de responsabilidade é inseparável
da ideia de liberdade.
Se fôssemos apenas máquinas dirigidas por forças cegas, autómatos
regidos pelo acaso, seríamos irresponsáveis, sendo impossível qualquer sanção à
nossa conduta. A sociedade ficaria sujeita a todos os ventos da paixão, a todos
os apetites e cobiças.
A teoria do determinismo, que renega o livre-arbítrio e a
responsabilidade, é funesta nas suas consequências, porque corrói os alicerces
de toda a lei moral e destrói tudo o que constitui dignidade, altivez e nobreza
do carácter humano. Ao preconizar uma indulgência mórbida para com os
desequilibrados, os viciosos e os criminosos, o determinismo coloca obstáculos
a qualquer tipo de repressão, favorecendo e alentando a todos os abusos e
excessos. A ele se pode atribuir, em grande parte, o enfraquecimento e a
decadência em que se encontrava o nosso país antes da guerra.
Por uma estranha contradição, muitas vezes vimos homens, que
na política eram adeptos das mais amplas e completas liberdades, rebater, sem
embargo, o princípio de liberdade inscrito em nós. Esperamos que as duras
lições da guerra lhes tenham aberto os olhos e que agora abandonem ideias
perigosas, condenadas por todos os espíritos elevados.
Não é por acaso que somos dotados do livre-arbítrio ao nascer.
Não é a liberdade o que nos espera com a chegada a este mundo, porém a
servidão: servidão material, servidão das necessidades, cuja lei imperiosa nos
obriga ao trabalho, ao esforço, adquirindo e desenvolvendo a própria liberdade.
Um olhar à nossa volta nos apresenta a infinita
variedade das vontades e da liberdade concedidas a cada um. Somente o
Espiritismo e as reencarnações podem explicar esses contrastes e anomalias
aparentes.
As almas frágeis, curvadas ao peso da matéria, sujeitas a
todos os desfalecimentos, são espíritos jovens, nascidos recentemente para a
vida e que ainda não souberam avaliar as forças ocultas que possuem. Ao
contrário, as almas fortes, que conseguiram alto grau de progresso, possuem
numerosas existências de lutas e sacrifícios, nas quais aumentaram o seu
capital de energia e retemperaram a sua vontade. Entre estas e aquelas existem
inumeráveis degraus que representam outras etapas a percorrer e através das
quais o ser vê, paulatinamente, aumentar
o seu livre-arbítrio e recuar o círculo das fatalidades.
A diversidade das situações explica-se por si mesma, pois,
em razão do seu livre-arbítrio, há almas que se adiantam mais vagarosamente e
outras com mais rapidez.
No começo de nossa trajectória a matéria nos oprime, domina
e esmaga, porém, no momento em que a alma se haja elevado o suficiente, começa
a dominar a natureza inferior, impondo-lhe os seus desígnios. A educação por
meio do trabalho e pela dor desenvolve nela qualidades e forças que a libertam
dos laços e dos atractivos materiais.
Ela se encontra, desde então, apta a ocupar lugar nas
comunidades superiores, aprendendo a conduzir-se sem o estímulo do aguilhão da
necessidade. Junto com a plenitude de sua liberdade adquire a plenitude da
sabedoria e da razão.
Para que pudessem reinar, neste mundo, a paz e a justiça,
seria necessário que as nossas instituições se orientassem por aquelas que
regulam a vida nesse Universo invisível onde cada um está no lugar que lhe
corresponde e todo o ser recebe uma
função adequada ao seu valor moral e aos progressos conseguidos. No entanto, vemos
que na Terra tal não acontece.
Nela os alicerces fundamentais de toda a ordem social – a
autoridade e a liberdade –, no lugar de se fundirem num todo harmonioso, se
colidem e quase sempre se combatem. A autoridade torna-se perigosa se não está
aliada ao mérito e ao saber. A liberdade não o é menos quando se trata de
homens violentos, ignorantes e apaixonados.
Para cada um de nós a lei divina reserva uma série de
provações e de trabalhos na medida das nossas necessidades evolutivas e das
reparações que as nossas vidas anteriores exigem, porém a lei humana ignora
tudo isso.
Outro erro fundamental de certos sociólogos é a preocupação
de estabelecerem a igualdade entre todos os homens. Ela não existe na natureza
nem na própria sociedade humana. Jamais se poderá impedir que homens activos,
previdentes, económicos superem os indolentes, os imprevidentes e os pródigos.
No fundo, a igualdade é a própria negação da liberdade e
ambas se anulariam mutuamente caso a fraternidade não lhes atenuasse os efeitos
antagónicos.
É verdade que um poderoso movimento de democratização agita
todos os países e os povos se voltam para a liberdade. Entretanto, já o
dissemos, a liberdade política sem o valor moral, isto é, sem a sabedoria e a
razão que a justificam, é uma conquista perigosa, porque o homem terreno coloca
os seus direitos acima de seus deveres.
Ele tem a liberdade de praticar o bem e pratica com maior
frequência o mal, que recai sobre ele mesmo com todo o peso das suas consequências,
daí as inevitáveis catástrofes, dilacerações, padecimentos e lágrimas.
As lições da adversidade são necessárias, pois do fundo do abismo
dos males a que nos arrasta a guerra vemos melhor os nossos erros e faltas.
Estão ressurgindo verdades que estavam esquecidas, fazendo resplandecer entre
as nossas angústias um raio do pensamento divino.
O homem muitas vezes amaldiçoa a dor porque não lhe
compreende a eficácia, mas o espírito que paira sobranceiro abençoa-a porque vê
nela um instrumento do seu progresso. A dor é o único correctivo do mal que
praticamos livremente.
Se Deus houvesse eliminado o mal e a dor, como alguns
filósofos propõem, a nossa liberdade ficaria diminuída na mesma proporção e a
nossa personalidade se apoucaria juntamente com os nossos merecimentos. Deus
nos permite desfalecimentos e quedas para que as consequências que acarretam
sejam um meio de reerguimento.
Assim, da tormenta actual o nosso país poderá sair
moralmente engrandecido, mais sensato e prudente pelos efeitos da rude
provação, e aureolado por uma nova glória.
Todo o sofrimento é uma purificação e a própria guerra, apesar
dos horrores que produz, está revestida de uma trágica beleza, se considerada
como uma obra de sacrifício.
O que a História mais exalta é a memória dos que souberam
sofrer e morrer: os heróis e os mártires, por exemplo. Não existe nada mais
sublime do que o nosso próprio sacrifício, em prol de uma causa justa e de uma
nobre ideia!
A presente guerra é, antes de tudo, um conflito de ideias e
trará para o futuro consequências incalculáveis. É a luta da espiritualidade
contra o materialismo mais violento, mais cruel; a revolta da consciência
humana contra o autoritarismo militar e todos os seus excessos.
Faz cinquenta anos que o seu jugo oprimia o mundo e, pelo
menor motivo, a Alemanha ameaçava os seus vizinhos com o seu pesado sabre.
Toda a Europa ressoava ao estrondo das armas; o chão
estremecia com a marcha das longas colunas de tropas, ao cadente patear dos
cavalos, sob o rodar dos canhões. Agora, outras perspectivas se vislumbram;
depois dessa guerra devastadora, terminado o militarismo alemão, parece que uma
paz definitiva poderá reinar no mundo ensanguentado.
Espíritos tristes, considerando as devastações espantosas
causadas pela guerra, ainda duvidam do futuro de uma civilização que pode
produzir tais flagelos; eles não contemplam as coisas de altura suficiente. Uma
atenta observação lhes mostraria que, do meio da confusão dos acontecimentos, se
elaboram, vagarosamente, a consciência universal e a vontade que os povos
possuem de destruir, para sempre, a causa de tantos males.
Paulatinamente, se forma um acordo entre as nações que unem
os seus esforços para eliminar o conflito latente, a “paz armada” que vem
destruindo a Europa há meio século, enchendo o abismo sem fim dos gastos
inúteis que absorvem a maior parte da produção do trabalho e da capacidade dos
povos. Se essa guerra pode chegar a tais resultados, ninguém vacilará em reconhecer
que, pelo menos, nos obrigará a dar um grande passo para um futuro melhor.
As dolorosas lições do presente terão fornecido os seus
frutos e o prestígio da glória militar se dissipará como a fumaça. Republicanos
ou monárquicos, todos querem determinar as responsabilidades do grande drama,
tirando delas as punições necessárias. As instituições sociais passarão por
profundas modificações e as ideias democráticas parecem impor-se aos mais
indiferentes.
A política secreta já não se usa mais, os povos querem poder
gerir o seu próprio destino. A Alemanha, habituada a todas as servidões, parece
tremer diante de um sopro libertador.
Ela sente em si, como todas as outras nações, uma intensa
necessidade de renovação e progresso.
Como podemos definir o progresso? Ele é o objectivo
principal da actividade humana, nas suas diversas formas: material, intelectual
e moral. Ele deve ser realizado nesses três aspectos, paralelamente, a fim de
dar ao poder social o desenvolvimento e o equilíbrio que fazem dele um todo
harmonioso.
O conjunto dos esforços empregados e dos resultados
adquiridos constitui a civilização. Porém quando a civilização se apega a uma
ou a outra daquelas formas e despreza as demais, o equilíbrio se rompe e a
humanidade caminha para um cataclismo. É o que está a acontecer no momento actual.
A Ciência concedeu meios formidáveis de destruição ao homem e este os consagrou
às obras do mal. A orgulhosa Alemanha pretendia dominar o mundo pela força e
pelo terror.
De outro lado, o sensualismo e a corrupção dos costumes
haviam enfraquecido bastante a resistência dos seus adversários. As furiosas
paixões desencadearam a borrasca e Deus permitiu que tudo acontecesse a fim de
que, ao sinistro clarão dos acontecimentos, pudéssemos calcular toda a extensão
dos nossos erros e a humanidade se regenerasse pelo sofrimento.
Pelas mesmas razões a civilização já desapareceu várias
vezes da face da Terra. Os nossos vícios e a nossa cegueira já nos conduziram à
beira de um abismo, onde nos teríamos projectado, se não tivéssemos os auxílios
poderosos do mundo invisível.
Quando uma civilização chegou ao ponto de transviar o homem
das leis divinas, daquilo que Platão denominava “o real caminho da alma”,
quando perdeu de vista o principal objectivo da existência, que é a educação e
o aperfeiçoamento moral do homem, tal civilização está condenada a desaparecer
por culpa dos seus próprios excessos. Se não for inteiramente destruída ela se
verá, no mínimo, abalada nas suas mais íntimas profundezas.
Pelos ferozes caprichos das batalhas, pelas epidemias e por
todos os males decorrentes da guerra, milhares de almas se libertaram,
escapando assim da contaminação pelos maus exemplos, das tradições que
perpetuam os erros e os abusos, para renascer depois no meio terrestre, quando
purificados pela dor, ou noutros mundos melhores.
A grande lei das reencarnações não é mais do que uma das
formas da eterna lei do progresso e nada prevalece contra ela. Às vezes ela
parece ter sido sustada pelos efeitos da liberdade humana, porém, mais cedo ou
mais tarde, retoma o seu curso, exercendo a sua acção sob novas formas.
Por meio dos triunfos e dos martírios das nações, através
das mortes aparentes e das ressurreições, poder-se-ia seguir a marcha majestosa
da humanidade para o belo e para o bem supremos, sob o olhar atento de Deus.
/…
LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XII
Autoridade e Liberdade (2) Agosto de
1917, 29º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra
britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra
Mundial)
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