Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 20 de abril de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


4. FÚRIA ASSASSINA
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   Passados os primeiros dias,
em que mergulhara fundo no fosso da libertinagem,
com a alma em labéus hediondos,
Girólamo acreditou chegado o momento de manter uma entrevista com a comparsa.

Para tanto, solicitou o auxílio de um jovem servente da casa e pediu-lhe que, em seu nome, procurasse a jovem, convidando-a, em segredo, a vir à villa Angélico, com a maior brevidade. Acrescentou ao recado que ela explicasse, em casa, o impositivo que a reteria fora do lar por toda a tarde, sem entrar em maiores esclarecimentos. Como prova da autenticidade da mensagem, solicitou ao jovem que apresentasse a Assunta o anel que trazia no dedo mínimo, e que seria facilmente identificado.

   Girólamo sabia do local em que se refugiava a Dulcineia e não teve dificuldade em fazer-se compreendido pelo moço, acostumado a serviços dessa natureza.

   Assunta, quando soube que o amante se encontrava em Florença, prorrompeu em ruidosa alegria. Agradeceu ao mensageiro e o despediu festivamente, prometendo comparecer ao encontro na tarde do dia imediato, no local aprazado. Modificou-se, então, inteiramente, justificando em casa a necessidade de encontrar pessoa amiga que, recém-chegada de Siena, trazia notícias agradáveis e lhe impunha a necessidade do encontro. Foi com desregrada ansiedade que aguardou o momento de se dirigir à villa, o que fez sem maiores dificuldades. À entrada, Girólamo a aguardava. Saudou-a, aparentando discrição, e convidou-a adentrar-se no bosque margeante ao rio, onde poderiam conversar sem testemunhas incómodas.

   A jovem, que se ressentia da ausência do mancebo dissoluto, atirou-se-lhe nos braços, logo pôde fazê-lo, e narrou-lhe os receios, as preocupações, o sonho atemorizante. O amásio fitava-a quase com desprezo. Temendo, porém, ser descoberto nos pensamentos íntimos que acalentava, aparentou, cortês, certo interesse, falando com natural cinismo:

   – Examinemos a nossa situação. Segundo sei, em Siena tudo transcorre conforme planeado. Durante este período de repouso que experimento aqui, pessoas da minha absoluta confiança organizam os meus direitos e os legalizam. Pouco tempo nos separa da ventura. É indispensável, todavia, prosseguir sem despertar suspeitas. Todos os factos ainda estão muito recentes na memória geral. Tão logo eu receba correios do palácio, o que será muito breve, retornaremos e, transcorrido algum tempo, anunciarei o nosso noivado, a nossa boda. De momento, ninguém, a qualquer pretexto, poderá saber dos nossos planos, pois poderia pô-los a perder.

   – Eu pressinto, amado – falou com receio –, que uma nova tragédia se abaterá sobre nós. Tenho a impressão de que a Senhora duquesa me segue, fitando-me com os olhos imensos e tristes… Conseguiste esquecê-la Girólamo?

   – Não me fales dos mortos, – retrucou o moço com enfado. – Os que para lá foram não voltam a perturbar os que aqui ficaram. O que está feito não se poderá refazer. Prefiro o céu na terra à terra do céu…

   E estrugiu ruidosa gargalhada, na qual extravasava as emoções, zombeteiro e cruel. Pela primeira vez, Assunta compreendeu que está diante de um homem totalmente destituído de sentimentos. Dominada por justificável receio, enfrentou-o, azeda:

   – Vê como te portas comigo. Estás amarrado a mim, não esqueças. Não te perdoaria jamais qualquer traição. Irei contigo à força, mas não te livrarás de mim tão facilmente, como fizeste a Lúcia e aos desditos rebentos do duque.

   – Cala-te, infeliz! Desejas que algum passado te escute? Ignoras como o vento conduz notícias dessa natureza? Não me afastarei de ti, pois que jamais te separarás de mim. Eu te amo e te desejo ao meu lado…

   Rapidamente, queimado pelo fogo dos desejos em desalinho, envolveu a moça sufocou-a na paixão desregrada.

   Deambulante entre a violência dos instintos e os albores da razão., Assunta, fascinada pelo idílio criminoso, que se assentava em sangue e lágrimas, deixou-se arrastar cada dia a mais fundo engodo, terminando por entregar-se a Girólamo totalmente, de corpo e alma. Sonhadora e tresloucada trocou os sonhos da pureza pelo abastardamento dos sentidos, em devassidão sempre crescente e insaciável. É verdade que o enceguecimento da razão produz o vaguear nas sombras e o vilipêndio dos sentimentos tresmalha as manifestações da dignidade e do pudor. Cada vez mais embriagada de luxúria, repetia os encontros clandestinos com o moço irresponsável, permitindo-se consumir numa sofreguidão sem medidas. E como a febre dos sentidos somente se extingue com o apagar das próprias fontes do desejo, o amolentamento do carácter progredia na razão directa do devaneio sensual. O refocilar, em casa, que poderia abrir as comportas da mente a nobre inspiração superior, antes servia de pretexto para novas aventuras… O amante escolhera, precavido, local discreto para os sucessivos encontros, de modo a evitar ser identificado ao lado da irresponsável mulher.

   Girólamo, experimentado explorador da sentimentalidade mórbida, apesar da aparente vinculação com a doidivanas, apenas esperava, impaciente, o justo momento para libertar-se do seu jugo, que era penoso, encerrando esse desagradável capítulo da vida. Qual ave de rapina, enrodilhava a vítima na sua armadilha, sonhando com os alcantis mais elevados da ventura e do prazer, esperando o ensejo para despedaça-la e romper os últimos laços que o retinham prisioneiro aos perigosos cipós com que manipulava e retinha a presa.

   Assim, logo chegaram as primeiras flores da primavera e os dias se fizeram mais claros e róseos, com o canto das águas do Arno bordando as margens de mais sons e festa, o malfadado descendente dos Cherubini programou com a moça apaixonada uma excursão ao bosque das colinas de San Miniato, onde o dia lhes poderia proporcionar sonhos de prazeres fugidos, que tentariam alongar, quanto pudessem.

   Concertado o convescote para o domingo porvindouro, que lhe facultaria bastante tempo para organizar o hediondo delito, com cuidados especiais, inclusive visitando o local onde deveria consumar a tragédia, a moça, alucinada pela força dos desejos descabidos, esquecida de que somente o equilíbrio dispensa ordem de paz, aceitou o encontro para o dia programado, prometendo estar à frente do Palazzo Vecchio, onde se encontrariam, às primeiras horas, antes do despertar da cidade.

   Conseguido o cabriolé, mediante aluguer na estalagem para onde se transladara, Girólamo rumou em busca da enamorada e, encontrando-a, seguiu presuroso por caminhos marginais, fora da cidade, vencendo o vale do Arno e dirigindo-se às verdes colinas, sob a pressão de crescente impaciência. Dissimulando com dificuldade os desencontrados sentimentos, tivera antes o cuidado de convencer a jovem de que se despedisse dos familiares, alegando chamado urgente para resolver a Siena, e a ela prometendo uma viagem de recreação, no dia imediato. Cauteloso, a fim de evitar possíveis e remotas suspeitas, Girólamo, despediu-se anteriormente dos amigos, em festa ruidosa, na villa, explicando quanto à necessidade de retornar, embora ainda se demorasse pelo caminho, em visitas a pessoas gradas ao seu coração, prometendo aos amigos uma retumbante recepção no Palácio di Bicci, quando das suas núpcias, em futuro não distante. Astuto e venal, mudou-se cautelosamente para uma hospedaria, à entrada da cidade, onde poderia passar como viajante ignorado, até a consumação do novo crime ardilosamente premeditado.

   Conduzindo matalotagem especial, vinho capitoso e frutos, o casal adentrou-se pelas vias húmidas e perfumadas do bosque em flor. Chilreavam os pássaros ao amanhecer e a Natureza, desabrochando claridade, parecia um convite ao júbilo puro e à emotividade superior, como se as vozes onomatopaicas da vida modulassem nobre pastoral.

   Mais relaxado, agora, quando o bosque era um festival de bênçãos naturais, o moço quase se deixou penetrar pelo bucolismo da paisagem, que tinha por moldura, mais abaixo, as águas do rio cantarolante entre seixos e pedras das bordas.

   Escolhido um lugar discreto, numa clareira natural entre árvores, os jovens saltaram no acume do outeiro, onde a visão era esplendente, e se entregaram ao primeiro repasto, entremeado de libações…

   Motivando a recordação dos dramas que os jungiam um ao outro em canga pesada, Girólamo perguntou à moça em deslumbramento:

   – Deixaste transparecer em casa ou a alguém os nossos objectivos futuros? Fizeste quanto te recomendei? Não ignoras que tudo organizo para o nosso próprio bem.

   – Tranquiliza-te, querido, – informou a companheira inexperiente. – Não seria eu a tonta que poria a perder a cornucópia da fortuna, que agora se volta recheada na minha direcção. Sempre ambicionei a glória e o fastígio. Como tu, eu também caminhava no chão, com gana de galgar a montanha. Se não fosse contigo… Mas, apareceste no meu caminho e não te pude resistir. Puxaste-me para a escalada e aqui estou. Se subo ou desço, ainda não sei…

   – E se, por acaso – aventou o moço, como se falasse imponderadamente –, um mau fado, em circunstância vil, te exigisse denunciar-me, fá-lo-ias?

   – Sabes que não. Eu te pertenço e nunca me permitia trair-te. Excepto…

   – Excepto?! Em que condições me arrojarias ao cárcere e à morte?

   – Se me abandonasses, – falou, com dura franqueza e esfogueada. – Uma mulher ferida nos seus sentimentos é pior do que um animal acossado. Nunca o intentes, porque não te cederei. A minha segurança é o nosso segredo e eu jurei – maledetta vita! – que não terias perdão se um dia te encorajasses a substimar-me, a trair-me…

   A jovem pusera-se de pé. Todo o seu sangue ferveu, ante a possibilidade da traição do amado. Erguida, contrastava com o sol filtrado pelas árvores, e, emocionada, seu rosto jovem adquirira forte beleza carnal.

   Com o espírito túmido de ódio e trémulo, aguardando o ensejo de desferir certeiro golpe, Girólamo fitou-a e considerando-lhe a beleza, que sempre o fascinava. Mas os apetites, naquele momento, deveriam ceder lugar às ambições desmedidas para o futuro. Como se fora possuído por uma fúria assassina, ergueu-se de um salto e atacou violentamente a moça, que venceu nos braços de aço, dominando-a facilmente. A princípio, Assunta não compreendeu o que ocorria: num relance, porém, em que os seus olhos se cravaram nos do apaixonado, percebeu o que se passava, mas já era tarde. A expressão de horror que se lhe desenhou no rosto congestionado e o grito lancinante que proferiu de nada valeram. Tomando de um punhal que trazia sob a jaqueta de veludo carmesim, desferiu repetidos golpes, desvairado, automaticamente, até certificar-se da extinção da vida naquele corpo terrivelmente mutilado. Sangrando abundantemente, a jovem foi largada no solo, a estremecer, nos últimos reflexos e estertores…

   Com a cabeça a estourar, o moço olhou em derredor, como se sentisse terrível presença a espioná-lo, e, nos sentidos aguçados, teve a impressão de que alguém se afastava em disparada sobre folhas e gravetos. Corça ou homem? Que importava! Agora era tarde demais!

   O crime não poderia deixar vestígios. A astúcia do criminoso é a sua arma e a sua perdição.

   Girólamo afastou-se, lépido, do local, e improvisou, numa vala distante, uma sepultura, onde atirou os despojos sangrentos da companheira, cobrindo-os com folhagens e ramos. Logo após, procurou apagar as manchas sanguinolentas na clareira, deixando transparecer que os sinais no solo fossem de feras em luta, que se rebolcassem feridas, pelo chão revolto. Desceu ao rio, para a necessária limpeza das mãos e da indumentária, e tornou a cidade, usando o veículo que deixara antes de galgar o morro. No dia imediato, muito cedo, retornou a Siena, em condução da carreira, anónima, discretamente.

   Girólamo, como todo criminoso, acreditou que o novo delito passara despercebido e que a mão da Justiça jamais o alcançaria. Reflexionando convencia-se de que Assunta, afinal, não representava nada na vida. Agora, era o novo dia que necessitava viver, esquecendo o passado, começando experiências novas…
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4 FÚRIA ASSASSINA (fragmento 3 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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