O comparsa da matéria ~
Estranharam alguns leitores a acusação de materialismo que
fizemos à teoria corpuscular do espírito. Realmente, alguns trechos do livro do
Sr. Guimarães Andrade parecem contradizer-nos. Assim, por exemplo, na página 110,
encontramos este: “Sem atribuir aos componentes da substância viva a
intervenção de um princípio extra-material, não conseguiremos levar a bom termo
a compreensão do enigma da vida”. (Suprimimos os trechos intercalados, para
maior clareza).
Essa, entretanto, não é mais do que uma das muitas
contradições do livro e da teoria. Enquanto o autor afirma tal coisa, através
de palavras, propõe o contrário na sua elaboração teórica. Preso àquilo que
chamamos de “fatalismo lógico”, o Sr. Guimarães Andrade quer seguir um caminho,
mas na verdade segue outro. O princípio extra-material não tem lugar nessa
teoria corpuscular, tipicamente mecanicista, irremediavelmente amarrada às
ciências da matéria.
Na página 116, por exemplo (Cap. VI), vemos o autor
equiparar os bions aos electrons. As suas palavras textuais são estas: “O bion
seria um correspondente tetradimensional do electron. As suas propriedades se
assemelham e são homólogas. Todavia, um tem quatro e o outro tem três
dimensões. Talvez somente nisso resida a diferença entre eles”. Como vemos, a
diferença é apenas dimensional. Mas quando nos lembramos de que a quarta
dimensão é o tempo da concepção física de Einstein, chegamos a perguntar porque
o autor se refere ao espírito.
Tudo se passa, como já demonstramos, no “continuum
espaço-tempo”, que é um “continuum” material, o todo material do universo
einsteiniano. O próprio autor chama o espírito de “comparsa da matéria”,
chegando a falar num “conúbio entre o espírito e a matéria”. Mas por que esse
conúbio, se a matéria pode explicar tudo, pois tudo se passa nela? O espírito
aparece por mero engano, como “peninha para atrapalhar”, pois o que importa é a
matéria. E tanto assim, que o espírito, antes de se integrar na matéria, é
apenas matéria em quarta dimensão.
Para sair da situação contraditória em que se colocou, o
autor inventa um curioso processo de queda dos átomos espirituais, atraídos por
um campo material. Mas nesse momento tem de reformar, não só o Espiritismo,
como também a Física. A sua posição é então a de um reformador universal. De um
lado, quer modificar Allan Kardec, do outro, modificar Einstein e todos os
teóricos da física nuclear. A sua teoria da queda dos átomos, entretanto, não é
mais do que uma imitação da teoria da inclinação dos átomos, de Epicuro. E
sabemos que Epicuro foi acusado, por essa teoria da inclinação, de haver
desfigurado o atomismo de Demócrito.
Vejamos como o autor propõe essa aparente novidade: “Para
explicar o fenómeno (a vivificação da matéria), precisamos transpor algumas
barreiras conceptuais da própria Física, admitindo que o movimento dos electrons,
quando cobrindo uma superfície fechada em torno do núcleo, possa desenvolver um
momento magnético perpendicular, ao mesmo tempo, aos três eixos cartesianos que
definem um espaço físico”. Mais uma vez, como assinalamos anteriormente, o
autor se utiliza dos conceitos alheios em função dos seus interesses teóricos.
Amolda ao seu bel-prazer as próprias teorias da ciência moderna.
No final do volume, o Sr. Guimarães Andrade se lembra da
existência de Deus e declara que o excluiu intencionalmente da teoria, para o
incluir mais tarde. O leitor que acompanhou o nosso estudo há de perguntar,
porém, de que maneira Deus seria incluído nesse mundo mecânico, onde o próprio
Espírito da concepção kardeciana foi também posto de lado e “cientificamente”
substituído por um “comparsa da matéria”, que nada mais faz do que obedecer a
leis de atracção e repulsão.
Não existe, na teoria corpuscular do espírito, uma
anterioridade do espírito. “Comparsa da matéria”, ele nasce com esta e nesta se
desenvolve. Na página 134, ao tratar da reencarnação, o autor reafirma a sua
tese: “Como já fizemos ressaltar nos capítulos anteriores, o espírito se forma
e se aperfeiçoa através das suas experiências na matéria”. E na página 184,
explica que a alma é simples “duplicata biomagnética”, que surge com o corpo e
com ele desaparece.
Essa nova teoria da alma é outro ponto obscuro do livro. O
Sr. Guimarães Andrade faz absoluta distinção entre espírito e alma. Afirma que
esta última desaparece com a morte do corpo. Mas acrescenta que ela fica “em
estado latente, aguardando novo veículo fisiológico para se manifestar”. Quer
dizer que a alma desaparece, mas não desaparece. Verdadeiro jogo de
esconde-esconde, perfeitamente dispensável, pois em nada influi na teoria. O
autor se diverte, às vezes, jogando com a sua imaginação, na formulação de
subteorias inteiramente inúteis, simples brinquedos de passa-tempo.
E o perispírito? perguntarão os leitores. E perguntarão com
razão. Mas não podemos dar-lhes nenhuma resposta positiva. O perispírito
existe, porque o autor se refere a ele, mas jamais o define. Aliás, parece que
a omissão é determinada pelo “fatalismo lógico” a que já aludimos. Como
explicar o perispírito, depois que toda a sua possível explicação foi aplicada
ao espírito? O que o Sr. Guimarães Andrade chama de espírito, desde o início do
livro até ao fim, seria mais aceitável se ele o chamasse de perispírito. Mas,
por outro lado, se o fizesse, onde iria parar a teoria corpuscular “do
espírito”?
Pela exposição acima, parece-nos ter ficado claro que a
teoria corpuscular do espírito, como já dissemos, é simplesmente um equívoco. O
Sr. Guimarães Andrade empregou mal a sua inteligência e a sua cultura, ao
querer fazer tamanha revolução no Espiritismo e na Ciência, pois não conseguiu
atingir a nenhum dos dois. Veremos ainda, no último artigo sobre o assunto,
reproduzido logo a seguir, que as intenções do autor não se limitam a
contribuir para o desenvolvimento da ciência espírita. Vão bem mais longe. A
teoria corpuscular pretende substituir a doutrina espírita, deixando Allan Kardec
e a codificação na retaguarda. É por isso, e não pelo gosto de divergir, que
insistimos no esclarecimento do assunto.
José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica
à Teoria Corpuscular do Espírito. O comparsa da matéria, 15º
fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos,
pintura a óleo por Jean-François
Millet)
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