A alma e os diferentes estados do sono
O estudo do sono fornece-nos indicações de grande
importância sobre a natureza da personalidade. Em geral não se aprofunda muito
o mistério do sono.
O exame atento desse fenómeno, o estudo da alma e da sua forma fluídica durante
a parte da existência que consagramos ao descanso, conduzir-nos-ão a uma
compreensão mais alta das condições do ser na vida do Além.
O sono possui não só propriedades restauradoras que a
Ciência não pôs em devido relevo, mas também um poder de coordenação e
centralização sobre o organismo material. Pode, além disso, acabamos
de o ver, provocar uma ampliação considerável
das percepções psíquicas, maior intensidade do raciocínio e da memória.
O que é então o sono?
É simplesmente o desprendimento da alma,
que sai do corpo. Diz-se: o sono é irmão da morte. Estas palavras
exprimem uma verdade profunda. Sequestrada na carne no estado de vigília, a
alma recupera, durante o sono, a sua liberdade relativa, temporária
e, ao mesmo tempo o uso dos seus poderes ocultos. A morte será a sua libertação
completa, definitiva.
Já nos sonhos, vemos os sentidos da alma, esses
sentidos psíquicos, dos quais os do corpo são a manifestação externa e
amortecida, entrar em acção. (ii) À medida que as percepções
externas se enfraquecem e apagam, quando os olhos estão fechados e suspenso o
ouvido, outros meios mais poderosos despertam nas profundezas do ser.
Vemos e ouvimos com os sentidos internos. Imagens, formas, cenas à
distância sucederem-se e desenrolarem-se; travarem-se conversas com pessoas
vivas ou falecidas. Esse movimento, muitas vezes incoerente e confuso no sono
natural, adquire precisão e aumenta com o desprendimento da alma no
sono provocado, no transe de sonambulismo (i) e
no êxtase.
Às vezes, a alma afasta-se durante o
descanso do corpo e são as impressões das suas viagens, o resultado das suas
indagações, das suas observações, que se traduzem pelo sonho. Nesse estado, um
laço fluídico ainda a liga ao organismo material e, por esse vínculo subtil,
espécie de fio condutor, as impressões e as vontades da alma podem
transmitir-se ao cérebro. É pelo mesmo processo que, nas outras formas do sono,
a alma governa o seu invólucro terrestre, o fiscaliza e dirige. Essa direcção,
no estado de vigília, durante a incorporação, exercita-se de dentro para fora;
efectuar-se-á em sentido inverso nos diferentes estados de desprendimento. A alma, emancipada, continuará a influenciar o corpo mediante o laço fluídico
que continuamente liga um à outra. Desde este momento, com o seu poder
psíquico reconstituído, a alma exercerá sobre o organismo carnal uma direcção
mais eficaz e segura. Os sonâmbulos andam à noite, por caminhos
perigosos e com inteira segurança; é uma demonstração evidente desse facto.
Sucede o mesmo com a acção terapêutica provocada
pela sugestão. Esta é eficaz, principalmente no sentido de facilitar o
desprendimento da alma e dar-lhe o poder absoluto de fiscalização, a liberdade
necessária para dirigir a força vital acumulada no perispírito e,
por esse meio, restaurar as perdas sofridas pelo corpo físico. (iii) Comprovamos
esse facto nos casos de personalidade dupla. A segunda personalidade, mais
completa, mais integral que a personalidade normal, substitui-a para um fim
curativo, por meio de uma sugestão exterior, aceite e transformada em
auto-sugestão pelo Espírito do sujet.
Com efeito, este nunca abandona os seus direitos e poderes de fiscalização.
Assim, como disse Myers, “não é a ordem do hipnotizador, mas antes a
faculdade do paciente que forma o nó da questão”. (iv)
O sábio professor de Cambridge disse mais: (v)
“O único fim de todos os processos hipnogénicos é
dar energia à vida; é atingir mais rápida e completamente resultados que a vida
abandonada a si mesma só realiza lentamente e de forma
incompleta.”
Por outras palavras, o hipnotismo é a aplicação,
num grau mais intenso, das energias reparadoras que entram em acção no sono
natural. A sugestão terapêutica é a arte de libertar o Espírito do corpo, de
abrir-lhe uma saída pelo sono permitindo-lhe que exerça em plenitude os seus
poderes sobre o corpo doente. As pessoas sugestionáveis são aquelas cujas almas
indolentes ou que pouco têm evolvido não estão aptas para se desprenderem por
si mesmas e agir utilmente no sono ordinário para restaurar as perdas do
organismo.
A sugestão em si mesma não é, pois, mais do que um
pensamento, um acto de vontade, diferindo somente da vontade ordinária pela
sua concentração e intensidade. Em geral, os nossos pensamentos são
múltiplos e hesitantes. Nascem e passam ou, então, quando coexistam em nós,
chocam-se e se confundem. Na sugestão, o pensamento e a vontade
fixam-se num ponto único. Ganham em poder o que perdem em extensão. Por
sua acção, que se torna mais penetrante, mais incisiva, provocam no sujet o
despertar de faculdades não utilizadas no estado normal. A sugestão torna-se,
então, uma espécie de impulso, de alavanca que mobiliza a força vital e a
dirige para o ponto onde ela tem de operar.
A sugestão pode exercer-se tanto na ordem física, por uma
influência directa sobre o sistema nervoso, quanto na ordem moral, sobre o “eu”
central e a consciência do sujet.
Bem empregada, constitui ela um meio muito apreciável de educação, destruindo
as más tendências e os hábitos perniciosos. A sua influência sobre o carácter
produz, então, os mais felizes resultados. (vi)
Voltemos ao sono ordinário e ao sonho. Enquanto o
desprendimento da alma é incompleto, as sensações, as preocupações da vigília e
as recordações do passado se misturam com as impressões da
noite. As percepções registadas pelo cérebro desenrolam-se automaticamente, em
desordem aparente, quando a atenção da alma está desviada do corpo e deixa de
regular as vibrações cerebrais. Daí a incoerência da maior parte dos sonhos;
mas, à medida que a alma se desprende e se eleva, a acção dos sentidos
psíquicos torna-se predominante e os sonhos adquirem lucidez e nitidez
notáveis. Clareiras cada vez mais amplas, melhores perspectivas se abrem no
mundo espiritual, verdadeiro domínio da alma e lugar do seu destino.
Nesse estado ela pode penetrar as coisas ocultas e até os pensamentos e os
sentimentos de outros Espíritos. (vii)
Há em nós uma dupla vista, pela qual
pertencemos, ao mesmo tempo, a dois mundos, a dois planos de existência. Uma
está em relação com o tempo e o espaço, como nós os concebemos no nosso meio
planetário com os sentidos do corpo: é a vida material; a outra, mediante os
sentidos profundos e as faculdades da alma, liga-nos ao universo espiritual e
aos mundos infinitos. No decurso da nossa existência terrestre, é
principalmente quando dormimos que essas faculdades podem exercer-se e entrar
em vibração as potências da alma. Esta torna a pôr-se em
contacto com o universo invisível, que é a sua pátria e do qual estava separada
pela carne. Retempera-se no seio das energias eternas para continuar, quando
desperta, a sua tarefa penosa e obscura.
Durante o sono a alma pode, segundo as necessidades do
momento, aplicar-se a reparar as perdas vitais causadas pelo
trabalho quotidiano e regenerar o organismo adormecido, infundindo-lhe as
forças tiradas do mundo cósmico, ou, quando está acabado esse movimento reparador, continua o curso da sua vida superior, paira sobre a Natureza, exercer as suas faculdades de visão à distância e penetração das
coisas. Nesse estado de actividade independente vive já antecipadamente
a vida livre do Espírito; porque essa vida, que é uma continuação
natural da existência planetária, a espera depois da morte, devendo a alma
prepará-la não somente com as suas obras terrestres, mas também com as suas
ocupações quando desprendida durante o sono. É graças ao reflexo da luz do
Alto, que cintila nos nossos sonhos e ilumina completamente o lado oculto do
destino, que podemos entrever as condições do ser no Além.
Se nos fosse possível abranger com o olhar toda a extensão
de nossa existência, reconheceríamos que o estado de vigília está longe de
lhe constituir a fase essencial, o elemento mais importante. As almas que de
nós cuidam servem-se do nosso sono para nos exercitar na
vida fluídica e no desenvolvimento dos nossos sentidos de intuição.
Efectua-se, então, um trabalho completo de iniciação para os homens ávidos de
se elevarem.
Os vestígios desse trabalho encontram-se nos sonhos. Assim,
quando voamos, quando deslizamos com rapidez pela superfície do
solo, significa isso a sensação do corpo fluídico, ensaiando-se para a vida
superior.
Sonhar que subimos sem cansaço, com
facilidade surpreendente, através do espaço, sem embaraço nem medo, ou então
que estamos pairando por cima das águas; atravessar paredes e outros obstáculos
materiais sem ficarmos admirados de praticar actos que são impossíveis enquanto
estamos acordados, não é a prova de que nos tornamos fluídicos pelo
desprendimento? Tais sensações, tais imagens, que comportam completa
inversão das leis físicas que regem a vida comum, não poderiam vir ao
nosso espírito, se não fossem o resultado de uma transformação do nosso modo da
existência.
Na realidade, já não se trata aqui de sonhos, mas de acções
reais praticadas noutro domínio da sensação e cuja lembrança se insinuou na
memória cerebral. Essas lembranças e impressões no-lo demonstram bem.
Possuímos dois corpos e, a alma, sede da consciência, fica
ligada ao seu invólucro subtil, enquanto o corpo material está deitado e em
completa inércia.
Apontemos, todavia, uma dificuldade. Quanto mais a alma se afasta do corpo e
penetra nas regiões etéreas, tanto mais fraco é o laço que os une, tanto
mais vaga a lembrança ao acordar. A alma paira muito longe na imensidade e
o cérebro deixa de registar as suas sensações. Daí resulta não podermos
analisar os nossos mais belos sonhos. Algumas vezes, a última das impressões
sentidas no decurso dessas peregrinações nocturnas subsiste ao despertar.
E se, nesse momento, tivermos o cuidado de fixá-la fortemente
na memória, pode ficar lá gravada. Tive, uma noite, a sensação de vibrações
percebidas no espaço, as últimas notas de uma melodia suave e penetrante e, a
lembrança das derradeiras palavras de um cântico que findava assim: “Há céus
inumeráveis!”
Às vezes sentimos, ao acordar, a vaga impressão de poderosas
coisas entrevistas, sem nenhuma lembrança determinada. Essa espécie de
intuição, resultante de percepções registadas na consciência profunda, mas não
na consciência cerebral, persiste em nós durante certo tempo e
influencia os nossos actos. Outras vezes, essas impressões se traduzem
nitidamente no sonho. Eis o que a respeito diz Myers: (viii)
“O resultado permanente de
um sonho é muitas vezes de tal ordem que nos mostra claramente que o sonho não
é o efeito de uma simples confusão com lembranças avivadas da vida passada, mas
que possui um poder inexplicável que lhe é próprio e que ele tira, semelhante
nisso à sugestão hipnótica, das profundezas da nossa existência,
a que a vida de vigília é incapaz de chegar. Desse género, dois grupos de casos
há que, pela clareza com que se patenteiam, facilmente podem ser reconhecidos;
um deles, principalmente, em que o sonho acabou por uma transformação religiosa
decidida e, o outro em que o sonho foi o ponto de partida de uma ideia
obsidente (i) ou de um acesso de verdadeira loucura."
Esses fenómenos poderiam explicar-se pela comunicação, no
sonho, da consciência superior com a consciência normal, ou pela intervenção de
alguma Inteligência elevada que julga, reprova, condena o proceder do sonhador,
lhe ocasionando perturbação e um salutar receio. A obsessão pode
também exercer-se por meio do sonho até ao ponto de causar perturbação mental
ao despertar. Terá como autores Espíritos malfazejos, a quem o nosso procedimento
no passado e os danos que lhes causamos deram domínio sobre nós.
Insistimos também na propriedade misteriosa que tem o sono
de nos fazer senhores, em certos casos, de camadas mais extensas da
memória.
A memória normal é precária e restrita, não
vai além do círculo estreito da vida presente, do conjunto dos factos, cujo
conhecimento é indispensável à causa do papel que se tem de desempenhar na
Terra e do fim que se deve alcançar. A memória profunda abrange toda a história
do ser desde a sua origem, os seus estádios sucessivos, os
seus modos de existência, planetários ou celestes. Um passado inteiro, feito de
recordações e sensações, esquecido, ignorado no estado de vigília, está gravado
em nós. Esse passado só desperta quando o Espírito se exterioriza durante o
sono natural ou provocado. Uma regra conhecida de todos os experimentadores é
que, nos diferentes estados do sono, à medida que se vai ficando a maior
distância do estado de vigília e da memória normal, tanto mais a hipnose é
profunda, tanto mais se acentua a expansão, a dilatação da memória. Myers confirma
o facto nos seguintes termos: (ix)
“A memória mais distanciada da vida de vigília é a que mais
vasto alcance tem, é a que mais profundo poder exerce sobre as impressões
acumuladas no organismo. Por mais inexplicável que esse fenómeno se tenha
apresentado aos observadores, que com ele se depararam sem possuírem a
decifração do enigma, é certo que as observações independentes de centenas de
médicos e de hipnotizadores (i) atestam
a sua realidade. O exemplo mais comum é fornecido pelo sono hipnótico
ordinário. O grau de inteligência que se manifesta no sono varia segundo
os sujets e as épocas; mas todas as vezes que esse
grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono
hipnótico a memória considerável, que não é necessariamente uma
memória completa ou razoável do estado de vigília; ao passo que na maior parte
dos sujets acordados, salvo o caso de uma injunção especial
dirigida ao “eu” hipnótico, nenhuma lembrança existe que se relacione com o
estado de sono.
O sono ordinário pode ser considerado como ocupando uma
posição que está entre a vida acordada e o sono hipnótico profundo; e parece
provável que a memória pertencente ao sono ordinário se liga, por um lado, à
que pertence à vida de vigília e, pelo outro, à que existe no
sono hipnótico.
Realmente assim é, estando os fragmentos da memória do sono ordinário
intercalados nas duas cadeias.”
Myers, no apoio às suas palavras, cita (x) vários
casos em que factos retrospectivos esquecidos e, outros dos quais o que dorme
nunca teve conhecimento, se revelam no sonho.
As experiências a que se refere Myers (vê-las-emos quando tratarmos da questão das
reencarnações (i))
que foram levadas muito mais longe do que ele previa e, as consequências que
daí provêm são imensas. Não só tem sido possível, pela sugestão hipnótica,
reconstituir as menores recordações da vida actual, desaparecidas da memória
normal dos sujets, como também reatar o encadeamento das suas
vidas passadas, já interrompido.
Ao mesmo tempo em que uma memória mais vasta e mais rica,
vemos aparecer no sono faculdades que são muito superiores a todas as que
desfrutamos no estado de vigília. Problemas estudados em vão, abandonados como
insolúveis, são resolvidos no sonho ou no sonambulismo; obras geniais,
operações estéticas da ordem mais elevada, poemas, sinfonias e hinos
fúnebres são concebidos e executados. Há em tudo isso uma obra
exclusiva do “eu” superior ou a colaboração de entidades espirituais que vêm
inspirar os nossos trabalhos? É provável que esses dois factores intervenham
nos fenómenos dessa ordem.
Myers cita o caso de Agassiz (i) descobrindo,
enquanto dormia, o arranjo esquelético de ossadas dispersas que ele tentara,
por várias vezes e sem resultado, acertar durante a vigília.
Lembraremos os casos de Voltaire (i), La
Fontaine (i), Coleridge (i),
S.Bach (i), Tartini (i),
etc., executando obras importantes em condições análogas. (xi)
Finalmente, importa mencionar uma forma de sonhos cuja
explicação escapou até agora a Ciência. São os sonhos
premonitórios, complexo de imagens e visões que se referem a
acontecimentos futuros e cuja exactidão é ulteriormente verificada. Parecem indicar
que a alma tem o poder de penetrar o futuro ou que este lhe é
revelado por inteligências superiores.
Assinalemos o sonho da Duquesa de Hamilton, que viu com
antecipação de quinze dias a morte do Conde de L... com particularidades de
natureza íntima que acompanharam esse acontecimento. (xii)
Um facto da mesma natureza foi publicado pelo Progressive
Thinker de Chicago, a 1 de novembro de 1913. Um magistrado de Hauser,
M. Reed, morreu imediatamente, em consequência de uma guinada do
automóvel em que viajava. O seu filho, de 10 anos de idade, tinha tido, por
duas vezes seguidas, a visão dessa catástrofe em todos os seus pormenores.
Apesar dos avisos e das súplicas de sua mulher, M. Reed achou que não devia
renunciar ao projectado passeio, em que veio a encontrar a morte, nas
circunstâncias idênticas às percebidas no sonho da criança.
M. Henri de Parville, no seu folhetim científico do Journal
des Débats (maio de 1904) refere um, caso afiançado por testemunhos
dignos de fé:
“Uma senhora, cujo marido desapareceu sem
deixar vestígios e que ela não pôde descobrir apesar de todas as pesquisas a
que procedeu, teve um sonho. – Um cãozinho, que por muito tempo havia vivido na
sua companhia, mas que o marido levara, aparece-lhe, dá latidos de alegria e
cobre-a de carícias. Instala-se-lhe ao pé, não tira os olhos dela; depois,
passados uns instantes, levanta-se e começa a arranhar a porta. Está feita a
sua visita e precisa ir-se embora. Ela abre-lhe a porta e, no sonho, segue o
animal, que se afasta, correndo; corre também atrás dele e, passado algum
tempo, o vê entrar numa casa, cujo andar térreo é ocupado por um café. A rua, a
casa e o bairro gravam-se-lhe na memória, que conserva a recordação de tudo
isso depois de acordada. Preocupada com esse sonho, conta-o a três pessoas da
vizinhança, que depois deram testemunho da autenticidade dos factos. –
Decide-se, finalmente, a seguir a pista do cão e encontra o marido na rua e na
casa que vira em sonho.”
Os Annales des Sciences Psychiques, de julho de
1905, citava dois sonhos premonitórios acompanhados de circunstâncias que lhe
dão carácter muito comovente.
Encontramos na Revue de Psychologie de la Suisse
Romande, 1905, pág. 379, o caso de um mancebo que se via muitas vezes a si
mesmo numa alucinação autoscópica, precipitado do cimo de um rochedo e
estendido, ensanguentado e esmagado, no fundo de um barranco. Essa
premonição fatal realizou-se, ponto por ponto, a 10 de julho de 1904, no
monte du Salève, perto de Genebra.
Na proporção que nos vamos elevando na ordem dos fenómenos psíquicos,
se vão eles apresentando com maior clareza, com maior rigor e trazem-nos provas
mais decisivas da independência e da sobrevivência do Espírito.
As percepções da alma no sono são de duas espécies.
Verificamos primeiramente a visão à distância, a clarividência, a lucidez; vem
depois um conjunto de fenómenos designados pelos nomes de telepatia e telestesia (sensações
e simpatias à distância). Compreende a recepção e transmissão dos pensamentos,
das sensações, dos impulsos motrizes. Com estes factos se relacionam os casos
de desdobramentos e aparições designados pelos nomes de fantasmas dos
vivos. A psicologia oficial teve de verificar estes casos em grande número,
sem os explicar. (xiii) Todos estes factos se ligam entre
si e formam uma cadeia contínua. Em princípio, constituem, no fundo, um só e o
mesmo fenómeno, variável na forma e intensidade, isto é, o desprendimento
gradual da alma. Vamos seguir esse desprendimento nas suas diversas
fases, desde o despertar dos sentidos psíquicos e das suas manifestações em
todos os graus até à projecção, à distância, de todo o Espírito, alma e corpo
fluídico.
Examinemos primeiramente os casos em que a visão psíquica se
exerce com agudeza notável. Citamos alguns nas nossas obras precedentes. Aqui
apresentamos um, mais recente, publicado por toda a imprensa londrina.
O desaparecimento da Srta. Holland, processo criminal que
apaixonou a Inglaterra, foi explicado por um sonho. A polícia a
procurava inutilmente. O acusado, Samuel Douglas, que estava para ser solto,
dizia que ela havia partido para destino desconhecido. Os jornais de Londres
publicaram desenhos que representavam a casa em que morava a Srta. Holland e o
jardim da mesma casa. Uma criada viu a gravura e exclamou: “Aí está o meu sonho!”
e, indicou um lugar, ao pé de uma árvore, dizendo: “Está ali um cadáver!”
Soube-o a polícia e, na presença dos agentes, ela confirmou as suas
declarações. Explicou que vira em sonho esse jardim e, no solo, no lugar
indicado, um corpo enterrado. A polícia mandou escavar o terreno nesse lugar e
nele foi encontrado o cadáver da Srta. Holland. Ficou provado que a criada
nunca conhecera essa pessoa nem pusera os pés nesse jardim.
C. Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os
Problemas Psíquicos, menciona uma série completa de visões directas, à
distância, durante o sono, resultante de um inquérito feito na França sobre os
fenómenos dessa ordem.
Vamos referir um caso mais complicado. Os Annales
des Sciences Psychiques, de Paris, setembro de 1905 (pág. 551), contêm a
relação circunstanciada e autenticada pelas autoridades legais de Castel di
Sangro (Itália), de um sonho macabro, colectivo e verídico:
“O guarda rural do Barão Raphaël Corrado viu em sonho, na
noite de 3 de março último, o seu pai, falecido havia dez anos. Censurando-o, a
ele, aos irmãos e às irmãs, terem-no esquecido e, coisa mais grave, deixarem os
seus pobres ossos desenterrados pelos coveiros, abandonados sobre a neve, por
trás da torre do cemitério, à mercê dos lobos. Uma irmã do guarda
sonhou exactamente a mesma coisa, e um irmão, muito impressionado, pegou
numa espingarda e, não obstante a tempestade de neve que atormentava a região,
se dirigiu para o cemitério, situado num monte que dominava a cidade. Aí, por
trás da torre, entre as silvas e por cima da neve, em que havia sinais de patas
de lobo, viu ossos humanos.”
Os Annales dão depois a narrativa
circunstanciada do inquérito e das pesquisas feitas pelo juiz de paz.
Estabelecem que os ossos eram, na realidade, os do pai do guarda, que os
coveiros, terminado o prazo legal, haviam exumado. Iam eles transportá-los para
o ossário, à noitinha, quando o frio e a neve os obrigaram a deixar o serviço
para o dia seguinte. Os documentos relativos a esse caso, que foi objecto de um
processo, estão assinados pelo tabelião, pelo juiz de paz e por um magistrado
da localidade. Foram publicadas pelo Eco del Sangro, de 15 de março
de 1905.
O Prof. Newbold, da Universidade da Pensilvânia, relata
nos Proceedings of S. P. R., XII, pág. 11, vários exemplos de
sonhos, que indicam uma grande actividade da alma durante o sono e dão
ensinamentos que vêm do mundo invisível. Entre outros, citaremos o do Dr.
Hilprecht, professor de língua assíria na mesma Universidade, que num sonho
teve a revelação de uma inscrição antiga, que até então não havia descoberto.
Num sonho mais complexo, em que intervém um sacerdote dos antigos templos de
Nippur, dele recebeu a explicação de um enigma de difícil decifração. Foram
reconhecidas como exactas todas as particularidades desse sonho. As indicações
do sacerdote versavam sobre pontos de Arqueologia completamente desconhecidos
dos seres que vivem na Terra.
Convém notar que em todos estes factos o corpo do percipiente está
em repouso e os seus órgãos físicos estão adormecidos; mas, nele o ser psíquico continua em
vigília, em actividade; vê, ouve e comunica, sem o auxílio da palavra, com
outros seres semelhantes, isto é, com outras almas.
Este fenómeno tem carácter geral e dá-se com cada um de
nós. Na transição da vigília para o sono, exactamente no momento em que
os nossos meios ordinários de comunicação com o mundo exterior estão suspensos,
se abrem em nós novas saídas para a Natureza e por elas se escapa uma irradiação
mais intensa da nossa visão. Já nisso vemos revelar-se uma nova forma
de vida, a vida psíquica, que vai amplificar-se nos outros fenómenos dos quais
nos vamos ocupar, provando que existem para o ser humano modos
de percepção e de manifestação muito diferentes dos de sentidos materiais.
Depois dos fenómenos de visão no sono natural, vamos
apresentar um caso de clarividência no sono provocado.
O Dr. Maxwell (i),
advogado geral no Supremo Tribunal de Bordéus, provoca na Sra. Agullana, sujet muito
sensível, o sono magnético. Ela desprende-se, exterioriza-se, afasta-se em
espírito da sua morada. O Dr. Maxwell manda-lhe observar, a certa distância, o
que está a fazer um seu amigo M. B... Eram 10:20 da noite. Damos a palavra ao
experimentador: (xiv)
“A médium, com grande surpresa nossa, nos disse que estava
vendo M. B..., meio despido, a passear descalço sobre a pedra. Pareceu-me que
isso não tinha sentido algum. No dia seguinte ofereceu-se-me o ensejo de ver o
meu amigo. Mostrou-se muito admirado com o que lhe contei e disse-me
textualmente: “Ontem, à noite, não me senti bem. Um amigo meu, M. S..., que
mora comigo, aconselhou-me que experimentasse o sistema Kneip e instou tanto
que, para satisfazê-lo, fiz pela primeira vez, ontem, à noite, a experiência de
passear descalço na pedra fria. Estava efectivamente meio despido quando a fiz.
Eram 10 horas e 20 minutos e passeei durante algum tempo nos degraus da escada,
que é de pedra.”
Os casos de clarividência no estado de sonambulismo são
numerosos. Vêm relatados em todas as obras e revistas que se ocupam
especialmente desses assuntos.
A Médecine Française, de 16 de abril de 1906,
refere um facto de clarividência relativo às minas de Courrières. A Sra.
Berthe, a vidente consultada, descreveu com exactidão um desabamento na mina e
as torturas impostas aos sobreviventes, cuja morte ou libertação ela anunciou.
Acrescentemos dois exemplos recentes:
“O Sr. Louis Cadiou, director da Usina de la Grand-Palud,
perto de Landerneau (Finistère), tendo desaparecido nos fins de dezembro de
1913, não se lhe viam sinais, apesar das buscas minuciosas. Das sondagens efectuadas
na ribeira do rio Elorn nenhum resultado adveio. Uma vidente, moradora em
Nancy, a Sra. Camille Hoffmann, tendo sido consultada, disse, em estado de sono
magnético, que o cadáver seria encontrado na orla de um bosque vizinho à usina,
oculto sob ligeira camada de terra.
Por essas indicações, o irmão da vítima descobriu, depois, o
corpo numa situação idêntica à que a vidente tinha descrito.
Todos os jornais, entre outros o Le Matin, de 5
de fevereiro de 1914, relatam pormenorizadamente o caso Cadiou, que toda a
França acompanhou com apaixonado interesse.
Alguns dias depois, produziu-se um fenómeno análogo.
Havendo-se afogado no Saóne, perto de Màcon, um jovem chamado Charles
Chapeland, um seu irmão recorreu à Sra. Camille Hoffmann para encontrar o
cadáver. Ela assegurou que ele seria levado pelas águas, 60 dias depois do
acidente, para perto do dique de Cormoranche, o que se realizou
exactamente.” (xv)
/…
(ii) A visão ocular não é mais do que a
manifestação externa da faculdade visual, que tem a sua expressão mais ampla na
visão interna. A visão interior exterioriza-se e traduz-se pela acção dos
sentidos, tanto na vida física como na vida psíquica. No primeiro caso, o órgão
terminal pertence ao corpo material; no segundo caso aos órgãos do corpo
fluídico.
A visão no sonho é acompanhada de uma luz especial,
constante, diferente da luz do dia.
(iii) O espírito exteriorizado pode tirar do
organismo mais força vital do que o homem normal ou encarnado
pode obter. Experiências demonstraram que o espírito assim desprendido, pode,
através do organismo, exercer maior pressão num dinamómetro do que o espírito
encarnado.
(iv) F. Myers (i) - La Personnalité Humaine, pág.
204.
(v) Idem, pág. 187.
(vi) Em resumo, os frutos que a sugestão
hipnótica pode e deve proporcionar e em vista dos quais se
deve aplicar, são estes: concentração do pensamento e da vontade; aumento de
energia e vitalidade; atenção fixa em coisas essencialmente úteis; alargamento
do campo da memória; manifestação de novos sentidos por meio
de impulsões internas ou externas.
(vii) Segundo os antigos, existem duas espécies
de sonhos: o sonho propriamente dito, em grego, “onar”, é de origem física, e o
sonho “repar”, de origem psíquica. Encontra-se esta distinção em Homero (i), que
representa a tradição popular, assim como em Hipócrates (i),
que é representante da tradição científica. Muitos ocultistas modernos
adoptaram definições análogas. Em tese geral, segundo eles dizem, o sonho
propriamente dito seria um sonho produzido mecanicamente pelo
organismo e, o sonho psíquico um produto da clarividência adivinhadora;
ilusório um, verídico o outro. Porém, às vezes, é muito difícil estabelecer uma
limitação nítida e distinta entre estas duas classes de fenómenos.
O sonho vulgar parece devido à vibração cerebral automática,
que continua a produzir-se no sono, quando a alma está ausente. Esses sonhos
são muitas vezes absurdos; mas este mesmo absurdo é uma prova de
que a alma está fora do corpo físico e deixou de lhe regular as funções. Com
menos facilidade nos lembramos do sonho psíquico, porque não
impressiona o cérebro físico, mas somente o corpo psíquico, veículo da
alma, que está exteriorizada no sono.
“Os sentidos, diz o Dr. Pascal (Mémoire présenté au
Congrès de Psychologie de Paris, em 1900), depois da actividade do dia, já
não produzem sensações tão vivas e, como é a energia dessas
sensações que tem a consciência “concentrada” no cérebro, esta consciência,
quando os sentidos adormecem, escapa-se para fora do corpo físico e fixa-se no
corpo psíquico.”
O sonho lúcido representa o conjunto das impressões
recolhidas pela alma no estado de liberdade e transmitidas ao
cérebro, quer no decurso das suas migrações, quer no momento do despertar.
Poder-se-ia distingui-lo do sonho vulgar ou automático pelo facto de não
causar nenhuma fadiga, contrariamente ao que sucede com a actividade
cerebral da vigília.
(viii) F. Myers - La Personnalité
Humaine, pág. 117.
(ix) F. Myers - La Personnalité
Humaine, págs. 121 e 122.
(x) F. Myers - La Personnalité
Humaine, págs. 123 e 124.
(xi) Ver No Invisível, cap. XII.
(xii) Proceedings, S.P.R.,
XI, pág. 505.
(xiii) Ver Proceedings da
Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres.
(xiv) J. Maxwell (i) - Les Phénomènes Psychiques,
pág. 173, F. Alcan, Paris, 1903.
(xv) Ver Le Matin, de 23 de
fevereiro de 1914.
Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira
Parte O Problema do Ser, V – A alma e os diferentes estados do
sono, 6º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe),
de uma pintura atribuída a Josefina
Robirosa)
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