Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 11 de agosto de 2018

agonia das religiões ~


A Criação do Homem |

Concedo-me o direito de me abstrair do problema de Deus para examinar a questão da criação do homem. Os cientistas colocaram-se precisamente nesta posição e admitiram a existência de um processo evolutivo no qual o homem aparece como resultado de uma filogénese fantástica. Dos animais inferiores até aos superiores, num desenvolvimento progressivo e complexo, as forças naturais modelaram formas sucessivas de vida que deram como resultado o aparecimento da espécie humana na Terra. A superioridade do homem perante as espécies animais de que ele procederia, suscitou dúvidas e debates que permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discípula e companheira de Sartre no campo da concepção existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie não pode ser aplicada à humanidade, que não é uma espécie animal, mas um devir, algo em auto-evolução constante e irrefreável. Alfred Russell Wallace, adversário de Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao seu materialismo biológico, sustentando uma posição espiritualista. De Spencer a Bergson a concepção evolucionista conseguiu firmar-se como a mais elevada interpretação da realidade, apesar da insistência das correntes dogmáticas-religiosas e das correntes irracionalistas em combatê-la, considerando-a simples teoria metafísica sem bases científicas.

Após a segunda guerra mundial e em consequência das atrocidades a que grandes nações civilizadas foram conduzidas, o pessimismo levou o homem a novas formas de dúvida. Passou a falar-se em mudanças, não em progresso ou em evolução. Produto do susto e da decepção, esse recuo está a ser superado pelo próprio avanço científico, em que os processos da evolução se confirmam continuamente. Kardec já advertia, no século passado, que o mal das interpretações humanas está na falta de uma visão mais ampla e profunda da realidade. Os homens vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza e apegam-se a essa percepção restrita para a elaboração dos seus pensamentos. Exemplo típico dessa restrição mental é a tentativa, hoje renovada, de separar a evolução biológica, considerada inegável, dos demais aspectos do processo evolutivo universal. Uma restrição arbitrária, característica da orientação analítica da pesquisa científica e oposta à visão de conjunto dos métodos conclusivos da reflexão filosófica.

Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a oposição dos contrários. O método analítico é uma faca de dois gumes. Por um lado faculta-nos a precisão objectiva no conhecimento de uma realidade específica, por outro lado impede-nos a visão de conjunto. Foi exactamente por isso que se tornou necessário, após o aparente desprestígio da Filosofia, perante as conquistas inegáveis da pesquisa científica, recorrer-se à Filosofia das Ciências para se evitar a fragmentação total do Conhecimento. Só no plano filosófico se tornou possível reajustar as conquistas científicas num quadro geral de interpretação da realidade. Mas existe outro factor determinante da desconfiança científica em relação aos princípios espíritas, que é o instinto de conservação, agente preservador da integridade do homem e das suas realizações. Esse instinto, bem manifesto no sócio-centrismo das instituições científicas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo o que possa modificar o saber já considerado como adquirido. Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de Altos Estudos de Paris, denunciou a existência no campo científico de uma alergia ao futuro, responsável pela rejeição liminar, sem exame, de toda a novidade, mesmo que sustentada por cientistas com mérito. Essa neofobia tem produzido muitos mártires no campo científico e cultural em geral.

Pouco a pouco, porém, e hoje mais rapidamente do que no passado, essa posição acomodatícia vai sendo vencida pelas próprias exigências do progresso, da evolução científica. Nos nossos dias, a descoberta da antimatéria, as pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenómenos paranormais através da Parapsicologia, a recente descoberta do corpo-bioplásmico do homem e de todos os seres, o êxito, ainda incipiente mas já significativo, das pesquisas sobre a reencarnação, a constatação da existência de outras dimensões da realidade, a evolução do conceito de universos-paralelos para o de universos interpenetrados, a aceitação da pluralidade dos mundos habitados e da escala evolutiva dos mundos – proposta há mais de um século pelo Espiritismo – estão a arrancar as corporações científicas das suas cómodas poltronas académicas e lançando-as decisivamente em órbita, nas rotas giratórias do progresso.

Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que ele se compara a um falcão que gira em círculos crescentes em torno de uma torre secular, símbolo de Deus. É uma imagem feliz da evolução, que se processa em espiral. O retorno à barbárie na segunda guerra mundial não representa o retrocesso da evolução humana, mas apenas uma curva decrescente da espiral que tocou os resíduos bárbaros do homem – a região subterrânea dos instintos animais – para uma espécie de catarse colectiva. Mas tudo serve para a exploração dos que se entregam ao comodismo e aos que ainda não conseguiram desprender o seu pensamento dos objectos materiais. A História da Matemática mostra-nos que o pensamento dos primitivos era de tal maneira apegado ao concreto que, nas tribos selvagens, a contagem das coisas não excedia ao número de dedos das mãos, indo quando muito até à soma dos dedos dos pés. A posição dos anti-evolucionistas actuais assemelha-se, guardadas as distâncias culturais, à dos selvagens presos aos seus próprios dedos. Temos a prova da evolução em nós mesmos e em tudo o que nos rodeia, mas os espíritos sistemáticos e opiniáticos querem as favas contadas onde não há favas.

Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Universo, numa sequência constante de relações. No item 540 de “O Livro dos Espíritos”, a obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposição: Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até ao Arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Assim, do átomo nasce o minério, deste o vegetal, deste ao animal, deste ao homem e deste ao Anjo, ao Arcanjo e quantas criaturas espirituais quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural desaparece quando admitimos o processo contínuo da evolução. A Natureza mostra-nos as duas faces da concepção de Espinoza, com a sua teoria da Natureza naturata e da Natureza Naturans, equivalente ao conceito de um mundo sensível e um mundo inteligível, do pensamento de Platão, interligados e interatuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas já vimos que a fonte originária, pelo facto mesmo de ser a origem de tudo está ligada ao Todo e nele se insere. Podemos, como os druidas (os sacerdotes celtas das Gálias) imaginar o Universo formado por três círculos: o de Gwinfidem que Deus permanece; o de Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais; o de Anunf, correspondente às regiões inferiores do plano evolutivo. Mas na concepção materialista o círculo de Gwinfid não pode existir, uma vez que Deus foi excluído. Como podemos considerar a criação do homem sem a acção de Deus? É o que tentaremos expor agora.

A união de dois princípios fundamentais, força e matéria, existentes no caos primitivo, determina o aparecimento das estruturas atómicas. Os átomos aglutinam-se em formações diversas e produzem os elementos minerais. Mas estes elementos não estão mortos, não são estáticos. No seio da sua aparente placidez os átomos continuam em permanente agitação e produzem, quando as condições se tornam favoráveis, as primeiras formas vegetaisNestas formas temos o nascimento da sensibilidade rudimentar, que vai desenvolver-se até à produção das primeiras formas animais. A actividade atómica transmite-se a essas formas produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação própria, que arranca os animais do solo e os submete às experiências vitais. A sensibilidade aguça-se e aprimora-se através dos milénios. Os cérebros rudimentares desenvolvem-se e enriquecem-se, o sistema nervoso (desenvolvimento do sistema fibroso vegetal) estrutura-se numa rede sensível, permitindo a organização de um aparelho cerebral que capta e reelabora os estímulos exteriores. Os animais evoluem até ao aparecimento dos primatas, que assinalam o salto qualitativo do cérebro animal para o cérebro humano.

Eis, em linhas gerais, neste esquema superficial, o processo de criação do homem. Quanto mais simples este esquema, mais fácil para compreendermos a lenta elaboração da criatura humana a partir da noite dos primórdios. Supor-se-á que essa criatura grosseira, elaborada a partir do mineral, não tenha qualquer outra experiência além das que enfrentou no processo de sua formação. Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma inteligência criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginação e – o que mais assombra – dotada de um anseio crescente para elevar-se além da sua condição humana e atingir uma posição superior de que ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua condição primitiva – de bicho da Terra tão pequeno, como escreveu Camões – e os seus anseios incontidos de elevação e comunicação com os planos e os seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso? Supõem os materialistas que se trata de produto da imaginação excitada pelo medo, num desejo natural de alcançar a segurança através de criações imaginárias. Mas como explicar a coerência dessas criações arbitrárias com os fenómenos paranormais, cuja existência está hoje cientificamente provada? Que dizer de uma ideia primitiva, como a de uma duplicata do corpo material que pode projectar-se à distância, a que Spencer atribuiu simplesmente ao sonho, quando esse corpo hoje se confirma através das pesquisas cientificas no campo da Física e da Biologia, por pesquisadores materialistas?

Este é o momento em que temos de voltar à ideia de Deus inata na criatura humana – o Ser perfeito de Descartes encontrado no fundo da sua própria imperfeição – à lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu papel decisivo na orientação do homem para a sua humanização. O acaso da concepção materialista se transforma necessariamente numa inteligência cósmica a desafiar, pela sua grandeza e a sua inegável sabedoria na construção universal, a miserável inteligência humana, capaz de tudo atribuir a um jogo de forças cegas no seio de uma nebulosa. Não precisamos nem mesmo de pensar nas formações complexas do homem ou do anjo. Podemos ficar nos primórdios, a examinar apenas a estrutura do átomo, a construção infinitesimal desse universo microscópico, ou melhor, infra-microscópico. Mas se olharmos para cima e pensarmos nos sistemas solares, nas galáxias e nas super-galáxias, o absurdo da concepção materialista tornar-se-á simplesmente monstruoso. Sentiremos as orelhas de Midas substituírem, peludas e agudas, as nossas delicadas orelhas humanas.

E o que dizer da experiência de Deus procurada através de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão percorrida pela humanidade através dos milénios, numa experiência natural e vital em que as forças da vida vão brotando do chão do planeta e projectando-se às profundidades cósmicas? É como se milionários ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas e janelas fechadas, para contar os níqueis do bolso do colete a fim de avaliar quanto possuem, para terem a experiência do dinheiro. Basta isso para nos mostrar a razão da crise religiosa do presente. Os homens começaram a descobrir que possuem muito mais do que as igrejas lhes podem dar.

Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica, arrancado das entranhas do reino mineral, segundo a teoria evolucionista espírita, o homem está ainda em formação, em desenvolvimento, amadurecendo nas experiências que enfrenta na existência corporal. O corpo é o seu instrumento de evolução. Um instrumento vivo e activo que ele precisa controlar pela força do espírito. Na proporção em que avança, o espírito se impõe ao corpo e o domina. A dialéctica da evolução torna-se nele um processo consciente. É o único responsável pelo sucesso ou fracasso do seu destino. Deus está nele como um poder de manutenção e orientação, mas não com poder punitivo. Ele mesmo se castiga ante o tribunal da sua consciência. Quando se dispõe a progredir, o prémio que recebe é a graça que o fortalece para que possa vencer o mal. Ninguém pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe da jurisdição de si mesmo e supera o seu condicionamento determinista pelas decisões do seu livre-arbítrio. Juiz e réu ao mesmo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento de causa.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 6 – A Criação do Homem, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).

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