Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O Espiritismo na Arte ~


Parte VII

A Música (Parte 2)
– A arte e a mediunidade
– O poder terapêutico da arte musical
(Agosto de 1922)

A música desperta na alma impressões de arte e de beleza que são a alegria e a recompensa dos espíritos puros, uma participação na vida divina nos seus encantos e nos seus êxtases.

A música, melhor que a palavra, representa o movimento, que é uma das leis da vida; eis por que a música é a própria voz do mundo superior.

Para exprimir os esplendores da obra universal é necessária a beleza suprema da forma. Dissemos que nem a poesia, nem a música suportam a mediocridade. No entanto, apesar da indigência estética do nosso tempo, é preciso reconhecer e louvar os esforços de alguns autores que, nas suas tentativas, se aproximaram do ápice e conseguiram realizar obras onde passa uma inspiração, uma radiação da beleza soberana. Pela ópera, notadamente, conseguiram mover a fibra dos entusiasmos generosos nas almas.

Isso porque, para gerar, para produzir obras geniais capazes de elevar as inteligências até aos pontos mais altos do pensamento, até ao ideal de beleza perfeita, é preciso, inicialmente, criar para si mesmo, edificar a sua própria personalidade e torná-la capaz de experimentar, de compreender os esplendores da vida superior e a eterna harmonia do mundo.

Que forças, que emanações, que consolações, que esperanças podemos passar a outras almas, se em nós mesmos temos apenas obscuridade, dúvida, incerteza e fraqueza? O que se poderia esperar de espíritos cépticos, fechados a todas as impressões elevadas, surdos a todas as vozes, a todos os ecos do Além?

A miséria estética da nossa época explica-se pela impotência da alma contemporânea em conceber uma fé esclarecida, uma concepção maior e mais elevada da beleza universal.

Por consequência, deve apreciar-se as excepções que se produzem e o entusiasmo de raros autores que se esforçam para conduzir a opinião em direcção às regiões do ideal.

Porém, à medida que um novo ideal desperta e os focos do espiritualismo se acendem sobre todos os pontos da Terra, veremos eclodir e desenvolver-se nas almas um reflexo mais poderoso dos esplendores da vida invisível, tal como a revelam os ensinamentos dos nossos amigos do Além. E isso será o sinal de uma floração de obras, o ponto de partida de uma era artística que suplantará em grandeza e em riqueza a obra dos séculos que a precederam.

Sem dúvida, o espectáculo do mundo terrestre e da vida humana, com os seus contrastes marcantes, oferece-nos uma variedade suficiente de quadros, de imagens, de cenas – amores e ódios, paixões e dores – para inspirar obras fortes, como as que o passado nos legou. Porém, que serão esses temas, por mais ricos que sejam, comparados ao imenso panorama que a revelação espírita e as suas descrições da vida dos espaços desenrola aos nossos olhos? Em que se transformam as peripécias de uma existência humana ao lado dos amplos horizontes do destino da alma na sua ascensão através do ciclo dos tempos e dos mundos? E as alegrias, as provações, as quedas, os reerguimentos, a descida no abismo e o bater de asas na luz, os holocaustos que são uma reparação, um resgate, as missões redentoras, a participação crescente na obra divina?

Quem contará as poderosas harmonias do Universo, harpa gigantesca vibrando sob o pensamento de Deus, o canto dos mundos, o ritmo eterno que embala a génese dos astros e das humanidades! Ou a lenta elaboração, a dolorosa gestação da consciência por meio de estágios inferiores, a trabalhosa construção de uma individualidade, de um ser moral! Quem narrará a conquista da vida, sempre mais ampla, mais plena, mais serena, mais iluminada pelos raios de luz do alto; a caminhada de cume em cume buscando obter a felicidade, o poder e o puro amor!

Esses importantes temas estão ao alcance de todos. Em todo o poeta, artista, escritor, existem insuspeitáveis germes de mediunidade e que apenas pedem para eclodir; por eles o obreiro do pensamento entra em relação com a fonte inesgotável e recebe a sua parte de revelação. Essa revelação de estética apropriada à sua natureza, ao seu género de talento, ele tem por missão exprimi-la sob formas que farão penetrar na alma das multidões uma vibração das forças divinas, uma radiação do foco eterno.

É na comunhão frequente e consciente com o mundo dos espíritos que os génios do futuro irão haurir os elementos das suas obras. Presentemente a penetração dos segredos da sua dupla vida vem oferecer ao homem a ajuda e os esclarecimentos que as religiões enfraquecidas não poderiam mais lhe proporcionar. Em todos os âmbitos, a ideia espírita vai fecundar o pensamento que trabalha.

O canto e a música, na sua íntima união, podem produzir a mais alta impressão. Quando a música é sustentada por nobres palavras, a harmonia musical pode elevar as almas até às regiões celestes. É o que acontece na música religiosa, no canto sacro.

O cântico produz uma dilatação salutar da alma, uma emissão fluídica que facilita a acção das potências invisíveis. Não há cerimónia religiosa verdadeiramente eficaz e completa sem o cântico. Quando a voz pura das crianças e dos jovens ressoa sob as abóbadas dos templos, dela se desprende como que uma sensação de suavidade angélica.

Porém, unida a palavras imorais, a música não é mais que um instrumento de perversão, um veículo de deformidade que precipita a alma na baixa sensualidade e é uma das causas da corrupção dos costumes na nossa época.

O fenómeno sonoro desenvolve-se de círculos em círculos, de esferas em esferas e dilata-se até ao infinito. Ele conduz a alma, nas suas grandes ondas, sempre mais longe, sempre mais alto no mundo do ideal e nela desperta sensações tão delicadas quanto profundas, que a dispõem às alegrias e aos êxtases da vida superior.

O seu poder misterioso e soberano estende-se sobre todos os seres, sobre toda a natureza. Efectivamente, a lei das vibrações harmónicas rege toda a vida universal, todas as formas de arte, todas as criações do pensamento. Ela introduz equilíbrio e ritmo em todas as coisas. Ela influi até na saúde física pela sua acção sobre os fluidos humanos. Sabe-se que Saul (i), nas suas crises nervosas, mandava chamar Davi, que, com os sons de sua harpa, acalmava a irritação do monarca. Em todos os tempos, e ainda nos nossos dias, a arte musical tem sido aplicada à terapêutica e, com resultados positivos. Poderíamos multiplicar os exemplos.

A harpa, com os seus sons eólicos (ii), dissipa as nossas inquietações, acalma as nossas dores e embala deliciosamente as nossas almas. Os nossos pais, os celtas (iii), consideravam-na como um elemento indispensável à vida intelectual. Realmente, o código de Hoël diz que “Há três coisas inalienáveis em um homem livre: o livro, a harpa e a espada.”

O maior dos bardos, Taliesin, (iv) desapareceu misteriosamente; porém, durante muito tempo a sua harpa foi vista flutuar sobre as águas do lago encantado. E os ecos da floresta de Broceliande (v) ainda ressoam, em certas horas, vibrações enfraquecidas da harpa de Merlin.

Os nossos pais viam na música o ensino estético por excelência, o mais seguro meio de elevar o pensamento até às sublimes alturas onde reside o génio inspirador. A harpa desempenha um importante papel nas evocações dos recintos sagrados e nas relações dos celtas com a multidão de invisíveis.

A voz humana também tem, quando é verdadeiramente bela, entonações de uma maleabilidade e de uma variedade que a tornam superior a todos os instrumentos. Melhor ainda do que eles, a voz pode exprimir todos os estados da alma, todas as sensações da alegria e da dor, desde o apelo de amor até as inflexões mais trágicas do desespero. Eis por que a introdução dos coros na música orquestral e na sinfonia enriqueceram a arte de um elemento de encanto e de beleza.

– Grandes compositores e a faculdade mediúnica
– A obra de Beethoven, de Berlioz e de Wagner

Quase todos os célebres compositores possuem faculdades mediúnicas que lhes possibilitam receber as inspirações do Além, que lhes permitem traduzir, sob a forma do seu próprio talento, as grandiosas concepções da eterna harmonia. Entre esses compositores, os mais notáveis parecem-nos ser Beethoven, Berlioz e Wagner (vi).

Beethoven deve ser considerado como o verdadeiro criador da sinfonia e, da sua frase melódica, pela sua amplitude e a sua beleza, representa a acção musical completa. Sob esse ponto de vista, o seu espírito domina e dominará por muito tempo ainda a música moderna. Diz-se que, recentemente, ele ditou a certo médium um hino espírita, destinado às sessões de evocação e, que em breve será publicado.

Berlioz também foi um sinfonista de grande envergadura; entre os compositores franceses, não há outro que seja mais difícil para se imitar devido ao seu vigoroso talento e à sua prodigiosa virtuosidade. Nessa música ardente, apaixonada, pitoresca, a intenção e a execução se combinam; ela possui o relevo e a força da região alpestre (vii), onde o autor nasceu. Ela exprime alternadamente o esplendor dos cumes e o horror dos abismos. Nela se encontra a voz das torrentes, os murmúrios da floresta, todas as harmonias da montanha na sua unidade e na sua variedade surpreendentes.

Nunca esquecerei a profunda impressão que me produziu a primeira audição de A Danação de Fausto. Eu tinha quase 20 anos e isso foi para mim, graças à sinfonia, a revelação de um mundo desconhecido, surpreendente em riquezas e maravilhas. Berlioz foi demasiado genial para ser bem compreendido pelos seus contemporâneos; como quase todos os inovadores, só depois da sua morte é que o público começou a apreciar o seu talento lírico.

Quanto a Richard Wagner, a sua obra colossal é totalmente impregnada de uma espiritualidade densa e difícil de suportar, que roça o materialismo, como todo o génio alemão. Porém, às vezes, dessa massa um pouco confusa, muitas vezes até vulgar e banal, brotam notas (viii) musicais que atingem os mais altos cumes.

Wagner retira muito dos seus predecessores, mas torna seu o que deles retira e, reveste-o de uma vida original e pessoal.

Infelizmente, nele a essência permanece inferior à forma e sob esse aspecto faltam à sua obra equilíbrio e precisão. As suas imagens e os seus temas são terrestres; quando quer povoar o espaço ele o faz sempre com deuses de máscaras trágicas e bastante humanas, por criaturas semimateriais, com capacetes e armadas, que cavalgam sobre nuvens em busca de batalhas sanguinolentas. Apenas duas das suas obras são excepções: Tristão e Isolda e Parsifal, inspiradas nas lendas célticas e cristãs.

A sua música, no seu conjunto, permanece sensual e não mantém o espírito nas altas regiões do sonho e da beleza. Isto porque Richard Wagner trabalhou somente para o teatro e, na ópera, como já dissemos, a música está encadeada à palavra e nisso, às vezes, se encontra uma causa de fraqueza e de inferioridade. Nesse género lírico, para produzir uma impressão mais forte, é preciso que a forma e o pensamento se equilibrem, se completem e continuem equivalentes. A forma majestosa associada a um pensamento muito pobre logo desaparece e não deixa mais que uma impressão superficial, uma vaga lembrança.

Ainda assim, apesar dos seus defeitos e das suas lacunas, a obra de Wagner tem o seu lugar marcado entre as grandes criações musicais. Ela mostra-nos mais uma vez que a arte é de todos os tempos, de todos os países e não tem pátria.

No entanto, na música, como em todas as coisas, a França revelou-se um país de equilíbrio: o bom gosto, a clareza, a avaliação são, para nós, as qualidades essenciais da arte.

Entre os gorjeios melodiosos, os arrulhos quase femininos da música italiana e as viris e possantes sonoridades da música alemã, a música fraterna coloca-se no centro e une as duas escolas opostas numa síntese feita de graciosidade, de força e de beleza.

As obras de Beethoven, Berlioz e Wagner parecem resumir a mais alta inspiração musical do nosso tempo. O futuro, porém, verá surgir outros homens, mais conscientes do mundo invisível que nos cerca, melhor dotados das faculdades mestras que permitem entrar em comunicação com esse mundo. Eles dotarão a humanidade de tesouros de arte e de poesia, dos quais não poderíamos mensurar desde agora a riqueza, a extensão e, que se tornarão para ela uma fonte inesgotável de alegria, de verdade, de beleza.

O pensamento e a inteligência são provenientes da mesma harmonia universal que a música e, é por isso que a música, sozinha, pode exprimir o que o pensamento e a inteligência concebem de mais elevado e mais sublime. Porque as vibrações sonoras, em si mesmas, são apenas uma manifestação da vida universal. Eis por que a musica desperta um eco nos recônditos da alma e nela reanima como que uma vaga lembrança dos céus profundos onde ela nasceu, onde ela viveu, onde ela reviverá!

/…
(i) Ver em I Samuel, 16: 14 a 23. (N.T.)
(ii) Sons eólicos: diz-se dos sons emitidos pela chamada harpa eólica. (Vide nota nº 53) (N.T.)
(iii) Celtas: conjunto de povos de língua indo-européia, individualizados por volta do segundo milénio e que ocuparam uma grande parte da Europa central. Habitando o sudoeste da Alemanha, os celtas se viram impelidos para a Gália, para a Espanha, para as Ilhas Britânicas, para o Vale do Pó, até que os romanos (séc. II a.C. – séc. I d.C.) destruíram o poder céltico, subsistindo apenas os reinos da Irlanda. Dinamismo, esquematização, triunfo da curva e de entrelaçados transfigurando o real são os maiores traços da sua arte, bem como a ornamentação das armas, a fabricação de moedas e a estatuária religiosa. Foi na Bretanha, no País de Gales e na Irlanda que o tipo e a língua célticas mais se conservaram. (N.T., segundo o Dictionnaire Le Petit Larousse - 2003.)
(iv) Bardo: entre os celtas, poeta, orador inspirado. Podemos compará-lo aos profetas do Oriente e a esses grandes predestinados sobre quem passa o sopro do invisível. Taliésin foi o autor de O Canto do Mundo. (N.T., segundo Léon Denis, em O Génio Céltico e o Mundo Invisível, 1ª parte, cap. III, Edições Léon Denis.)
(v) Broceliande: vasta floresta da Bretanha, antiga província da França, hoje floresta de Paimpont, localizada em Ille et Vilaine, e onde as lendas gaulesas fizeram viver Merlim ou Myrddhin, o Mágico. A fada Viviana, abusando das suas lições, encerrou-o num círculo mágico, de onde ele não pôde mais sair. (N.T. segundo o Dicionário Lello Universal, volumes I e III.)
(vi) Richard Wagner: compositor alemão (Leipzig, 1813 - Veneza, 1883). Autor de O Holandês Errante, ou O Navio Fantasma, Lohengrin, Os Mestres-cantores de Nuremberg, O Anel de Nibelungo, Tristão e Isolda, Parsifal. Génio de rara inspiração, modificou a concepção tradicional da ópera para vincular estreitamente a música à poesia e à dança e, obter um todo harmónico. Ele mesmo escrevia os libretos das suas músicas, inspirando-se, quase sempre, nas lendas nacionais da Alemanha. (N.T., segundo o Dicionário Lello Universal, volume III.)
(vii) Alpestre: referente aos Alpes, sistema montanhoso da Europa ocidental e meridional; alpino. (N.T.)
(viii) No original francês lê-se fusées musicales. Porém, a palavra fusée, substantivo feminino, significa: o fio enrolado no fuso, foguete de pólvora, fuso de relógio e fusa, um dos sinais gráficos com os quais se escreve uma música na pauta musical, daí o acréscimo do termo musicales. Na nossa tradução, optamos por usar a expressão notas musicais em lugar de fusas musicais. (N.T.)



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VII A Música (Parte 2) – A arte e a mediunidade – O poder terapêutico da arte musical – Grandes compositores e a faculdade mediúnica – A obra de Beethoven, de Berlioz e de Wagner25º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

Sem comentários: