Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 20 de dezembro de 2014

Inquietações Primaveris ~


A Consciência da Morte

Todos sabemos que morremos, que a morte é inevitável, mas estamos tão apegados à vida e fazemos uma ideia tão negativa e temerosa da morte que a rejeitamos na nossa consciência e a transformamos num mito, afastando-a para o Fim dos Tempos. Mito assustador, ela permanece à distância, envolta em névoas, de maneira que só a vemos como figura trágica de um conto de terror. Heideggard observou que só a aceitamos, para os outros, na expressão aleatória morre-se, que nunca se refere a nós. Fascinados pelo fluxo incessante da vida, mergulhados no torvelinho das nossas preocupações do dia a dia, temos a sensação inconsciente e agradável de que ela sempre se distancia de nós. Mesmo quando, conscientemente, pensamos na morte, o fazemos com a ilusão de que ela não chegará tão cedo, pois temos ainda muita coisa a fazer e sentimos que a vida borbulha em torno de nós sem permitir a entrada da morte no nosso meio. Essa é uma forma ingénua de protelarmos a nossa morte, segundo as exigências do instinto de conservação. Assim aliviamos o medo da morte, confiantes no poder da vida.

De nada valem essas pequenas trapaças. A morte chega quando menos o esperamos e não raro nos leva para a outra vida sem nos dar tempo para compreender o que aconteceu. As pesquisas psíquicas, em mais de dois séculos, mostraram o curioso espectáculo de muitas criaturas mortas que não sabem que morreram. Continuam vivas na matéria por conta das suas próprias ilusões e passam a assombrar sem querer e sem o saber os lugares em que viviam ou frequentavam. É claro que permanecem desajustadas no mundo espiritual.

Para evitar esses e outros inconvenientes, devemos desenvolver em nós a consciência da morte, sabendo positivamente que ela existe e é inevitável, sendo inútil qualquer ilusão nesse sentido, que só poderá prejudicar-nos. Temos de nos familiarizar com a morte, considerando-a com naturalidade, não a transformando em tragédia ou em espectáculos inúteis de desespero. Nas sessões espíritas cuida-se muito desses casos, procurando-se despertar os mortos de suas confusões produzidas pelo apego à Terra e integrá-los na nova forma de vida para a qual passaram. Eles não são tratados como almas do outro mundo, mas como companheiros da vida terrena que se libertaram do condicionamento animal por retornarem ao seu mundo de origem, que é o espiritual. Os adversários da doutrina criticam esse processo mediúnico, alegando que criaturas ainda encarnadas nada têm para ensinar às que já se livraram do corpo material. Mas desde as pesquisas de Kardec até aos nossos dias o processo de doutrinação tem dado os melhores resultados, tanto em favor de espíritos perturbados pela passagem súbita ao plano espiritual, quanto no esclarecimento de pessoas que sofrem as influências dessas entidades. Isso se explica por duas razões fundamentais:

1) A doutrinação é a transmissão de ensinos dos desencarnados superiores dados a Kardec, através da mediunidade, para a renovação moral e espiritual da Humanidade. Apoiados no conhecimento desses ensinos é que os médiuns e os doutrinadores atendem as entidades desencarnadas.

2) As pesquisas de cientistas eminentes como Richet, Crookes e Zöllner, no século passado, e Geley, Osty, Crawford, Soal, Carington, Pratt e Price, na actualidade, provaram que nos ambientes mediúnicos a emanação do ectoplasma ampara os espíritos desencarnados e inseguros no plano espiritual, dando-lhes a sensação de segurança física necessária para conversarem com os doutrinadores como se estivessem encarnados. A situação dos espíritos recém-desencarnados, no plano espiritual, não lhes permite a lucidez necessária para compreender facilmente os ensinos que recebem das pessoas que dirigem o trabalho mediúnico.

Esse intercâmbio processa-se em benefício dos espíritos e dos homens, sem nenhum sistema de evocações e rituais. Os espíritos manifestam-se por sua livre vontade, desejosos de comunicar-se após a morte do corpo físico, com familiares e amigos que deixaram na vida terrena. Essas manifestações naturais marcam toda a história da Humanidade, em todo o mundo e em todos os tempos, sem nenhuma interrupção. Não são descobertas modernas nem invenções de qualquer investigador; figuram nos livros sagrados de todas as religiões, na cultura de todos os povos e nas grandes obras literárias, filosóficas e científicas das grandes civilizações. Constituem, portanto, uma fenomenologia ao mesmo tempo arcaica e moderna, actualmente comprovada pelas pesquisas tecnológicas, tanto nas áreas espiritualistas como nas materialistas do mundo actual. Não se trata do produto de crenças ou superstições, mas de uma realidade fenoménica cientificamente provada e comprovada. As interpretações pessoais desses fenómenos, formuladas por clérigos interessados em negá-los ou subordiná-los a processos puramente psicológicos, nada representam, são apenas palpites ingénuos ou interesseiros, fartamente negados pelas grandes pesquisas científicas do passado e do presente.

A morte é um fenómeno natural, de natureza biológica, no qual se verifica o esgotamento da vitalidade nos seres pela velhice ou por acidente fisiológico. Não atinge a essência do ser, que é sempre de natureza espiritual, referindo-se apenas ao corpo material, o que vale dizer que ela não existe como extinção das formas de ser das plantas, dos animais e dos homens. Falar da morte como a nadificação, como faz Sartre, é simples ilogismo, tanto do ponto de vista puramente racional, quanto do científico. As condições actuais do desenvolvimento científico eliminaram totalmente qualquer possibilidade de sustentação da teoria do Nada, esse conceito vazio, como Kant o considerou. Os que insistem na destruição total do homem pela morte revelam ignorância do avanço das Ciências nos nossos dias. O que se fez neste século na investigação desse problema, directa ou indirectamente, liquidou as últimas esperanças dos que sonharam com a irresponsabilidade do nada, de um Universo inconsequente e sem finalidade. Indirectamente, a Física revelou as potencialidades ônticas da matéria e, nas suas entranhas, a eterna dinâmica dos átomos e as suas partículas, sendo que estas, mesmo quando livres, tendem sempre a formar estruturas atómicas definidas e plasmas orgânicos. As pesquisas da antimatéria revelaram a mesma tendência nos antiátomos, criadores de espaços novos e antiestruturas materiais. Os vazios espaciais mostraram-se carregados de campos de força que escapam ao nosso sensório, à precariedade dos sistemas de percepção humana, não raro superadas pela percepção animal. E, directamente, o avanço das pesquisas psicológicas, aprofundadas pela Parapsicologia, confirmaram a tese do avanço constante do inconsciente para o consciente, de Gustav Geley, confirmando a teoria da evolução criadora de Bergson. Cientistas soviéticos voltaram, nas pesquisas astronáuticas, a desvendar os mistérios dos sete véus de Ísis, como o fizeram M. Vassiliev e Sianiukovch, em Os Sete Estados do Cosmos. Nas captações e gravações do inaudível por Raudive, na Alemanha, nas pesquisas de Pratt sobre os fenómenos teta (avisos de morte e comunicações de espíritos de pessoas mortas) e nas pesquisas sobre a reencarnação por Ian Stevenson, Wladimir Raikov (este na Universidade de Moscovo) e por Barnejee na Universidade de Rajastam, temos uma constelação imponente de factos e dados positivos sobre a realidade, hoje inegável, da transitoriedade da morte. Ao mesmo tempo, ante esse panorama de revelações científicas, a morte adquire uma importância gigantesca na construção da génese moderna. Tornou-se impossível a sustentação lírica das teses materialistas dos nossos dias.

A necessidade de uma tomada universal de consciência sobre o sentido, o significado e o valor da morte, tornou-se imperiosa. É simplesmente inadmissível, neste século, qualquer doutrina que pretenda sustentar por simples argumentos que a morte é o fim e a frustração total dos seres vivos e especialmente da criatura humana. O panorama científico actual exige de todos nós o desenvolvimento da consciência da morte, cuja fatalidade inegável se explica pela necessidade de renovação das estruturas da vida em todos os planos da natureza. Em consequência, a presença de Deus, como Consciência Suprema que rege a toda a realidade, numa estrutura lógica, teleológica e antiteológica, firma-se como o imperativo categórico da compreensão do mundo, do homem e da vida. Os teólogos que proclamaram, ante a tragédia nazi num exíguo espaço-tempo do nosso pequenino planeta, a Morte de Deus, mataram a Teologia em que se amamentaram durante séculos, praticamente um matricídio vergonhoso e estúpido. Em última instância, suicidaram-se na porta do Céu, no momento exacto em que o Céu era conquistado pela Ciência mundial. Nunca se viu maior fiasco do que esse, que reduz a simples opereta a façanha de Prometeu e a sua morte no Cáucaso. Soou a hora final das Igrejas, o instante fatal da falência eclesiástica, transformada em toda a parte numa nova morte de Pã. A grande Deusa morreu aos nossos olhos, como já havia morrido o Deus Pã nos fiordes da Noruega, ante a capitulação dolorosa de Knut Hamsun. As Igrejas, universalmente transformadas em supermercados de quinquilharias sagradas, estão agora vendendo os seus saldos das existências aos missionários por conta própria que invadiram as nações para vender, nos submundos da ignorância falsamente ilustrada e do populacho ansioso por um céu de delícias pasmáticas made in Bizâncio. Porque Bizâncio foi o fim esquizofrénico do Mundo Antigo após a queda de Roma e hoje a Nova Roma, já também esclerosada, parece destinada a selar o fim do mundo do arbítrio e da violência em que vivemos.

Esse rápido olhar pelo passado de tentativas frustradas da implantação do Cristianismo na Terra basta para nos mostrar que precisamos de desenvolver em nós a consciência da morte, para aprendermos a morrer com decência e dignidade. Se esta civilização apoiada em arsenais atómicos nada mais pode esperar do que a sua própria explosão, que ao menos nos preparemos para morrer de mãos limpas, sem manchas de sangue e de roubo, a fim de podermos voltar nas futuras reencarnações, em condições de consciência que nos permitam realizar uma nova tentativa de cristianização do Planeta. Sem uma tomada de consciência do sentido e do valor da morte estaremos arriscados a continuar indefinidamente no círculo vicioso das vidas repetitivas e sem sentido. A vida só tem sentido quando serve de preparação para vidas melhores. O destino não é viver como as feras, mas viver para transcender-se, numa escalada do Infinito em busca das constelações superiores. Os segredos da morte nos são agora racionalmente acessíveis para podermos aprender a perder a nossa vida para reencontrar o Cristo.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Consciência da Morte, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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