Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER

   O autor de Contemplações não negava as vidas sucessivas da alma; ao contrário, acreditava nelas como numa teoria infinita pela qual o Ser, passando de um longínquo histórico a um novo tempo, se engrandece espiritualmente. Sentia-se protagonista da grande evolução palingenésica da humanidade; por isso, as idades distintas do passado se repercutiam vivamente na sua sensibilidade poética. A visão cosmológica que possuía aproximava-o do pensamento de Camille Flamarion, que pregou a doutrina da pluralidade dos mundos habitados em relação com a pluralidade da existência da alma. O universo era para o poeta como um palco no qual o espírito age para subir os degraus do infinito. Aceitava, pois, a concepção de Allan Kardec resumida no lema: "Nascer, morrer, renascer e progredir sempre, esta é a lei". Neste aspecto, Victor Hugo coincidia com grandes poetas como GoetheWhitmanLamartineEmerson e outros que, por suas ideias palingenésicas, foram colocados sob o signo da Cruz Ansata.

   Quando o poeta disse que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' fez declaração pública das suas ideias filosóficas baseadas na reencarnação. O seu génio imenso e abrangente não resistia às limitações de uma existência única para a alma. Não obstante as interpretações teológicas, Hugo acreditava que Jesus havia falado de um homem palingenésico quando, dirigindo-se a Nicodemos, disse: "Necessário vos é nascer de novo".

   Ler o seu estudo sobre As Almas é verificar de que forma o poeta penetrou no drama dos espíritos cujas características particulares, tão diferentes entre si, comprovam os variados desenvolvimentos de cada ser, facto que revela o processo palingenésico vivido pelas almas. Para Victor Hugo, o homem não é um composto físico-químico que se perde no nada com a decomposição. Concebia o homem como um espírito reencarnado que traz a sua própria história realizada nas vidas anteriores. Nesse sentido, a poesia se revela como uma acumulação de elevadas virtudes morais que se transformam em harmonia e beleza. Isto porque a beleza para o poeta palingenésico é uma expressão superior do Ser, pela qual penetra na essência religiosa da criação. O homem entra e sai do processo histórico mediante a lei da reencarnação e, à medida em que se liberta do mundo material, liga-se com a realidade do espírito imortal.

   Victor Hugo participava dessa legião de espíritos iluminados a que pertenciam Giuseppe MazziniEmílio CastelarGiuseppe GaribaldiPi y Margall, os que se inspiravam moral e socialmente nas ideias palingenésicas. Mas em Hugo a intuição que o fez compreender que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' manifestou-se com sonoridades enraizadas no cósmico e no divino. O seu génio poético lhe permitiu sentir a presença do passado palingenésico, tal como o percebeu em "Terra Santa" Alphonse de Lamartine. De facto, foi ali que o autor de Jocely se recordou de uma vida anterior relacionada com os tempos apostólicos.

   Victor Hugo confirmou as suas convicções palingenésicas ao final dos seus dias, quando disse: "Faz meio século que escrevo em prosa e verso; história, filosofia, drama, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que sinto em mim. Quando estiver no túmulo, direi: 'terminei a minha jornada' e não 'terminei a minha vida'. A minha existência recomeçará no outro dia. O túmulo não é um beco sem saída mas uma avenida. A minha obra é apenas um princípio e a sede do infinito prova que existe o infinito.

   "Sou homem, mas sou uma partícula divina que, insignificante como sou, me sinto Deus porque eu também ponho ordem no meu caos interior.

   "Viverei mil vidas futuras, continuarei a minha obra, de século em século escalarei todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias e depois de mil ascensões, livre, transformado, o meu espírito voltará à sua fonte, unindo-se com a realidade absoluta, como o raio de luz retorna ao Sol".

   O grande poeta francês era um lírico profundamente religioso: daí os seus ímpetos por uma vida eterna e renovada pela reencarnação. Como muitos outros génios poéticos, uniu-se à concepção de um ser infinito e espiritual que nasce, morre e renasce. O seu espírito aspirava por "entrar e sair" da humanidade, a fim de participar existencialmente em todos os processos históricos e sentir-se protagonista em todos os episódios da história universal.

   Este mistério palingenésico do homem e do universo é que porá a descoberto a Nova Poesia, a excelsa. Gaia Ciência dos grandes poemas humanos e sobre-humanos. A nova poesia, como foi sentida por Hugo, Whitman, Goethe, NervoCapdevila e outros grandes poetas, revelará cada vez mais à humanidade que sem "vidas sucessivas" tudo estará desvinculado no grande processo da criação. Por outro lado, com o homem palingenésico, ou seja, o ser que nasce, morre e renasce tudo se une e entrelaça no universo. A história se mostra como um processo universal determinado pelo ''processo individual" dos espíritos encarnados. Victor Hugo cantou esse renascimento incessante das almas para que o homem compreenda que ele está sempre presente em todos os períodos da história.

  No poema O aparecido do seu livro Contemplações, a ideia do regresso palingenésico dos espíritos está dramaticamente descrita. Fala de uma mãe que adorava o seu filhinho e sonhava para ele um futuro radiante. Mas um dia, disse o poeta, "esse corvo chamado crupe penetrou bruscamente naquele lar feliz e, arrojando-se sobre o menino, pegou-o pela garganta". A mãe infeliz, vendo-se sem o filho querido, destruído pelas garras da morte, "ficou imóvel três meses, os olhos fixos, murmurando um nome ininteligível e olhando sempre para a mesma parte da parede".

   Mais adiante, diz o poeta: "O tempo passou, passaram-se os dias, semanas e meses e aquela mulher soube que seria mãe pela segunda vez''.

   Quando pressentiu a vinda do novo filho, a mãe "empalideceu e lançou um grito: – Quem é este ser estranho? exclamou. E, caindo de joelhos, acrescentou: 'Não, não o quero; meu filho morto teria ciúmes e me pressionaria por acreditar que o houvesse esquecido e que outro ocupava o seu lugar: ''minha mãe o quer, concebe-o formoso, ri com ele e beija-o; mas eu, eu estou no túmulo! Não, não o quero! "Fazia-a falar assim a sua dor profunda".

   "Quando amanheceu – continua o poeta – vendo que o seu marido era pai de outro filho, a mulher exclamou, agitada: É menino! O marido, porém, era o único que estava alegre em casa; a mãe permaneceu triste, sem esquecer o filho morto. Trouxeram-lhe o recém-nascido, deixou que viesse e o apertou no seu peito; imediatamente, porém, pensando sem cessar mais no filho morto do que naquele ali, preocupando-se mais com a mortalha do que com o agasalho, exclamou: – Está só no túmulo aquele anjo! Mas, por um milagre que fez voltar a sua alegria, aquela mãe ouviu que o recém-nascido falava nos seus braços, com voz familiar, e dizia baixinho: – Sou eu!.. mas não o digas!"

  De facto, o filho morto havia regressado através da grande lei da reencarnação. O ser chorado e tão desesperadamente invocado havia voltado às entranhas de sua mãe e por elas renascido para acalmar a sua dor e continuar, dessa forma, o seu ciclo de crescimento espiritual.

  Com este poema, Victor Hugo venceu a escuridão, o túmulo e afirmou à cultura filosófica do seu tempo que o homem é uma entidade imortal que encarna e desencarna para alcançar estados superiores e divinos. Nesse mesmo poema deu à maternidade um novo significado filosófico e religioso quando disse: "Oh mães! O nascimento começa com o túmulo. A eternidade guarda mais do que um segredo divino".
/…



Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER, 7º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

Sem comentários: