Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Fevereiro de 1917|

   O Espiritismo não é inimigo das religiões; ao contrário, fornece-lhe poderosos elementos de valor e de regeneração.

   Os conhecimentos que ele nos proporciona sobre a vida no Além e as condições em que se desenvolve a nossa existência após a morte, a certeza de leis justas e equitativas regendo o mundo invisível, formam outros tantos meios de análise e exame crítico, permitindo separar, nas religiões, o que é artificial e ilusório do que é real e imperecível.

   Não há dúvida de que os fenómenos do Espiritismo se encontram na origem de todas as religiões, porém estas lhes emprestam um carácter sobrenatural e milagroso, transferindo-os para um passado remoto e fazendo-os perder toda a importância sobre a vida moral e social.

   O intercâmbio com o invisível era apenas uma hipótese, uma vaga esperança; com o Espiritismo, torna-se certo e permanente.

   Estamos vivendo uma das maiores épocas de transição da História. Os factos que se estão desenrolando, as cruentas lutas dos povos e as subversões sociais são o começo, a preparação de uma nova ordem das coisas.

   Quando terminar a guerra (*), a mente humana analisará todos os seus aspectos e procederá a um exame profundo de todas as forças que agiram no decorrer desses trágicos anos. Então comprovaremos que são as ideias que conduzem o mundo. O patriotismo, ao unir os corações dos franceses, conteve a invasão, limitando os seus estragos.

   O amor pela terra natal acordou o heroísmo que, apoiado pelos auxílios poderosos do mundo oculto, salvou a França.

   Por isso a ideia de pátria terá que ocupar um lugar especial no ensino da educação popular. Entretanto, isso não será o bastante: para terminar com as nossas desavenças, as nossas rivalidades, as lutas de classes e de interesses é preciso, antes de tudo, unir inteligências e consciências, pois sem a harmonia das almas não poderá haver a harmonia social.

   Todavia, como se poderá preparar tal união? Trabalhe-se com ardor, com espírito de tolerância e concórdia, para aproximar os objectivos, as aspirações e as crenças. Dois poderosos meios se apresentam: A ciência e a fé.

   Antagónicos na aparência, essas tendências se conciliam e se completam mutuamente, como veremos no decurso deste livro. Elas podem fornecer facilmente uma concepção da vida e do destino, uma noção das leis superiores e uma base moral, estas coisas que são indispensáveis à nossa perturbada sociedade e sem as quais a existência seria vazia de sentido, sem finalidade e sem sanção.

   Dentro de toda a alma humana há um retiro, um ponto secreto, onde se instala a centelha divina, a parte do Infinito que garante a cada um de nós a indestrutibilidade do seu eu. Ali dormitam as forças invisíveis, os recursos psíquicos cujo desenvolvimento fará, mais tarde, do ser mesquinho, frágil e ignorante que somos no princípio de nossa evolução, um génio preparado para as grandes empresas e capaz de desempenhar um papel notável no Universo.

   A verdadeira religião consiste em utilizar esses recursos ocultos e valorizá-los. Ela tem que nos ensinar a colocar o ser interior em comunhão com o divino, expandindo-o, libertando-o de influências inferiores, fazendo-o adquirir a plenitude de sua irradiação.

   Conseguido esse estado espiritual, a alma humana poderá realizar as suas mais árduas missões e aceitar com alegria as provações mais duras. Saberá conservar nos dias mais difíceis um optimismo e uma confiança inquebrantáveis.

   Esse estado de espírito pode ser encontrado em todas as religiões, bem como fora delas. Atendo-se às práticas rituais da liturgia e aos diversos dogmas existentes dentro dos limites em que comummente se encontra a ideia religiosa, com frequência esquece-se da fé independente que paira acima de todos os cultos e não se sujeita ao “credo” de nenhuma igreja.

   Essa religião, pessoal e livre, talvez conte com maior número de membros do que as religiões reconhecidas, porém o número exacto de seus adeptos foge a todos cálculos.

   As descobertas científicas nos deram uma concepção do Universo vasta e grandiosa, mas diferente daquela que tínhamos na Idade Média e na antiguidade.

   A experimentação psíquica e o estudo do mundo invisível abriram perspectivas ilimitadas para a vida e para o destino do ser; o homem se sentiu ligado a todos os que pensam, amam e sofrem, na imensidão dos espaços.

   Os modelos das religiões caducas se romperam com o impulso triunfante do espírito, sequioso para conquistar a sua legítima parte de verdade e de luz. Quase não existem intelectuais que não tenham criado uma crença inspirada na observação directa da natureza, isenta das rotinas seculares, baseada na ciência e na razão.

   Os partidários dos dogmas não pretendem ver nesse sentimento senão o que denominam ironicamente de “religiosidade”. Realmente, ele possui em gérmen os elementos dessa religião universal, simples e natural que haverá, um dia, de reunir todos os povos do planeta e fundir as igrejas particulares, assim como os rios se fundem no oceano.

   Os actuais acontecimentos repercutirão profundamente por todas as formas da actividade social e, assim que a paz reinar novamente no mundo, haverá uma revisão de todas as causas que contribuem para o progresso humano, não escapando as religiões a uma análise crítica e rigorosa.

   Os terríveis factos que estão acontecendo darão a medida que permitirá calcular o poder ou a fraqueza moral das religiões.

   Verificar-se-à, não sem certo espanto, que a educação religiosa de povos que se intitulam cristãos, como a Alemanha e a Áustria, nada conseguiu fazer para impedir os mais condenáveis crimes que fazem a civilização se envergonhar.

   Ver-se-à com tristeza que, nestas horas cruéis, a Igreja Romana quase sempre colocou os seus interesses políticos acima das recomendações do Evangelho e dos sagrados direitos da consciência. Não foram melhores os adeptos do Islamismo e foi mais clara do que nunca a falência das religiões.

   No início da guerra a França foi sacudida por um grande movimento religioso e, após as nossas primeiras derrotas, as aspirações que moram no fundo de sua natureza lhe despertaram uma necessidade de crença, de saber que a morte não equivale ao nada e que, acima de tudo, existe um poder soberano, uma força inteligente e consciente, capaz de nos amparar e socorrer na provação e fazer prevalecer a justiça em um mundo de paixões descontroláveis.

   Se tal sentimento houvesse podido alcançar o ideal sonhado, seria o começo de uma renovação nacional, todavia as soluções apresentadas pelas igrejas, as poucas consolações que elas ofereciam aos corações dilacerados, as práticas ritualísticas impostas aos seus fiéis já não satisfaziam às necessidades do tempo e do meio. Foram julgadas insuficientes e assim, pouco a pouco, o movimento religioso se enfraqueceu.

   Todavia, o pensamento segue firme, voltado para o Além. Diante do perigo e do dilúvio de sofrimentos que nos ameaçam, no meio das ruínas e das mortes que se acumulam, a alma francesa procura sempre uma base sólida, uma certeza onde apoiar a sua fé e só as encontrará no moderno espiritualismo, o que equivale dizer no Espiritismo.

   A religião do futuro se apoiará na prova científica da sobrevivência, nas demonstrações experimentais e no testemunho dos sábios que estudaram os problemas da vida invisível.

   No decorrer desta guerra, o antropomorfismo das religiões se apresentou no seu aspecto mais monstruoso e o velho deus alemão não é mais do que uma evocação dos bárbaros deuses do paganismo germânico. Sob a máscara cristã mal ajustada, Odin, que comanda as cenas de carnificina, deixa entrever as suas feições.

   Esta noção da divindade é muito próxima do mais baixo materialismo e repugna às almas delicadas e aos espíritos refinados. Não se trata apenas das acções de um monarca ávido em dominar o mundo e dos chefes militares que o rodeiam; essa concepção é também encontrada nas obras dos pensadores alemães; professores, pastores e escritores a proclamam abertamente em discursos e publicações.

   Semelhante ao Jeová, do Antigo Testamento, o velho deus alemão protege somente uma raça, vendo nas outras apenas um rebanho de povos vis e corruptos, destinados à ruína e à morte.

   Esta feroz mentalidade faz dos alemães os pretensos instrumentos da vingança divina, impelindo-os a uma obra de destruição que eles continuam metodicamente.

   Essa grosseira mística aproxima-se das teorias de Nietzsche, relativas ao super-homem, tão difundidas na Alemanha, e podemos medir as funestas consequências de uma falsa religião unida a uma não menos falsa filosofia.

   É bom, sem dúvida, desenvolver a vontade de poder, segundo a expressão de Nietzsche, porém com a condição de se desenvolverem, ao mesmo tempo, a consciência e as outras faculdades do espírito e do coração: a piedade e a bondade, o respeito à verdade, ao direito e à justiça. Sem isto rompe-se todo o equilíbrio moral no ser humano e só se logrará produzir homens orgulhosos, déspotas, monstros que, para triunfarem, não vacilarão no emprego de todos os meios, mesmo os mais criminosos e odiosos.

   Daí essa terrível luta que se desenvolve à nossa volta, onde a Alemanha, em razão do seu feroz egoísmo, se desacredita e se desonra aos olhos do mundo e da História.

/...

(*) Primeira Guerra Mundial 1914-1918.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 1, Fevereiro de 1917, (1 de 2), 24º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

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