Parte VII
A Música (Parte 2)
(Agosto de 1922)
A música desperta na alma impressões de arte e de beleza que
são a alegria e a recompensa dos espíritos puros, uma participação na vida
divina nos seus encantos e nos seus êxtases.
A música, melhor que a palavra, representa o movimento, que
é uma das leis da vida; eis por que a música é a própria voz do mundo superior.
Para exprimir os esplendores da obra universal é necessária
a beleza suprema da forma. Dissemos que nem a poesia, nem a música suportam a
mediocridade. No entanto, apesar da indigência estética do nosso tempo, é
preciso reconhecer e louvar os esforços de alguns autores que, nas suas
tentativas, se aproximaram do ápice e conseguiram realizar obras onde passa uma
inspiração, uma radiação da beleza soberana. Pela ópera, notadamente,
conseguiram mover a fibra dos entusiasmos generosos nas almas.
Isso porque, para gerar, para produzir obras geniais capazes
de elevar as inteligências até aos pontos mais altos do pensamento, até ao
ideal de beleza perfeita, é preciso, inicialmente, criar para si mesmo, edificar a
sua própria personalidade e torná-la capaz de experimentar, de compreender os
esplendores da vida superior e a eterna harmonia do mundo.
Que forças, que emanações, que consolações, que esperanças
podemos passar a outras almas, se em nós mesmos temos apenas obscuridade,
dúvida, incerteza e fraqueza? O que se poderia esperar de espíritos cépticos,
fechados a todas as impressões elevadas, surdos a todas as vozes, a todos os
ecos do Além?
A miséria estética da nossa época explica-se pela impotência
da alma contemporânea em conceber uma fé esclarecida, uma concepção maior e
mais elevada da beleza universal.
Por consequência, deve apreciar-se as excepções que se produzem
e o entusiasmo de raros autores que se esforçam para conduzir a opinião em direcção
às regiões do ideal.
Porém, à medida que um novo ideal desperta e os focos do
espiritualismo se acendem sobre todos os pontos da Terra, veremos eclodir e
desenvolver-se nas almas um reflexo mais poderoso dos esplendores da vida
invisível, tal como a revelam os ensinamentos dos nossos amigos do Além. E isso
será o sinal de uma floração de obras, o ponto de partida de uma era artística
que suplantará em grandeza e em riqueza a obra dos séculos que a precederam.
Sem dúvida, o espectáculo do mundo terrestre e da vida humana,
com os seus contrastes marcantes, oferece-nos uma variedade suficiente de
quadros, de imagens, de cenas – amores e ódios, paixões e dores – para inspirar
obras fortes, como as que o passado nos legou. Porém, que serão esses temas,
por mais ricos que sejam, comparados ao imenso panorama que a revelação
espírita e as suas descrições da vida dos espaços desenrola aos nossos olhos?
Em que se transformam as peripécias de uma existência humana ao lado dos amplos
horizontes do destino da alma na sua ascensão através do ciclo dos tempos e dos
mundos? E as alegrias, as provações, as quedas, os reerguimentos, a descida no
abismo e o bater de asas na luz, os holocaustos que são uma reparação, um
resgate, as missões redentoras, a participação crescente na obra divina?
Quem contará as poderosas harmonias do Universo, harpa gigantesca
vibrando sob o pensamento de Deus, o canto dos mundos, o ritmo eterno que embala
a génese dos astros e das humanidades! Ou a lenta elaboração, a dolorosa
gestação da consciência por meio de estágios inferiores, a trabalhosa
construção de uma individualidade, de um ser moral! Quem narrará a conquista da
vida, sempre mais ampla, mais plena, mais serena, mais iluminada pelos raios de
luz do alto; a caminhada de cume em cume buscando obter a felicidade, o poder e
o puro amor!
Esses importantes temas estão ao alcance de todos. Em todo o
poeta, artista, escritor, existem insuspeitáveis germes de mediunidade e que
apenas pedem para eclodir; por eles o obreiro do pensamento entra em relação
com a fonte inesgotável e recebe a sua parte de revelação. Essa revelação de
estética apropriada à sua natureza, ao seu género de talento, ele tem por missão
exprimi-la sob formas que farão penetrar na alma das multidões uma vibração das
forças divinas, uma radiação do foco eterno.
É na comunhão frequente e consciente com o mundo dos espíritos
que os génios do futuro irão haurir os elementos das suas obras. Presentemente
a penetração dos segredos da sua dupla vida vem oferecer ao homem a ajuda e os
esclarecimentos que as religiões enfraquecidas não poderiam mais lhe
proporcionar. Em todos os âmbitos, a ideia espírita vai fecundar o pensamento
que trabalha.
O canto e a música, na sua íntima união, podem produzir a
mais alta impressão. Quando a música é sustentada por nobres palavras, a
harmonia musical pode elevar as almas até às regiões celestes. É o que acontece
na música religiosa, no canto sacro.
O cântico produz uma dilatação salutar da alma, uma emissão
fluídica que facilita a acção das potências invisíveis. Não há cerimónia
religiosa verdadeiramente eficaz e completa sem o cântico. Quando a voz pura
das crianças e dos jovens ressoa sob as abóbadas dos templos, dela se desprende
como que uma sensação de suavidade angélica.
Porém, unida a palavras imorais, a música não é mais que um
instrumento de perversão, um veículo de deformidade que precipita a alma na
baixa sensualidade e é uma das causas da corrupção dos costumes na nossa época.
O fenómeno sonoro desenvolve-se de círculos em círculos, de
esferas em esferas e dilata-se até ao infinito. Ele conduz a alma, nas suas
grandes ondas, sempre mais longe, sempre mais alto no mundo do ideal e nela
desperta sensações tão delicadas quanto profundas, que a dispõem às alegrias e
aos êxtases da vida superior.
O seu poder misterioso e soberano estende-se sobre todos os
seres, sobre toda a natureza. Efectivamente, a lei das vibrações harmónicas
rege toda a vida universal, todas as formas de arte, todas as criações do
pensamento. Ela introduz equilíbrio e ritmo em todas as coisas. Ela influi até
na saúde física pela sua acção sobre os fluidos humanos. Sabe-se que Saul (i), nas suas crises nervosas, mandava
chamar Davi, que, com os sons de sua harpa, acalmava a irritação do monarca. Em
todos os tempos, e ainda nos nossos dias, a arte musical tem sido aplicada à
terapêutica e, com resultados positivos. Poderíamos multiplicar os exemplos.
A harpa, com os seus sons eólicos (ii), dissipa as nossas inquietações, acalma as nossas dores e
embala deliciosamente as nossas almas. Os nossos pais, os celtas (iii), consideravam-na como um elemento indispensável
à vida intelectual. Realmente, o código de Hoël diz que “Há três coisas
inalienáveis em um homem livre: o livro, a harpa e a espada.”
O maior dos bardos, Taliesin, (iv) desapareceu misteriosamente; porém, durante muito tempo a sua
harpa foi vista flutuar sobre as águas do lago encantado. E os ecos da
floresta de Broceliande (v) ainda
ressoam, em certas horas, vibrações enfraquecidas da harpa de Merlin.
Os nossos pais viam na música o ensino estético por
excelência, o mais seguro meio de elevar o pensamento até às sublimes alturas
onde reside o génio inspirador. A harpa desempenha um importante papel nas
evocações dos recintos sagrados e nas relações dos celtas com a multidão de
invisíveis.
A voz humana também tem, quando é verdadeiramente bela,
entonações de uma maleabilidade e de uma variedade que a tornam superior a
todos os instrumentos. Melhor ainda do que eles, a voz pode exprimir todos os
estados da alma, todas as sensações da alegria e da dor, desde o apelo de amor
até as inflexões mais trágicas do desespero. Eis por que a introdução dos coros
na música orquestral e na sinfonia enriqueceram a arte de um elemento de encanto
e de beleza.
Quase todos os célebres compositores possuem faculdades
mediúnicas que lhes possibilitam receber as inspirações do Além, que lhes
permitem traduzir, sob a forma do seu próprio talento, as grandiosas concepções
da eterna harmonia. Entre esses compositores, os mais notáveis parecem-nos ser
Beethoven, Berlioz e Wagner (vi).
Beethoven deve ser considerado como o verdadeiro criador da
sinfonia e, da sua frase melódica, pela sua amplitude e a sua beleza, representa a
acção musical completa. Sob esse ponto de vista, o seu espírito domina e
dominará por muito tempo ainda a música moderna. Diz-se que, recentemente,
ele ditou a certo médium um hino espírita, destinado às sessões de evocação e, que em breve será publicado.
Berlioz também foi um sinfonista de grande envergadura; entre
os compositores franceses, não há outro que seja mais difícil para se imitar
devido ao seu vigoroso talento e à sua prodigiosa virtuosidade. Nessa música
ardente, apaixonada, pitoresca, a intenção e a execução se combinam; ela possui
o relevo e a força da região alpestre (vii),
onde o autor nasceu. Ela exprime alternadamente o esplendor dos cumes e o
horror dos abismos. Nela se encontra a voz das torrentes, os murmúrios da
floresta, todas as harmonias da montanha na sua unidade e na sua variedade
surpreendentes.
Nunca esquecerei a profunda impressão que me produziu a
primeira audição de A Danação de Fausto.
Eu tinha quase 20 anos e isso foi para mim, graças à sinfonia, a revelação de
um mundo desconhecido, surpreendente em riquezas e maravilhas. Berlioz foi
demasiado genial para ser bem compreendido pelos seus contemporâneos; como
quase todos os inovadores, só depois da sua morte é que o público começou a
apreciar o seu talento lírico.
Quanto a Richard Wagner, a sua obra colossal é totalmente impregnada
de uma espiritualidade densa e difícil de suportar, que roça o materialismo,
como todo o génio alemão. Porém, às vezes, dessa massa um pouco confusa, muitas
vezes até vulgar e banal, brotam notas (viii)
musicais que atingem os mais altos cumes.
Wagner retira muito dos seus predecessores, mas torna seu o
que deles retira e, reveste-o de uma vida original e pessoal.
Infelizmente, nele a essência permanece inferior à forma e sob
esse aspecto faltam à sua obra equilíbrio e precisão. As suas imagens e os seus
temas são terrestres; quando quer povoar o espaço ele o faz sempre com deuses
de máscaras trágicas e bastante humanas, por criaturas semimateriais, com
capacetes e armadas, que cavalgam sobre nuvens em busca de batalhas
sanguinolentas. Apenas duas das suas obras são excepções: Tristão e Isolda e Parsifal,
inspiradas nas lendas célticas e cristãs.
A sua música, no seu conjunto, permanece sensual e não mantém
o espírito nas altas regiões do sonho e da beleza. Isto porque Richard Wagner
trabalhou somente para o teatro e, na ópera, como já dissemos, a música está
encadeada à palavra e nisso, às vezes, se encontra uma causa de fraqueza e de
inferioridade. Nesse género lírico, para produzir uma impressão mais forte, é
preciso que a forma e o pensamento se equilibrem, se completem e continuem
equivalentes. A forma majestosa associada a um pensamento muito pobre logo
desaparece e não deixa mais que uma impressão superficial, uma vaga lembrança.
Ainda assim, apesar dos seus defeitos e das suas lacunas, a
obra de Wagner tem o seu lugar marcado entre as grandes criações musicais. Ela mostra-nos mais uma vez que a arte é de todos os tempos, de todos os países e
não tem pátria.
No entanto, na música, como em todas as coisas, a França
revelou-se um país de equilíbrio: o bom gosto, a clareza, a avaliação são, para
nós, as qualidades essenciais da arte.
Entre os gorjeios melodiosos, os arrulhos quase femininos da
música italiana e as viris e possantes sonoridades da música alemã, a música
fraterna coloca-se no centro e une as duas escolas opostas numa síntese feita
de graciosidade, de força e de beleza.
As obras de Beethoven, Berlioz e Wagner parecem resumir a
mais alta inspiração musical do nosso tempo. O futuro, porém, verá surgir
outros homens, mais conscientes do mundo invisível que nos cerca, melhor
dotados das faculdades mestras que permitem entrar em comunicação com esse
mundo. Eles dotarão a humanidade de tesouros de arte e de poesia, dos quais não
poderíamos mensurar desde agora a riqueza, a extensão e, que se tornarão para
ela uma fonte inesgotável de alegria, de verdade, de beleza.
O pensamento e a inteligência são provenientes da mesma
harmonia universal que a música e, é por isso que a música, sozinha, pode
exprimir o que o pensamento e a inteligência concebem de mais elevado e mais
sublime. Porque as vibrações sonoras, em si mesmas, são apenas uma manifestação da
vida universal. Eis por que a musica desperta um eco nos recônditos da alma e
nela reanima como que uma vaga lembrança dos céus profundos onde ela nasceu,
onde ela viveu, onde ela reviverá!
/…
(i) Ver em I Samuel, 16: 14 a 23. (N.T.)
(ii) Sons eólicos: diz-se dos sons emitidos pela
chamada harpa eólica. (Vide nota nº 53) (N.T.)
(iii) Celtas: conjunto de povos de língua
indo-européia, individualizados por volta do segundo milénio e que ocuparam uma
grande parte da Europa central. Habitando o sudoeste da Alemanha, os celtas se
viram impelidos para a Gália, para a Espanha, para as Ilhas Britânicas, para o
Vale do Pó, até que os romanos (séc. II a.C. – séc. I d.C.) destruíram o poder
céltico, subsistindo apenas os reinos da Irlanda. Dinamismo, esquematização,
triunfo da curva e de entrelaçados transfigurando o real são os maiores traços da
sua arte, bem como a ornamentação das armas, a fabricação de moedas e a
estatuária religiosa. Foi na Bretanha, no País de Gales e na Irlanda que o tipo
e a língua célticas mais se conservaram. (N.T., segundo o Dictionnaire Le Petit Larousse - 2003.)
(iv) Bardo: entre os celtas, poeta, orador
inspirado. Podemos compará-lo aos profetas do Oriente e a esses grandes
predestinados sobre quem passa o sopro do invisível. Taliésin foi o
autor de O Canto do Mundo. (N.T.,
segundo Léon Denis, em O Génio Céltico e
o Mundo Invisível, 1ª parte, cap. III, Edições Léon Denis.)
(v) Broceliande: vasta floresta da Bretanha,
antiga província da França, hoje floresta de Paimpont, localizada em Ille et
Vilaine, e onde as lendas gaulesas fizeram viver Merlim ou Myrddhin, o Mágico.
A fada Viviana, abusando das suas lições, encerrou-o num círculo mágico, de
onde ele não pôde mais sair. (N.T. segundo o Dicionário Lello Universal, volumes I e III.)
(vi) Richard Wagner: compositor alemão (Leipzig,
1813 - Veneza, 1883). Autor de O Holandês
Errante, ou O Navio Fantasma, Lohengrin,
Os Mestres-cantores de Nuremberg, O Anel de Nibelungo, Tristão e Isolda, Parsifal. Génio de rara inspiração, modificou a concepção tradicional
da ópera para vincular estreitamente a música à poesia e à dança e, obter um
todo harmónico. Ele mesmo escrevia os libretos das suas músicas, inspirando-se,
quase sempre, nas lendas nacionais da Alemanha. (N.T., segundo o Dicionário Lello Universal, volume III.)
(vii) Alpestre: referente aos Alpes, sistema
montanhoso da Europa ocidental e meridional; alpino. (N.T.)
(viii) No original francês lê-se fusées musicales. Porém, a palavra fusée, substantivo feminino, significa: o fio enrolado no fuso,
foguete de pólvora, fuso de relógio e fusa, um dos sinais gráficos com os quais
se escreve uma música na pauta musical, daí o acréscimo do termo musicales. Na nossa tradução, optamos
por usar a expressão notas musicais em
lugar de fusas musicais. (N.T.)
LÉON DENIS, O
Espiritismo na Arte, Parte VII A Música (Parte 2) – A arte e a
mediunidade – O poder terapêutico da arte musical – Grandes compositores e a
faculdade mediúnica – A obra de Beethoven, de Berlioz e de Wagner, 25º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507
– Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)
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