MARX E KARDEC
(II de II)
Para Kardec, o fenómeno social tem as suas bases no fenómeno
espiritual: não existe separação entre essas duas realidades; pelo
contrário, o conflito da luta de classes se desdobra, penetrando desse
modo nas realidades do mundo invisível. De maneira que o homem kardecista é
um Ser que relaciona, mediante o perispírito,
instrumento psíquico que não possui o homem de Marx, o mundo
corporal com o mundo espiritual e moral. O perispírito é o elo perdido,
que relacionará subsequentemente os modos de produção com os
modos de evolução, isto é, a luta de classes com
as classes em luta. Porque a evolução do espírito,
para ser equilibrada e harmónica, tem necessidade de meios e formas económicas
justas e equitativas, já que a sua própria palingenesia fará que o
instrumento social seja empregado novamente pelo mesmo Ser, através do seu
incessante avançar espiritual. Com razões de sobra dizia Kardec:
“Risquem-se das leis e das instituições, das religiões e da educação, os
últimos restos da barbárie e os privilégios; destruam-se por completo
todas as causas que dão vida e desenvolvimento a estes eternos obstáculos do
verdadeiro progresso e que, por assim dizer, aspiramos por todos os
poros na atmosfera social e, então os homens compreenderão os deveres e
benefícios da fraternidade e, a liberdade e a igualdade se estabelecerão por si
mesmas de qualquer forma. (i)
As palingenesias individuais e sociais são, para o homem
kardecista, o resultado dos factos sociológicos determinados pelo
Espírito, através de sua incessante evolução. Para Kardec, ao contrário de
Marx, o progresso é uma sucessão de factos morais e sociais, determinados
pelas relações entre o elemento espiritual e o material. A nova sociedade,
segundo o codificador da doutrina espírita, será determinada pelo modo de vida
espiritual alcançado pelos homens. Corpo e Espírito, isto é, Sociedade e Alma,
deverão desenvolver-se harmonicamente; deste modo, com o homem kardecista, a
transformação social será integral: compreenderá o aspecto material e
espiritual. Ao contrário, a evolução socialista de Marx só modificará uma parte
da realidade: afectará unicamente o sistema económico da sociedade,
deixando o Espírito do homem tal como estava no regime chamado capitalista.
Se a imagem do homem kardecista se reflecte nas profundezas
do mundo espiritual, isso nos indica que ele não verá apenas uma vez os
alcances e resultados do processo social, mas que passará muitas vezes
através desse processo, razão pela qual deverá trabalhar insistentemente em
prol de melhores sistemas sociais. O sistema socialista, segundo a ideia do
homem kardecista, será revivido e reencontrado pelos mártires do socialismo,
porque o Ser que a filosofia espírita nos apresenta é uma entidade eterna, que
vai e vem no curso e recurso palingenésico da história, sem
jamais fenecer.
O homem, para Kardec, é um espírito encarnado, que
reconhecerá o seu passado histórico, à medida que ilumine a sua visão e
intuição espirituais. É por isso que, com a doutrina social espírita, podemos
falar de um homem-que-reencontra-a-história, isto é, de um
homem que construirá um mundo melhor para reencontrar-se a si
mesmo, segundo tenham sido os seus actos para construí-lo e
edificá-lo. A nova sociedade do futuro, segundo o homem
kardecista, se emancipará do regime social baseado na propriedade
individual, porque o estado de evolução espiritual alcançado pelo
Ser o obrigará a aperfeiçoar-se, segundo o princípio espírita da
lei de igualdade. E este estado de evolução fará que os homens
percebam o mundo e os bens económicos unicamente como objectos de
encarnação.
Em resumo, podemos afirmar que a comunidade
socialista não é o resultado de um sistema imposto por um processo político,
mas uma realidade social dependente da evolução avançada do homem; é,
pois, o fruto do progresso, tanto externo como interno, da humanidade. Por
isso, Kardec dizia que os sistemas sociais variam com a evolução dos
espíritos; sustentar, portanto, um regime social que esteja em luta com a
evolução espiritual, é colocar-se em oposição à própria lei de progresso. A esse
respeito, escreveu Kardec: “A aspiração do homem para uma ordem
de coisas melhor que a actual é um indício certo da
possibilidade de que chegará a ela. Cabe, pois,
aos homens amantes do progresso, activar este movimento pelo estudo
e a prática dos meios que se julguem mais eficazes.” (ii)
Se a filosofia espírita não abranger o estudo das questões
sociais, o homem marxista terá sempre maior vantagem sobre o homem kardecista,
porque o tema da luta de classes é a grande realidade individual e colectiva dos
tempos modernos. Como temos visto, o espiritismo não é individualista; pelo
contrário, abarca por igual a face pessoal e social do homem. Contudo, esta
integralidade da filosofia espírita tem sido, pode-se dizer, postergada, por
receio de cair no político. Muito se tem falado do espiritismo, quase
sempre como de um comércio entre vivos e mortos; tem-se
dado preferência aos seus fenómenos, em detrimento de sua doutrina espiritual e
filosófica, que constitui um verdadeiro humanismo revolucionário e “abrange
tanto o homem físico (o social), como o homem moral (o espiritual)”, segundo o
sentir esclarecido de Allan Kardec.
Louis Fourcade, notável espírita francês, em uma carta
dirigida de Paris à revista La Idea, referindo-se ao sentido social
da filosofia espírita, dizia o seguinte: “Por não haver militado
no domínio social, o espiritismo francês é insuficientemente conhecido
das massas. Tem atraído para si uma desconfiança
inexplicável, mesmo no mundo intelectual; da parte de alguns
cérebros lúcidos e orgulhosos do seu conhecimento, atraiu
um desprezo cínico e sistemático que, alentado pelo clero, tem
conseguido reduzi-lo e circunscrevê-lo a simples reuniões de
associações timoratas, onde frequentemente degenera em corrupção e
charlatanismo, ou tráfico mercenário.” (iii)
Enquanto fizermos do espiritismo uma questão de
médiuns, provas e experiências, não sairemos do círculo estreito em que o têm
encerrado psiquistas de toda a espécie. Kardec apresentou a filosofia
espírita com um carácter absolutamente diferente daquele que lhe deram os
registadores de fenómenos. Ela encarna, como se sabe, uma nova visão espiritual
do homem e do Universo apresentando-se como uma sociologia espiritualista,
tanto do homem físico como do homem moral. O espiritismo, segundo Kardec, é a
restauração dos valores essenciais do cristianismo e o instrumento filosófico e
religioso destinado a dar forma a um novo tipo de sociedade humana.
Consequentemente, a filosofia espírita deverá socializar-se,
se quisermos que avance ao lado do progresso, sem ser ultrapassada em sua
militância pelas novas ideias.
A alma dos tempos modernos está eivada de transformações
gerais. Se queremos impulsionar o progresso dos homens, teremos de
penetrar no social, onde pulsa o coração das realizações futuras. Não nos
esqueçamos de que é nas massas que estão encarnados os tristes e deserdados.
Foi nessa perspectiva que Kardec viu o sentido social do espiritismo, ao ponto
de chegar a sustentar que é a eles, “mais que aos felizes da Terra”,
que se dirige o seu ideal religioso ou de redenção humana. A mensagem que o
espiritismo proclama é a mesma que se ouviu há vinte séculos no Sermão
da Montanha, encarnando-se outra vez na história,
conforme fora anunciado; através da divina presença do Espírito de Verdade.
/…
(i) Ver Obras Póstumas, Kardec,
capítulo Liberdade, Igualdade e Fraternidade e O Livro dos Espíritos,
capítulo sobre o mesmo assunto.
(ii) Allan Kardec, Obras Póstumas,
capítulo citado atrás.
(iii) Revista La Idea, Buenos Aires,
n.° 275, abril de 1947.
Humberto Mariotti, O Homem e a Sociedade numa Nova
Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª
PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III MARX
E KARDEC (II de II), 5º fragmento desta obra.
(imagem: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica:
tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador
Dali)
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