Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 22 de março de 2020

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XIX

O Espiritismo e a Filosofia Contemporânea ~

(Novembro de 1918)

 Apresentámos, em traços largos, a rápida marcha e o progresso do Espiritismo, durante os últimos 50 anos, em todos os domínios do pensamento, isto é, na Ciência, na experimentação psíquica, na Literatura e até no seio das Igrejas. Falta-nos analisar agora qual foi a sua influência no movimento filosófico contemporâneo, particularmente na filosofia de escola.

 Notemos que esses resultados foram obtidos fora de qualquer organização espírita, sem outros meios de acção ou outros recursos, a não ser o próprio poder da verdade e sem qualquer outra direcção, a não ser a que promana do Além. Porém, será esta, provavelmente, a mais segura e a mais eficaz, porque, melhor que os recursos humanos, pode vencer os preconceitos, as rotinas e os mais obstinados contraditores.

 Na verdade, todos os que trabalharam com persistência na divulgação do Espiritismo se sentiram ajudados e amparados pelo mundo invisível.

  Quanto à obra filosófica realizada neste meio século, não passaremos em revista todos os seus sistemas, para não sairmos do limite deste estudo; tão-somente perguntaremos qual a parte que se deve atribuir à ideia espírita no ensino oficial.

 Dizemos, inicialmente, que durante este período as teorias materialistas não pararam de retroceder e que o espiritualismo tende a substituí-las.

  Actualmente, o ensino oficial baseia-se na filosofia de Henri Bergson, cuja influência aumenta cada vez mais no exterior, ao mesmo tempo em que a sua acção sobre os espíritos se torna mais intensa no nosso país.

  As ciências psíquicas são familiares a Bergson, que seguiu com atenção o seu desenvolvimento. Ele é o autor de um artigo no Boletim do Instituto Geral de Psicologia, de Janeiro de 1904, sobre a visão de clarões na obscuridade pelos sensitivos.

  A sua filosofia não é um sistema que se junta aos anteriores. É original e profunda, representando uma verdadeira revolução no mundo do pensamento. Desde Spencer tem sido aceite que a inteligência é a principal faculdade, o mais seguro meio para se conseguir o conhecimento e abranger o domínio da vida e da evolução.

  Ora, Bergson – prova que a inteligência, que constitui uma emanação da vida, por si só é impotente para abranger a vida e a evolução , porque a parte não pode abranger o todo, nem o facto reabsorver a sua causa. Então o que fez ele? No lugar da inteligência coloca a intuição e, isso constitui um acontecimento da mais alta importância na Psicologia, pois a maior parte das faculdades mediúnicas  a clarividência, a premonição e a previsão dos acontecimentos – se prende à intuição. No dia em que a Ciência encontrar um método prático para desenvolver essa intuição, ela se aproximará dessas faces misteriosas da alma humana, com as quais esta se limita com a presciência divina e pelas quais se revelam a sua íntima essência e a sua imensa evolução.

 Com o desenvolvimento destas faculdades, podemos entrever o aparecimento de uma estirpe de homens que nos superará em poder, tanto quanto o homem actual supera o pré-histórico. Então a alma humana se apresentará com toda a sua grandeza; veremos que ela possui profundos mananciais de vida, onde pode sempre retemperar-se e, que possui picos iluminados pela luz da eterna verdade.

  A alma humana é um mundo. Conhece o esplendor das alturas e a vertigem dos abismos.
 Possui precipícios em cujo fundo rugem as torrentes das paixões. Contém filões plenos de riquezas e, o seu destino consiste exactamente em valorizar todos esses tesouros escondidos.

  O estudo da obra de Bergson mostra-nos, em certos pontos, semelhanças notáveis com a Doutrina EspíritaA vida da criatura, afirma ele, é o resultado de uma evolução anterior ao nascimento. Existe um encadeamento, uma continuidade na transformação, no progresso e, ao mesmo tempo, existe uma conservação do passado no presente. Bergson admite, como nós, que esse passado está gravado na consciência profunda e marca a evolução paralela do ser orgânico e do ser consciente. Aqui estão os termos com os quais define essa evolução:

  “O progresso é constante e prossegue indefinidamente: o progresso invisível, sobre o qual o ser visível se sobrepõe no espaço de tempo que percorrerá na Terra. Quanto mais mantemos a atenção nesta continuidade da vida, tanto mais veremos a evolução orgânica aproximar-se da evolução consciente, em que o passado actua sobre o presente, para dele fazer brotar uma nova forma, que é a resultante das anteriores.”

  Sem dúvida, isto é transformismo, porém de tal forma espiritualizado, que se aproxima de uma maneira perceptível da filosofia das vidas sucessivas. Essa noção das existências anteriores vem afirmada e precisada em numerosas páginas de Bergson das quais vão aqui alguns trechos:

  “O que somos nós, o que é o nosso carácter senão a condensação da história que temos vivido desde o nosso nascimento e, mesmo antes dele, pois que já trazemos connosco disposições pré-natais?”

  “A vida é o prosseguimento da evolução pré-natal e a prova disso é que muitas vezes se torna impossível dizer se estamos a tratar com um organismo que envelhece ou com um embrião que continua a progredir.”

  Voltamos a encontrar em Bergson a concepção espírita da vida universal:

  “O Universo não está feito, faz-se porém sem cessar, crescendo, sempre, indefinidamente, pela junção de novos mundos... É possível que a vida se manifeste noutros planetas e também noutros sistemas solares, sob formas que não imaginamos, em condições físicas que nos parecem, do ponto de vista da nossa fisiologia, inteiramente desconhecidos.”

  Segundo Bergson, o princípio da evolução não está na matéria visível e sim na invisível.

  Diz ele:

  “Todos os novos dados científicos tendem a transpor a evolução, elevando-a do visível para o invisível.”

  Pode observar-se que Bergson, na sua obra, fala constantemente da vida e muito pouco da morte. Nenhum filósofo parece se ter preocupado menos com esse acidente passageiro que não põe fim a nada. Para ele, como para nós, a vida triunfa e reina, soberanamente, tanto antes como depois da morte.

  Também sobre o livre-arbítrio, a opinião de Bergson está de acordo com o que sempre sustentamos. Afirma ele:

  “A finalidade da vida é colocar a indeterminação na matéria. Indeterminadas (quero dizer imprevisíveis) são as formas que ela cria no correr da sua evolução. Também cada vez mais indeterminada (isto é, cada vez mais livre) é a actividade para a qual essas formas devem servir de veículo.

  Mais adiante acrescenta:

  “A liberdade não é absoluta: admite graus... Somos livres enquanto somos nós mesmos, isto é, no nosso estado de personalidade profunda, porém somos determinados enquanto pertencemos à matéria e à extensão. A personalidade humana é um jacto vivo de incontrolável liberdade... A liberdade constitui um facto de experiência interna, uma coisa sentida e vivida, não raciocinada.”

  Em síntese, nota-se que o bergsonismo, como a doutrina dos espíritos, dá ao homem mais força para viver e para agir, ligando-o mais intimamente a tudo quanto vive, ama e sofre no mundo.

 O materialismo isola inteiramente o homem: na engrenagem da máquina cega do mundo o homem sente-se reduzido ao nada. Porém a ideia muda: assim como o menor grão de pó é solidário com o imenso sistema solar, assim também todos os seres vivos, desde as origens da vida, através dos tempos e lugares, não fazem outra coisa senão tornar mais perceptível uma direcção única e invisível.

  Estão sujeitos uns aos outros, interligam-se e obedecem a um impulso formidável, como uma caravana imensa que marcha através do tempo e do espaço,
 transpondo os obstáculos e desdobrando-se para além de todas as mortes.

  Não existe aí algo de novo na filosofia oficial que, até agora totalmente impregnada de intelectualismo, estava tolhida diante do problema da criatura?

  Félix Le Dantec e a sua escola procuravam a vida somente na matéria, porém Bergson, colocando mais alto a inteligência e a vida, reabilita, de algum modo, o mundo vivo, encontrando o laço que prende as doutrinas ocidentais às da Grécia e do Oriente, às crenças do nosso pais, àquela filosofia celta, resumida nas Tríades e às quais se terá de voltar, certamente, algum dia.

  E, quer Bergson tenha conseguido as suas ideias nos seus estudos psíquicos, quer nas inspirações do seu próprio génio, o facto não é menos notável, do ponto de vista da semelhança das doutrinas, principalmente no que toca às suas vastas consequências morais e sociais.

  Terminando a sua magistral obra A Evolução CriadoraBergson insiste na relatividade dos factos e na sua impotência para nos darem apenas uma concepção parcelar da natureza. Ataca com vigor os pontos de vista arbitrários de Herbert Spencer, os que a Ciência adoptou:

  “Não se pode raciocinar sobre as partes como se raciocina sobre o todo. O filósofo deve ir mais longe do que o sábio. A inteligência extrai os factos desse todo que é a realidade. No lugar de afirmar que as relações entre os factos formaram as leis do pensamento, posso bem imaginar que a forma do pensamento é que determinou a configuração dos factos perceptíveis e, consequentemente, as suas relações entre si.”

  Termina da seguinte forma:

  “A filosofia não é somente a volta do espírito para si mesmo, a coincidência da consciência humana com o princípio vivo de onde ela emana, um contacto com o esforço criador; ela é o aprofundamento da transformação em geral, o verdadeiro evolucionismo e, por consequência, o verdadeiro prolongamento da Ciência, com a condição de que se compreenda por esta última palavra um conjunto de verdades constatadas ou demonstradas e, não certa escolástica nova que apareceu, durante a segunda metade do século XIX, em torno da física de Galileu, assim como a antiga escolástica o havia feito em torno de Aristóteles.”

  Todos os espíritos abalizados se impressionarão com a concordância que há neste ponto entre a maneira de ver de Bergson e a exposta por Allan Kardec.

  Realmente, em matéria de Espiritismo, o Codificador nunca desejou separar a doutrina dos factos, mas ainda há entre nós quem desejasse limitá-lo a um campo experimental. Isso leva-nos a considerações especiais quanto à doutrina dos espíritos.

  Ninguém discute que os factos sejam a base do Espiritismo, a prova da sobrevivência da alma depois a morte. Todavia, atrás deles existe toda uma revelação. No Espiritismo o facto não se produz sem um ensinamento, sempre que o fenómeno obtido seja de ordem um tanto elevada.

   Os espíritos não se procuram comunicar connosco a não ser para nos instruírem e nos iniciarem nas grandes leis do mundo espiritual, cujo conhecimento é muito importante, principalmente nos momentos de provação.
 Foi assim que Allan Kardec compreendeu e sentiu o Espiritismo e porque, na sua obra, ele liga intimamente a doutrina à ciência. Procedendo assim, ele não atendia a uma vontade pessoal, porém a uma necessidade e à própria natureza do que ele estudava.

  O poder de acção, o papel social do Espiritismo não se deve ao que ele atende, mas simultaneamente, a todas as necessidades da alma humana, às múltiplas e importantes urgências do momento actual. O Espiritismo dirige-se, ao mesmo tempo, ao cérebro e ao coração, à inteligência, à consciência e à razão.

  O que forma o poder e a eficácia do Espiritismo é o que as satisfações intelectuais e morais que ele nos apresenta e os ensinamentos que nos proporciona, formam, no seu conjunto, uma majestosa unidade e uma soberba síntese científica, filosófica, moral e social.

  Qualquer doutrina que não busque esses diferentes fins carecerá de equilíbrio.

  A moral que provém do cérebro é estéril; só a do sentimento e do coração pode tornar o homem realmente humano, acessível à misericórdia, compassivo para com todas as dores e dedicado ao próximo.

  Não há dúvida de que devemos estudar os factos dando-lhes a merecida importância, porém, como pretende Bergson, mais além e bem mais alto que os factos, se deve verificar a meta para a qual, por seu intermédio, nos conduzem as forças invisíveis pelas ásperas sendas do destino.

  Portanto, o Espiritismo não é apenas o fenómeno físico, a dança das mesas, como ainda parecem acreditar alguns homens. Ele é todo um esforço do Além para tirar da alma humana as suas dúvidas e as suas enfermidades morais, obrigando-a a ter plena consciência de si mesma, realizando os seus gloriosos fins.

  O Espiritismo é o raio de esperança que vem aclarar o nosso sombrio Universo, a nossa Terra de lama, sangue e lágrimas; é o raio luminoso que vem clarear as habitações miseráveis, penetrando nas residências tristes onde a desgraça habita e onde gemem os que sofrem.

  O Espiritismo é o chamamento do Infinito; são as vozes que chegam para proclamar o mais nobre e mais poderoso ideal que o génio humano já alguma vez sonhou.

  Atendendo a esses apelos, a essas vozes, as frontes curvadas sob o peso da vida se levantam e os desesperados, os náufragos da existência cobram o ânimo, vendo, no sombrio céu do seu pensamento, brilhar uma aurora que anuncia novos tempos, tempos bem melhores para a humanidade.

  O Espiritismo é a comunhão das almas que se chamam e se respondem através do espaço. Graças a ele chegam até nós notícias dos que foram nossos companheiros de lutas na Terra. Pensávamos tê-los perdido e eis que nos sentimos ligados a eles novamente!

  É uma grande alegria saber e sentir que estamos vinculados àqueles a quem amámos, unidos através dos séculos, porque a morte é apenas uma ilusão da vista e toda a separação é só passageira e aparente.

  Não nos sentimos apenas ligados a eles, porém a todas as almas que povoam a imensidão, porque o Universo é uma grande família.

  Nos milhares de mundos que giram nos espaços, por toda a parte, possuímos irmãos e irmãs que estamos destinados a encontrar e conhecer algum dia e por toda a parte existem almas com as quais continuaremos o nosso progresso, debaixo de leis sábias, profundas e eternas!

  O sentimento e o poderoso instinto de vida e de solidariedade universais despertarão, aos poucos, em nós.

  Através desse meio, sentir-nos-emos vinculados aos mais humildes como aos mais nobres espíritos; sentir-nos-emos na mesma categoria dos heróis, dos sábios e dos génios, teremos a possibilidade de nos reunirmos com eles na luz, quando também houvermos trabalhado, lutado, padecido e merecido.

  Finalmente, o Espiritismo é toda a movimentação da vida invisível; um universo vivo – até há bem pouco tempo ignorado, excepto por alguns, poucos – e que sabemos e sentimos que existe, se agita, palpita, vibrando à nossa volta e enchendo o espaço com radiosos pensamentos, pensamentos de amor e inspirações geniais.

 Cada vez mais, iremos senti-lo a viver e a agir, graças ao desenvolvimento de faculdades que se multiplicarão, crescerão e se tornarão comuns a um grande número de pessoas.

  Dessa forma, conseguiremos também a valiosa certeza da protecção, do amparo que do Além se estende sobre nós; a prova de que a solicitude do Alto envolve todos os peregrinos da existência no seu penoso jornadear terreno.

  Na luta que está a ser travada para o progresso da humanidade – a grandiosa batalha das ideias – o Espiritismo é o mais forte dos combatentes, porque nele se reencontram a vida e a morte, a Terra e o Céu se reúnem e se ligam para as lides do pensamento.

  Lutemos, portanto, com nobreza, habilidade e prudência, porque o mundo invisível está connosco.

  Elevemos o nosso brado de esperança e confiança na justiça eterna e consciente que governa os mundos.

  Acreditemos, esperemos e trabalhemos.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XIX O Espiritismo e a Filosofia Contemporânea, Novembro de 1918, 34º fragmento desta obra.
(imagem: Henri Bergson 1859-1941, filosofo e diplomata francês, Nobel da Literatura de 1927)

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