Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a
palavra dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens para os
ensinos mais profundos do Evangelho.
Mas, já desvirtuado pela Versão dos Setenta (i), o
Antigo Testamento não reflectia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que
uma intuição das verdades superiores (2).
“As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz
eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mundo em todas as
épocas, levadas a todos os lugares, postas ao alcance das inteligências, com
paternal bondade. O homem, porém, as tem ignorado muitas vezes. Desdenhoso dos
princípios ensinados, arrastado pelas suas paixões, em todos os tempos
passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver. Essa negligência
do moral belo, causa de decadência e corrupção, impeliria as nações
à própria perda, se o guante (i) da
adversidade e as grandes comoções da História, abalando profundamente as almas,
não as reconduzissem a essas verdades.”
Veio, Jesus de Nazaré (i), espírito poderoso, divino missionário, médium (i) inspirado. Veio, encarnando-se (i) entre os humildes, a fim de dar a todos o
exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza – vida de
abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra indeléveis traços.
A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do
pensamento. Eis por que não pode ter sido criada pela imaginação. Nessa alma,
de uma serenidade celeste, não se nota mácula nenhuma, nenhuma
sombra. Todas as perfeições nela se fundem, com uma harmonia tão perfeita que
se nos afigura o ideal realizado.
A sua doutrina, toda ela de luz e amor, dirige-se sobretudo
aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo
curvados sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da
matéria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida que as
deve reanimar e consolar.
E essa palavra é-lhes prodigalizada com tão penetrante
doçura, exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas e os
arrasta a seguir as pegadas do Cristo.
O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do reino
dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e
do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade da consciência e
na paz do coração.
Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos
primeiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influência das
correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.
Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a
missão, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o impulso da sua
vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos eram restritos e eles
não puderam senão conservar piedosamente, pela memória do coração, as
tradições, os pensamentos morais e o desejo de regeneração que lhes havia ele
depositado no íntimo.
Na sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a
formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam os
princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa nova” a outras
regiões.
Os Evangelhos, escritos no meio das convulsões que assinalam
a agonia do mundo judaico (i),
depois sob a influência das discussões que caracterizam os primeiros tempos do
Cristianismo, ressentem-se das paixões, dos preconceitos da época e da
perturbação dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem os seus
evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros (3). Grandes
querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas
perturbações no Império, até que Teodósio,
conferindo a supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma
à cristandade. A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de
sistemas diferentes, há de ser reprimido.
A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no
próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da natureza
de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Damaso confia
a São
Jerónimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do
Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada
ortodoxa e tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou
a “Vulgata”.
Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerónimo encontrava-se,
como ele próprio o disse, na presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa
variedade infinita dos textos obrigava-o a uma escolha e a retoques profundos.
É o que, assustado com as responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios
da sua obra, prefácios reunidos num livro célebre. Eis aqui, a exemplo, o que
ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina dos
Evangelhos:
“De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que,
de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que
estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os
que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso
trabalho, mas é também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos
julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e
conduzir à infância o mundo já envelhecido.
“De facto, qual o sábio e mesmo o ignorante que, a partir do
momento que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido
apenas uma vez, vendo que se encontra em desacordo com o que está habituado a
ler, não se ponha imediatamente a exclamar que eu sou um sacrílego, um
falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir
alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans esse sacrilegum qui audeam
aliquid in veteribus libris addere, mutare, corrigere. (4)
“Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que
vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é que a
verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas
por si a aprovação dos maus.”
São Jerónimo termina assim:
“Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro
Evangelhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois de
haver comparado certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não
afastam muito da versão itálica, combinamo-los de tal modo (ita calamo
temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o
sentido, conservamos o resto tal qual estava.” (Obras de São Jerónimo, edição
dos Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425.)
Assim, é conforme uma primeira tradução do
hebraico (i) para o grego, por cópias com os nomes de
Marcos e Mateus; é, num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos,
cada um dos quais difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices)
que se constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada, como o
confessa o autor, de antigos manuscritos.
Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o
pensamento de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada em
diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que havia parecido bom,
do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado em 1546 pelo concílio ecuménico de
Trento (i), foi declarado insuficiente e erróneo por Sixto V,
em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem; mas a própria edição que daí
resultou e, que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente
VIII numa nova edição, que é a que hoje está em vigor e pela qual têm
sido feitas as traduções francesas dos livros canónicos, submetidos a tantas
rectificações através dos séculos.
Entretanto, a despeito de todas estas vicissitudes, não
hesitamos em admitir a autenticidade dos Evangelhos nos seus textos primitivos. A
palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda a dúvida se desvanece à
fulguração da sua personalidade sublime. Sob o sentido adulterado, ou
oculto, sente-se palpitar a força da ideia primitiva. Aí se revela a mão do
grande semeador. Na profundeza desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor,
sente-se a obra de um enviado celeste.
Ao lado, porém, dessa potente destra, a
frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas enxertando
débeis concepções, muito mal ligadas aos primeiros pensamentos e que, a par dos
arroubos da alma, provocam a incredulidade.
Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é,
todavia, necessário submeter o seu conjunto à inspecção do raciocínio.
Todas as palavras, todos os factos que neles estão consignados não poderiam ser
atribuídos ao Cristo.
Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redacção
definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram
esquecidos, muitos factos contestáveis aceites como reais, muitos preceitos,
mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para servir às
conveniências de uma causa, foram decotados os mais belos, os mais opulentos
ramos dessa árvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar, os
fortalecedores princípios que teriam conduzido os povos à verdadeira crença, à
que eles hoje em dia ainda visam.
O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos
textos sagrados, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões ulteriores,
introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era assegurar, fortalecer,
tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal foi o objectivo colimado através
dos séculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos documentos
primitivos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito
evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis
obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e que
protestam contra o facto de se encontrarem associadas a tantos empreendimentos
ambiciosos, inspirados no apego ao domínio e aos bens materiais.
Seria preciso um grande trabalho para destacar o
verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, tarefa
possível, ainda que árdua para os inspirados, guiados por direcção segura, mas
um labor impossível para os que só pelas suas próprias faculdades se dirigem
nesse Labirinto em
que com as realidades se misturam as ficções, com o sagrado o profano, com a
verdade o erro.
Em todos os séculos, impelidos por uma força superior,
certos homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o supremo
pensamento das sombras em torno dele acumuladas.
Amparados, esclarecidos por essa centelha divina que
para os homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco nunca se
extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os suplícios, para afirmar
o que acreditavam ser a verdade. Tais foram os apóstolos da
Reforma.
Na sua tarefa, eles foram interrompidos pela morte;
mas do seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se
batem por essa grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre
as almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito mais
vasta.
É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova
revelação, científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em todo o
mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo, que procuraremos
livrar a doutrina de Jesus das obscuridades em que o trabalho dos séculos a
envolveu. Chegaremos, assim, à conclusão de que esta doutrina é simplesmente a
volta ao Cristianismo primitivo, sob formas mais precisas, com um imponente
cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo o monopólio, toda
a reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento de Jesus.
/…
(2) Ver nota complementar nº 1. (← link para aceder à nota), no fim do volume.
(3) Ver nota complementar n° 3. (← link para aceder...)
(4) A obra de S. Jerónimo foi, efectivamente,
mesmo na sua vida, objecto das mais vivas críticas; polémicas injuriosas se
travaram entre ele e os seus detractores.
Léon Denis (1846-1927) (i), Cristianismo
e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et
Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Autenticidade
dos Evangelhos, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo
do Anjo, lápis e giz de Alexandre
Cabanel)
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