Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de abril de 2021

O Homem e a Sociedade


Capítulo III 

MARX E KARDEC 
(II de II) 

Para Kardec, o fenómeno social tem as suas bases no fenómeno espiritual: não existe separação entre essas duas realidades; pelo contrário, o conflito da luta de classes se desdobra, penetrando desse modo nas realidades do mundo invisível. De maneira que o homem kardecista é um Ser que relaciona, mediante o perispírito, instrumento psíquico que não possui o homem de Marx, o mundo corporal com o mundo espiritual e moral. O perispírito é o elo perdido, que relacionará subsequentemente os modos de produção com os modos de evolução, isto é, a luta de classes com as classes em luta. Porque a evolução do espírito, para ser equilibrada e harmónica, tem necessidade de meios e formas económicas justas e equitativas, já que a sua própria palingenesia fará que o instrumento social seja empregado novamente pelo mesmo Ser, através do seu incessante avançar espiritual. Com razões de sobra dizia Kardec: “Risquem-se das leis e das instituições, das religiões e da educação, os últimos restos da barbárie e os privilégios; destruam-se por completo todas as causas que dão vida e desenvolvimento a estes eternos obstáculos do verdadeiro progresso e que, por assim dizer, aspiramos por todos os poros na atmosfera social e, então os homens compreenderão os deveres e benefícios da fraternidade e, a liberdade e a igualdade se estabelecerão por si mesmas de qualquer forma. (i) 

As palingenesias individuais e sociais são, para o homem kardecista, o resultado dos factos sociológicos determinados pelo Espírito, através de sua incessante evolução. Para Kardec, ao contrário de Marx, o progresso é uma sucessão de factos morais e sociais, determinados pelas relações entre o elemento espiritual e o material. A nova sociedade, segundo o codificador da doutrina espírita, será determinada pelo modo de vida espiritual alcançado pelos homens. Corpo e Espírito, isto é, Sociedade e Alma, deverão desenvolver-se harmonicamente; deste modo, com o homem kardecista, a transformação social será integral: compreenderá o aspecto material e espiritual. Ao contrário, a evolução socialista de Marx só modificará uma parte da realidade: afectará unicamente o sistema económico da sociedade, deixando o Espírito do homem tal como estava no regime chamado capitalista. 

Se a imagem do homem kardecista se reflecte nas profundezas do mundo espiritual, isso nos indica que ele não verá apenas uma vez os alcances e resultados do processo social, mas que passará muitas vezes através desse processo, razão pela qual deverá trabalhar insistentemente em prol de melhores sistemas sociais. O sistema socialista, segundo a ideia do homem kardecista, será revivido e reencontrado pelos mártires do socialismo, porque o Ser que a filosofia espírita nos apresenta é uma entidade eterna, que vai e vem no curso e recurso palingenésico da história, sem jamais fenecer. 

O homem, para Kardec, é um espírito encarnado, que reconhecerá o seu passado histórico, à medida que ilumine a sua visão e intuição espirituais. É por isso que, com a doutrina social espírita, podemos falar de um homem-que-reencontra-a-história, isto é, de um homem que construirá um mundo melhor para reencontrar-se a si mesmo, segundo tenham sido os seus actos para construí-lo e edificá-lo. A nova sociedade do futuro, segundo o homem kardecista, se emancipará do regime social baseado na propriedade individual, porque o estado de evolução espiritual alcançado pelo Ser o obrigará a aperfeiçoar-se, segundo o princípio espírita da lei de igualdade. E este estado de evolução fará que os homens percebam o mundo e os bens económicos unicamente como objectos de encarnação. 

Em resumo, podemos afirmar que a comunidade socialista não é o resultado de um sistema imposto por um processo político, mas uma realidade social dependente da evolução avançada do homem; é, pois, o fruto do progresso, tanto externo como interno, da humanidade. Por isso, Kardec dizia que os sistemas sociais variam com a evolução dos espíritos; sustentar, portanto, um regime social que esteja em luta com a evolução espiritual, é colocar-se em oposição à própria lei de progresso. A esse respeito, escreveu Kardec: “A aspiração do homem para uma ordem de coisas melhor que a actual é um indício certo da possibilidade de que chegará a ela. Cabe, pois, aos homens amantes do progresso, activar este movimento pelo estudo e a prática dos meios que se julguem mais eficazes.” (ii) 

Se a filosofia espírita não abranger o estudo das questões sociais, o homem marxista terá sempre maior vantagem sobre o homem kardecista, porque o tema da luta de classes é a grande realidade individual e colectiva dos tempos modernos. Como temos visto, o espiritismo não é individualista; pelo contrário, abarca por igual a face pessoal e social do homem. Contudo, esta integralidade da filosofia espírita tem sido, pode-se dizer, postergada, por receio de cair no político. Muito se tem falado do espiritismo, quase sempre como de um comércio entre vivos e mortos; tem-se dado preferência aos seus fenómenos, em detrimento de sua doutrina espiritual e filosófica, que constitui um verdadeiro humanismo revolucionário e “abrange tanto o homem físico (o social), como o homem moral (o espiritual)”, segundo o sentir esclarecido de Allan Kardec. 

Louis Fourcade, notável espírita francês, em uma carta dirigida de Paris à revista La Idea, referindo-se ao sentido social da filosofia espírita, dizia o seguinte: “Por não haver militado no domínio social, o espiritismo francês é insuficientemente conhecido das massas. Tem atraído para si uma desconfiança inexplicável, mesmo no mundo intelectual; da parte de alguns cérebros lúcidos e orgulhosos do seu conhecimento, atraiu um desprezo cínico e sistemático que, alentado pelo clero, tem conseguido reduzi-lo e circunscrevê-lo a simples reuniões de associações timoratas, onde frequentemente degenera em corrupção e charlatanismo, ou tráfico mercenário.” (iii) 

Enquanto fizermos do espiritismo uma questão de médiuns, provas e experiências, não sairemos do círculo estreito em que o têm encerrado psiquistas de toda a espécie. Kardec apresentou a filosofia espírita com um carácter absolutamente diferente daquele que lhe deram os registadores de fenómenos. Ela encarna, como se sabe, uma nova visão espiritual do homem e do Universo apresentando-se como uma sociologia espiritualista, tanto do homem físico como do homem moral. O espiritismo, segundo Kardec, é a restauração dos valores essenciais do cristianismo e o instrumento filosófico e religioso destinado a dar forma a um novo tipo de sociedade humana. Consequentemente, a filosofia espírita deverá socializar-se, se quisermos que avance ao lado do progresso, sem ser ultrapassada em sua militância pelas novas ideias. 

A alma dos tempos modernos está eivada de transformações gerais. Se queremos impulsionar o progresso dos homens, teremos de penetrar no social, onde pulsa o coração das realizações futuras. Não nos esqueçamos de que é nas massas que estão encarnados os tristes e deserdados. Foi nessa perspectiva que Kardec viu o sentido social do espiritismo, ao ponto de chegar a sustentar que é a eles, “mais que aos felizes da Terra”, que se dirige o seu ideal religioso ou de redenção humana. A mensagem que o espiritismo proclama é a mesma que se ouviu há vinte séculos no Sermão da Montanhaencarnando-se outra vez na história, conforme fora anunciado; através da divina presença do Espírito de Verdade

/… 
(i) Ver Obras Póstumas, Kardec, capítulo Liberdade, Igualdade e Fraternidade e O Livro dos Espíritos, capítulo sobre o mesmo assunto. 
(ii) Allan Kardec, Obras Póstumas, capítulo citado atrás. 
(iii) Revista La Idea, Buenos Aires, n.° 275, abril de 1947. 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III MARX E KARDEC (II de II), 5º fragmento desta obra. 
(imagem: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

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