Conceitos mecanicis-tas
Ao tentar a elaboração da sua teoria corpuscular do
espírito, o confrade Hernani Guimarães Andrade (como vimos no nosso artigo de
domingo passado) partiu de uma premissa falsa: a de que o Espiritismo deve
sujeitar-se às ciências materiais. O trecho de Kardec, citado na página 16 do
seu livro, para justificar essa premissa, pertence ao parágrafo 55, capítulo
primeiro, de A Génese. Nesse
parágrafo, Kardec esclarece que o Espiritismo, como doutrina progressiva,
“assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer espécie, que
tenham chegado ao estado de verdades práticas, deixando o domínio da utopia”.
Para explicar melhor o seu pensamento, Kardec, entretanto,
acrescenta que: “Deixando de ser o que é (o Espiritismo), mentiria à sua origem
e ao seu fim providencial”. Como se vê, Kardec adverte, com o bom-senso que o
caracterizava, que o Espiritismo não podia converter-se num sistema estático,
devendo acompanhar o desenvolvimento natural do conhecimento. Acompanhá-lo,
porém, no plano da realidade, das verdades práticas, e não das utopias, das
conjecturas. E acentuava, ao fazer isso, que o Espiritismo não podia trair-se a
si mesmo. Quer dizer, ao acompanhar o progresso geral, devia entretanto manter
a sua integridade doutrinária.
Não compreendendo essa posição de Kardec, o confrade
Guimarães Andrade pretende fazer com o Espiritismo o que Augusto Comte fez com
a Filosofia, sujeitá-lo às ciências. Para isso, entretanto, vê-se obrigado a um
malabarismo intelectual que o coloca em situações contraditórias. Porque,
segundo o próprio Kardec já advertia, a Ciência Espírita é de natureza diversa
da Ciência da Matéria. Tem objecto diverso e exige métodos especiais. Não
compreendendo esse facto, o Sr. Guimarães Andrade procura amoldar, na retorta
da sua teoria corpuscular, os dois elementos diversos, o que não é possível.
Disso resultam as incongruências que podemos notar em seu livro.
A pretensão reformista do autor chega às raias do
extremismo. Vejamos este trecho, das páginas 16 e 17 de A Teoria Corpuscular do Espírito, em que ele define sua posição:
“Por conseguinte, a Ciência Espírita tem campo aberto à pesquisa e ao
desenvolvimento de seus princípios básicos, os quais podem e devem evoluir
paralelamente à Ciência Oficial. E, tal como esta, precisa progredir, até
mesmo, se necessário, à custa de reforma dos seus postulados”. Isto quer dizer
que o Espiritismo deve modificar os seus princípios básicos, para sujeitar-se
aos novos enunciados das ciências materiais.
Kardec, em A Génese,
no mesmo trecho que citamos acima, lembra que as ciências materiais são apenas
“a exposição das leis da natureza, com relação a certa ordem de factos”. E
esclarece que se trata dos factos materiais. Estes interessam ao Espiritismo,
pois estão na ordem geral das leis de Deus, mas não são o objecto da doutrina.
Submeter a ciência espiritual aos enunciados de leis materiais é simples
absurdo. Aliás, na “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que abre O Livro dos Espíritos, Kardec observa:
“Quando a ciência sai da observação material dos factos, e trata de apreciá-los
e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um
constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer, e o sustenta
encarniçadamente”.
O confrade Guimarães Andrade refere-se ao perigo de um
dogmatismo espírita, mas oferece-nos um perigo maior, que é o do dogmatismo
científico, de natureza materialista. Amarrar o Espiritismo a esses “sistemazinhos”,
referidos por Kardec, é muito mais perigoso do que sustentar os postulados
doutrinários que têm na sua base a “autoridade dos factos” e não das conjecturas
explicativas. Aliás, nenhum progresso das ciências afectou até agora os
postulados doutrinários. Pelo contrário, só os tem confirmado. Como
pretender-se então modificar esses postulados? No tocante aos conceitos da
Física Nuclear, o que parece evidente é que eles se aproximam dos conceitos
espíritas, como vemos no caso de negação da matéria, de transformação do mundo
material em mundo energético, de redução dos fenómenos físicos a simples
aparência e assim por diante.
As próprias contradições do Sr. Guimarães Andrade provam
isso. Condenando, por exemplo, a terminologia mecanicista de Kardec, vê-se ele
obrigado, logo mais, a usá-la. É o que se verifica no seu capítulo intitulado
“Das Bases da Teoria”, em que os conceitos de “vibração” e de “fluido vital”
são empregados, e este último com o agravante de juntar-se ao conceito
hinduísta de “prana”. Também o conceito de “matéria inerte”, nada corpuscular,
ali aparece. Vemos, assim, que a reforma pretendida pelo autor é mais difícil
do que ele mesmo supunha. Não chega a efectuar-se nem sequer no plano da
terminologia, quanto mais no plano mental dos conceitos, propriamente ditos,
que permanece inalterado.
Por outro lado, o Sr. Guimarães Andrade, para poder misturar
as ciências físicas e os princípios espíritas na sua retorta, foi obrigado a
voltar vinte e cinco séculos atrás, adoptando o esquema de Demócrito para a
explicação atómica do espírito. Os seus corpúsculos modernos, denominados
“bion”, “mentalton” e “intelecton”, não são mais do que adaptações dos chamados
“átomos de fogo”, do atomismo grego, que explicavam inclusive a percepção
extra-sensorial. Demócrito admitia átomos especiais para a percepção sensorial
e átomos mais subtis para a percepção intelectual. E considerava o espírito
como um “arranjo atómico”, exactamente como o faz o Sr. Guimarães Andrade. Esse
arranjo, naturalmente, podia desarranjar-se com a morte, e o espírito voltaria
ao “todo universal”. O Sr. Guimarães Andrade não escapa a esse fatalismo lógico
da teoria atómica do espírito, caindo numa posição materialista, como veremos
mais tarde.
Ao expor a natureza do “bion”, que seria “a partícula
correspondente à vida em si mesma, independente de prévia organização, o agente
vivificador da matéria”, o autor se choca frontalmente com o princípio
estabelecido no cap. quarto de O Livro
dos Espíritos, onde o fluido vital: “sem a matéria, não é vida, da mesma
maneira que a matéria não pode viver sem ele”. Ainda aqui, o erro decorre da
posição materialista, que não admite o espírito como agente não-físico. Embora
o autor, nesse terreno, às vezes admita o conceito doutrinário de espírito, no
geral permanece com o conceito mecanicista do atomismo grego. É uma das suas
contradições, que procuraremos esclarecer nos próximos trabalhos.
/…
José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica
à Teoria Corpuscular do Espírito. Conceitos mecanicistas, 12º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos,
pintura a óleo por Jean-François
Millet)
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