§ I — FONTES DAS
PROVAS SOBRE A NATUREZA DO CRISTO
A questão da natureza do Cristo foi debatida
desde os primeiros séculos do Cristianismo e pode dizer-se que ainda não se
encontra solucionada, pois que continua a ser objecto de discussão. Foi
a divergência das opiniões sobre este ponto que deu origem à maioria das seitas que
dividiram a Igreja há dezoito séculos (i), sendo de se notar que todos os
chefes dessas seitas foram bispos ou membros titulados do clero. Eram, por
conseguinte, homens esclarecidos, muitos deles escritores de talento,
abalizados na ciência teológica, que não achavam concludentes as razões
invocadas a favor do dogma da divindade
do Cristo. Entretanto, como hoje, as opiniões se firmaram mais sobre
abstracções do que sobre os factos. Sobretudo, o que se procurou, foi
saber o que o dogma continha de plausível, ou de
irracional, deixando-se, geralmente, de um lado e de outro, de assinalar os
factos capazes de atribuir sobre a questão uma luz decisiva.
Nada tendo Ele escrito, os
seus únicos historiadores foram os apóstolos que,
tampouco escreveram coisa alguma quando o Cristo ainda vivia. Nenhum
historiador profano, seu contemporâneo, havido falado a seu respeito, nenhum
documento mais existe, além dos Evangelhos, sobre a sua vida
e a sua doutrina. Aí somente é que se tem de procurar a chave do
problema. Todos os escritos posteriores, sem excluir os de S. Paulo, são apenas e,
não podem deixar de ser, simples comentários ou apreciações, reflexos de
opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que, em caso algum,
poderiam ter a autoridade da narrativa dos que receberam directamente do Mestre
as instruções.
Sobre esta
questão, como sobre as de todos os dogmas, em geral, o acordo entre os
Pais da Igreja e outros escritores sacros, não seria de se invocar como
argumento preponderante, nem como prova irrecusável a favor da opinião de uns e
outros, uma vez que nenhum deles citou
um só facto, fora do Evangelho, concernente a Jesus; que
nenhum deles descobriu documentos novos que os seus predecessores
desconhecessem.
Os autores sacros
nada mais conseguiram do que girar dentro do mesmo círculo, produzindo
apreciações pessoais, deduzindo corolários concordantes com os seus pontos de
vista, comentando sob novas formas e com maior ou menor desenvolvimento as
opiniões contrárias às suas. Pertencendo ao mesmo partido, tiveram
todos de escrever no mesmo sentido, senão nos mesmos termos, sob pena de serem
declarados heréticos, como o
foram Orígenes e tantos
mais. Naturalmente,
a Igreja só incluiu no número dos seus Pais os escritores ortodoxos, do seu
ponto de vista; somente exaltou, santificou e coleccionou aqueles que lhe tomaram
a defesa, ao passo que repudiou os outros e lhes destruiu quanto pôde os
escritos. Nada, pois, de concludente exprime o acordo dos Pais da
Igreja, visto que formam uma unanimidade arranjada a dedo, mediante a
eliminação dos elementos contrários. Se se fizesse um confronto de tudo o
que foi escrito pró e contra, difícil se tornaria dizer para que lado se
inclinaria a balança.
Isto nada tira ao
mérito pessoal dos sustentadores da ortodoxia, nem ao valor que demonstraram
como escritores e homens conscienciosos. Sendo advogados de uma mesma causa e
defendendo-a com incontestável talento, haviam forçosamente de adoptar as
mesmas conclusões. Longe de intentarmos apontá-los no que quer que fosse, apenas quisemos
refutar o valor das
consequências que se pretende tirar do acordo de suas opiniões.
No exame, que vamos
fazer, da questão da divindade do Cristo, pondo de lado as
subtilezas da escolástica, que unicamente serviram para tudo baralhar sem
esclarecer coisa alguma, apoiar-nos-emos exclusivamente nos factos que
ressaltam do texto do Evangelho
e que, examinados friamente, conscienciosamente e sem espírito de partido,
super-abundantemente, facultam todos os meios de convicção que se possam
desejar.
Ora, entre estes
factos, outros não há mais preponderantes, nem mais concludentes, do que as
próprias palavras do Cristo, palavras que
ninguém poderá refutar, sem infirmar a veracidade dos apóstolos. Pode
interpretar-se de diferentes maneiras uma parábola, uma alegoria; mas,
afirmações precisas, sem ambiguidades, repetidas cem vezes, não poderiam ter
duplo sentido. Ninguém pode pretender saber melhor do que Jesus o que ele quis
dizer, como ninguém pode pretender estar mais bem informado do que ele sobre a
sua própria natureza. Desde que Ele comenta as
suas palavras e as explica para evitar
todos os equívocos, é a Ele que
devemos recorrer, a menos que lhe neguemos a superioridade que lhe é atribuída
e nos sobreponhamos à sua própria inteligência. Se ele foi obscuro em certos
pontos, por usar de linguagem figurada, no que concerne à sua pessoa não há
equívoco possível. Antes de examinar as palavras, vejamos os actos.
§ II — OS MILAGRES
PROVAM A DIVINDADE DO CRISTO?
Segundo a Igreja,
a divindade do Cristo está firmada
pelos milagres, que testemunham
um poder sobrenatural. Esta consideração pode ter tido certo peso numa
época em que o maravilhoso era aceite sem exame; hoje, porém, que a Ciência levou as
suas investigações até às leis da Natureza, há mais incrédulos do que crentes
nos milagres, para cujo descrédito não contribuíram pouco o abuso das
imitações fraudulentas e a exploração que destas imitações se tem feito.
A fé nos milagres
foi destruída pelo próprio
uso que deles fizeram, donde resultou que muitas pessoas consideram agora os do
Evangelho como puramente lendários.
A própria Igreja,
aliás, tira aos milagres
todo o alcance como prova da divindade do Cristo, declarando que
o demónio os pode
operar tão prodigiosos quanto
aqueles outros. Se tal poder tem o demónio, evidente se torna que os
factos desse género carecem em absoluto de carácter exclusivamente divino. Se
ele pode fazer coisas espantosas, capazes até de iludir os eleitos, como
poderão os simples mortais distinguir os bons milagres dos maus? Não será de temer
que, observando factos similares, confundam Deus e Satanás?
Dar a Jesus semelhante
rival em habilidades é grande desazo; mas, em matéria
de contradições e de inconsequências, não se consideravam as coisas com muita
atenção numa época em que para os fiéis seria um caso de consciência o pensarem
por si mesmos e discutirem o menor artigo que se lhes impusesse à crença. Não
se contava então com o progresso e ninguém cuidava de que pudesse ter fim o
reinado da fé cega e ingénua, reinado cómodo, qual o do bel-prazer. O papel preponderante que a Igreja se obstinou em atribuir ao demónio produziu consequências desastrosas para a fé, à medida que os homens se foram sentindo capazes de ver com os seus próprios olhos. Depois de ter sido explorado com êxito durante algum tempo, ele
se tornou o alvião posto no
velho edifício das crenças e uma das
causas da incredulidade. Pode dizer-se que a Igreja, com o tomá-lo
por auxiliar indispensável, alimentou no seu seio aquele que se
voltaria contra ela e lhe minaria os fundamentos.
Outra consideração
não menos grave é a de que os factos milagrosos não constituem privilégio exclusivo da
religião cristã. Não há, com efeito, religião alguma, idólatra ou pagã,
que não tenha os seus milagres tão maravilhosos e tão autênticos para os
respectivos adeptos, quanto os do Cristianismo. E a Igreja
se privou do direito
de os contestar, desde que atribuiu às potências
infernais o poder de os operar.
No sentido teológico, o carácter
essencial do milagre é o de ser uma excepção aberta nas leis da Natureza, o
que, consequentemente, o torna inexplicável mediante essas mesmas leis. Deixa
de ser milagre um facto, desde que possa
explicar-se e que se encontre ligado a uma causa conhecida. Desse modo
foi que as descobertas da Ciência colocaram no domínio do natural muitos
efeitos que eram qualificados de prodígios, enquanto se lhes desconheciam as
causas. Mais tarde, o conhecimento do princípio espiritual,
da acção dos fluidos sobre a
economia geral, do mundo invisível dentro do qual vivemos, das faculdades da
alma, da existência e das propriedades do perispírito, facultou
a explicação dos fenómenos de ordem psíquica, provando que esses fenómenos não
constituem, mais do que os outros, derrogações das leis da
Natureza, que, ao contrário, decorrem quase sempre de aplicações destas leis. Todos os
efeitos do magnetismo, do sonambulismo, do êxtase, da
dupla vista, do hipnotismo, da catalepsia, da anestesia, da
transmissão do pensamento, a presciência, as curas
instantâneas, as possessões, as obsessões, as aparições e transfigurações,
etc., que formam a quase totalidade dos milagres do Evangelho,
pertencem àquela categoria de fenómenos.
Sabe-se agora que
tais efeitos resultam de aptidões especiais e
disposições psicológicas; que se terão produzido em todos os tempos e no seio de
todos os povos e que foram
considerados sobrenaturais pela mesma razão que todos aqueles cuja causa não se
percebia. Isto explica por que todas as religiões tiveram os seus
milagres, que mais não são que factos naturais,
quase sempre, porém, ampliados até ao absurdo pela credulidade e reduzidos
agora ao seu justo valor pelos
conhecimentos actuais, que permitem se destaque deles a parte devida à lenda.
A possibilidade da
maioria dos factos que o
Evangelho cita como operados por Jesus se encontra
hoje completamente demonstrada pelo Magnetismo e pelo Espiritismo, como fenómenos naturais. Pois que
eles se produzem às nossas vistas, quer espontaneamente, quer quando
provocados, nada há de anormal em que Jesus possuísse faculdades idênticas às
dos nossos magnetizadores, curadores, sonâmbulos, videntes, médiuns, etc. No momento
em que essas mesmas faculdades se encontram, em diferentes graus, numa multidão
de indivíduos que nada têm de divino, até em heréticos e idólatras, elas não
implicam, de maneira alguma, a existência de uma natureza sobre-humana.
Se o próprio Jesus qualifica de
milagres os seus actos, é que nisso, como em muitas outras coisas, lhe cumpria
apropriar a sua linguagem aos conhecimentos dos seus contemporâneos. Como
poderiam estes apreender os matizes de uma
palavra que ainda hoje nem todos compreendem? Para o vulgo, eram milagres
as coisas extraordinárias que ele fazia e que pareciam sobrenaturais, naquele
tempo e mesmo muito tempo depois. Ele não podia dar-lhes outro nome.
Facto digno de nota é
que se serviu dessa denominação para atestar a missão que recebera de Deus,
segundo as suas próprias expressões, porém nunca se
prevaleceu dos milagres para se apresentar como possuidor do poder divino. (ii)
Importa, pois, se
risquem os milagres do rol das provas sobre que se pretende fundar a divindade
da pessoa do Cristo. Vejamos agora se as encontramos nas suas
palavras.
§ III — AS
PALAVRAS DE JESUS PROVAM A SUA DIVINDADE?
Dirigindo-se a
alguns dos seus discípulos que disputavam para saber qual dentre eles era o
maior, disse-lhes ele, chamando para junto de si uma criança:
“Quem quer que me
receba, recebe aquele que me enviou, porquanto aquele que for o
menor entre todos vós será o maior de todos.” (S. Lucas, 9:48.)
“Quem quer que
receba em meu nome a uma criança como esta, a mim me recebe; e aquele que me
recebe não me recebe a mim, mas recebe aquele que me enviou.” (S.
Marcos, 9:37.)
“Jesus lhes disse
então: Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis, porque foi de Deus que saí
e foi de sua parte que vim; pois, não vim de mim mesmo,
foi ele que me enviou.” (S. João, 8:42.)
“Jesus então lhes
disse: Ainda estou convosco por um pouco de tempo e vou em seguida para
aquele que me enviou.” (S. João, 7:33.)
“Aquele que vos
ouve a mim me ouve; aquele que vos despreza a mim me despreza; e aquele
que me despreza, despreza aquele que me enviou.” (S. Lucas,
10:16.)
O dogma da
divindade de Jesus se baseou na
igualdade absoluta entre a sua pessoa e Deus, pois que ele próprio é Deus. É
este um artigo de fé. Ora, estas palavras, que Jesus tantas vezes
repetiu: Aquele que me enviou, não só comprovam uma dualidade de pessoas,
mas também, como já o dissemos, excluem a igualdade absoluta entre elas, porquanto
aquele que é enviado necessariamente está subordinado ao que envia. Com o
obedecer, aquele pratica um acto de submissão. Um embaixador,
falando do seu soberano, dirá: O meu senhor, aquele que me envia;
mas, se quem vem é o soberano em pessoa, falará em seu próprio nome e não
dirá: Aquele que me enviou, visto que ele não pode enviar-se a si
mesmo. Jesus o disse em termos categóricos: Não vim de mim mesmo; foi
ele quem me enviou.
Estas palavras: Aquele
que me despreza, despreza aquele que me enviou, não implicam absolutamente
a igualdade, nem, ainda menos, a identidade. Em todos os tempos,
o insulto a um embaixador foi considerado como feito ao próprio
soberano. Os apóstolos tinham a
palavra de Jesus, como este a de
Deus. Quando ele lhes diz: Aquele que vos ouve a mim me ouve,
certamente não queria dizer que os seus apóstolos e ele fossem uma
só e a mesma pessoa, igual em todas as coisas.
A dualidade das
pessoas, assim como o estado secundário e de subordinação de Jesus com relação
a Deus, ressaltam, ao demais, sem
equívoco possível, das seguintes passagens:
“Fostes vós que
permanecestes sempre firmes comigo nas minhas tentações. — Eis por que vos preparo
o Reino, como meu Pai mo preparou, a fim de que comais e
bebais à minha mesa no meu reino e que estejais sentados em tronos, para julgar
as doze tribos de Israel.” (S. Lucas, 22:28 a 30.)
“De mim digo o
que vi junto de meu Pai; e vós, vós fazeis o que ouvistes de vosso
pai.” (S. João, 8:38.)
“Ao mesmo tempo,
apareceu uma nuvem que os cobriu e dessa nuvem saiu uma voz que fez se ouvissem
estas palavras:
Este é o meu filho
bem-amado; escutai-o.”
(Transfiguração: S. Marcos, 9:7.)
“Ora, quando o filho
do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os anjos, assentar-se-á no
trono de sua glória; — e, encontrando-se reunidas todas as nações, separará
umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes; — colocará as ovelhas à sua
direita e os bodes à sua
esquerda. — Então, o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde,
vós que fostes abençoados por meu Pai, possuir o reino que vos
foi preparado desde o começo do mundo.” (S. Mateus, 25:31 a 34.)
“Aquele que me
confessar e me reconhecer diante dos homens, eu também o reconhecerei e
confessarei diante de meu Pai que está nos céus; — aquele que me renunciar
diante dos homens, também eu mesmo o renunciarei diante de meu Pai que
está nos céus.” (S. Mateus, 10:32 e 33.)
“Ora, eu vos
declaro que aquele que me confessar e me reconhecer perante os homens, o
filho do homem também o reconhecerá perante os anjos de Deus; —
mas, se algum me repudiar perante os homens, eu também o repudiarei perante
os anjos de Deus.” (S. Lucas, 12:8 e 9.)
“Pois, se alguém
se envergonhar de mim e das minhas palavras, disso também se envergonhará o
Filho do homem, quando estiver na sua glória e na de seu Pai e dos
santos anjos.” (S. Lucas, 9:26.)
Nestas duas
últimas passagens, parece que Jesus coloca mesmo
acima de si os santos anjos componentes do tribunal celeste, perante o qual
seria ele o defensor dos bons e o acusador dos maus.
“Mas, pelo que
respeita a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não me
compete a mim vo-lo conceder; isso será para aqueles a quem meu Pai
os tenha preparado.” (S. Mateus, 20:23.)
“Ora, estando
reunidos os fariseus, Jesus lhes fez
esta pergunta: Que vos parece do Cristo? De quem é ele filho? Eles responderam:
De David. — Como é então, retorquiu ele, que David lhe chama em espírito o seu
senhor, nestes termos: O Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à minha direita,
até que eu reduza os teus inimigos a te servirem de escabelo para os pés? —
Ora, se David lhe chama seu senhor, como é ele seu filho? (S.
Mateus, 22:41 a 45.)
“Mas, ensinando no
templo, Jesus lhes disse:
Como é, que os escribas dizem que o Cristo é filho de David, uma vez que o
próprio David diz a seu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu haja
reduzido os teus inimigos a te servirem de escabelo para os pés? — Pois, se o
próprio David lhe chama seu Senhor, como é ele seu filho?” (S. Marcos, 12:35 a
37; S. Lucas, 20:41 a 44.)
Por estas
palavras, Jesus consagra o
princípio da diferença hierárquica que existe
entre o Pai e o Filho. Ele podia ser filho de David por filiação
corporal, como descendente de sua raça e foi por isso que teve o cuidado de
acrescentar: Como lhe chama ele em espírito seu Senhor? Se há
uma diferença hierárquica entre o pai e o filho, Jesus, como filho de
Deus, não pode ser
igual a Deus.
Ele confirma esta
interpretação e reconhece a sua inferioridade com relação
a Deus, em termos que não deixam lugar a dúvidas.
“Ouvistes o que
foi dito: ‘Eu me vou e volto a vós. Se me amásseis, rejubilaríeis, pois que vou
para meu Pai, porque meu Pai É MAIOR DO QUE EU’.”
(S. João, 14:28.)
“Aproxima-se então
um mancebo e lhe diz: Bom Mestre, que bem devo fazer para alcançar a vida
eterna?” Jesus lhe
respondeu: “Por que me chamas bom? “Não há senão somente Deus que é
bom. Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos.” (S. Mateus,
19:16 e 17; S. Marcos, 10:17 e 18; S. Lucas, 18:18 e 19.)
Não só Jesus não se deu,
em nenhuma circunstância, por igual a Deus, como, neste passo, afirma
positivamente o contrário: considera-se
inferior a Deus em bondade. Ora, declarar que Deus lhe está acima, pelo
poder e pelas qualidades morais, é dizer que ele não é Deus. As
passagens que se seguem apoiam as que citamos e também são bastante explícitas.
“Não tenho falado
por mim mesmo; meu Pai, que me enviou, foi quem me prescreveu, por mandamento
seu, o que devo dizer e como devo falar; — e sei que o seu mandamento é a vida
eterna; o que, pois, eu digo é segundo o que meu Pai me
ordenou que o diga.” (S. João, 12:49 e 50.)
“Jesus lhes
respondeu: Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. —
Aquele que quiser fazer a vontade de Deus reconhecerá se a minha
doutrina é dele, ou se falo por mim mesmo. — Aquele que fala por
impulso próprio procura a sua própria glória, mas o que, procura a
glória daquele que o enviou é veraz, não há nele
injustiça.” (S. João, 7:16 a 18.)
“Aquele que não me
ama não guarda a minha palavra e, a palavra que tendes ouvido não é
minha, mas de meu Pai que me enviou.” (S. João, 14:24.)
“Não credes que
estou em meu Pai e que meu Pai está em mim? O que vos digo não o digo de mim
mesmo; meu Pai que mora em mim, faz ele próprio as obras que eu faço.” (S.
João, 14:10.)
“O céu e a terra
passarão, mas as minhas palavras não passarão. — Pelo que respeita ao dia e à
hora, ninguém o sabe, nem os anjos que estão no céu, nem mesmo o Filho,
mas somente o Pai.” (S. Marcos, 13:32; S. Mateus, 24:35 e 36.)
“Jesus então lhes
disse: Quando houverdes elevado ao alto o Filho do homem, conhecereis o que eu
sou, porquanto nada faço de mim mesmo; mas, digo o que meu
Pai me ensinou; e aquele que me enviou está comigo e não, me deixou só,
porque faço sempre o que lhe é agradável.” (S. João,
8:28 e 29.)
“Desci do céu, não
para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me
enviou.” (S. João, 6:38.)
“Nada posso fazer
de mim mesmo.
Julgo segundo ouço e o meu juízo é justo, porque não procuro satisfazer
à minha vontade, mas à vontade daquele que me enviou.” (S.
João, 5:30.)
“Mas, de mim,
tenho um testemunho maior que o de João, porquanto as obras que meu Pai
me deu o poder de fazer, as obras, digo, que eu faço dão testemunho de mim,
que foi meu Pai que me enviou.” (S. João, 5:36.)
“Mas, agora
procurais dar-me a morte, a mim que vos tenho dito a verdade que
aprendi de Deus; é o que Abraão não fez.” (S. João, 8:40.)
Desde que
ele nada diz de si mesmo; que a doutrina que prega não é
sua, que ela lhe veio de Deus, que lhe ordenou viesse dá-la a conhecer; que
não faz senão o que Deus lhe deu o poder de fazer; que a verdade
que ensina ele a aprendeu de Deus, a cuja vontade se encontra
sujeito, é que ele não é Deus, mas, apenas, seu enviado, seu messias e seu
subordinado.
Fora-lhe
impossível recusar, de maneira mais positiva, qualquer
assimilação sua a Deus, nem determinar o seu papel principal em termos mais
precisos. Não há nos trechos acima pensamentos ocultos sob o véu da alegoria, que
só à força de interpretações se possam descobrir. São pensamentos expressos no
seu sentido próprio, sem ambiguidade.
Se objectarem que
Deus, por não ter querido dar-se a conhecer na pessoa de Jesus, provocou uma
ilusão acerca da sua individualidade, poder-se-ia perguntar em que se funda
semelhante opinião, quem tem autoridade para lhe sondar o fundo do
pensamento e para lhe dar às palavras um sentido contrário ao que elas exprimem.
Pois que, na vida de Jesus, ninguém o considerava como sendo Deus; que todos,
ao contrário, o consideravam um messias, se ele não quisesse que o conhecessem
qual era, bastar-lhe-ia nada dizer. Das suas afirmações espontâneas, deve
concluir-se que ele não era Deus, ou que, se o era, voluntariamente e sem
utilidade, fez uma afirmação falsa.
É de notar-se que
S. João, o Evangelista sobre cuja autoridade mais procuraram apoiar-se os
instituidores do dogma da divindade do Cristo, é precisamente o que oferece os
mais numerosos e mais positivos argumentos em contrário. É do que se pode
convencer qualquer pessoa, lendo as passagens seguintes, que nada acrescentam,
é certo, às provas já citadas, mas as corroboram porque de
tais passagens ressalta evidente a dualidade e a desigualdade
das duas entidades:
“Por esse motivo,
os judeus perseguiam Jesus e queriam
matá-lo, isto é, porque fizera tais coisas em dia de sábado. — Mas, Jesus lhes
disse: ‘Meu Pai obra até ao presente e eu também obro’.” (S.
João, 5:16 e 17.)
“Porquanto o Pai a
ninguém julga; mas deu ao
Filho todo o poder de julgar, a fim de que todos honrem ao
Filho, como honram ao Pai. Aquele que não honra ao Filho, não honra
ao Pai que o enviou.”
“Em verdade, em
verdade, vos digo que aquele que ouve a minha palavra e crê naquele que me
enviou tem a vida eterna e não cai na condenação; antes, já passou da
morte à vida.”
“Em verdade, em
verdade, vos digo que a hora vem e, ela já veio, em que os mortos ouvirão a voz
do Filho de Deus e os que a escutarem viverão; pois, assim como o Pai tem a
vida em si mesmo, também deu ao Filho ter a vida em si mesmo — e lhe deu
o poder de julgar, porque ele é o Filho do homem.” (S. João,
5:22 a 27.)
“E o Pai que me
enviou há dado, ele próprio, testemunho de mim. Nunca jamais lhe
ouvistes a voz, nem vistes a face. — E a sua palavra não permanecerá em vós
porque não acreditais no que ele enviou.” (S. João,
5:37 e 38.)
“Quando eu
julgasse, o meu julgamento seria digno de fé, porquanto não estou só;
meu Pai que me enviou está, comigo.” (S. João, 8:16.)
“Havendo Jesus dito estas
coisas, elevou os olhos ao céu e disse: ‘Meu Pai, a hora é vinda; glorifica a
teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. — Como lhe deste
poder sobre todos os homens, a fim de que ele dê a vida eterna a todos
os que lhe deste. — Ora a vida eterna consiste em te conhecer a ti que
és O ÚNICO DEUS verdadeiro e a Jesus-Cristo que tu enviaste.
“Eu te tenho
glorificado na terra; acabei a obra de que me encarregaste. —
E tu, meu Pai, glorifica-me, pois, agora também em ti mesmo dessa glória que
tive em ti antes que do mundo fosse.
“Dentro em pouco
já não estarei no mundo; mas, quanto a eles, estão ainda no mundo e, eu
regresso a ti. Pai santo, conservo em teu nome o que me deste, a fim de que
eles sejam como nós’.”
“Dei-lhes a tua
palavra e o mundo os odiou, porque eles não
são do mundo, como eu próprio não sou do mundo.”
“Santifica-os na
verdade. A tua palavra é mesmo a verdade. — Assim como me
enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo — e me santifico a mim
mesmo por eles, a fim de que também eles sejam santificados na verdade.”
“Não peço apenas
por eles, mas também pelos que em mim hão de acreditar pela palavra deles; — a
fim de que estejam todos unidos, como tu, meu Pai, estás em mim e eu em ti; que
eles, do mesmo modo, sejam um em nós, a fim de que o mundo acredite que tu me
enviaste.”
“Meu Pai, desejo
que, lá onde eu estou, os que tu me deste também estejam comigo, a fim de que
contemplem a minha glória, glória que me deste, porque me
amaste antes da criação do mundo.”
“Pai justo, o
mundo não te há conhecido; eu, porém, te tenho conhecido; e estes conheceram
que tu me enviaste. — Fiz que eles conhecessem o teu nome e, ainda
farei que o conheçam, a fim de que o amor com que me tens amado esteja
neles e eu próprio neles esteja.” (S. João, 17:1 a 5, 11 a 14, 17 a 26. Prece de Jesus.)
“É por isto que
meu Pai me ama, porque deixo a vida para
a retomar. — Ninguém ma arrebata; sou eu que a deixo de mim mesmo; tenho o
poder de a deixar e tenho o poder de a retomar. É o
mandamento que recebi do meu Pai.” (S. João, 10:17 e 18.)
“Tiraram a pedra
e Jesus, erguendo os
olhos para o céu, disse estas palavras: Meu Pai, rendo-te graças por me
haveres exaltado. — Eu, de mim, sabia que tu me exaltarias
sempre; mas, digo isto para esta gente que me cerca, a fim de que creia
que foste tu que me enviaste.” (S. João, 11:41 e 42. Morte
de Lázaro.)
“Já não vos
falarei mais, porquanto o
príncipe do mundo vai vir, embora
nada haja em mim que lhe pertença, mas para que o mundo conheça que amo a
meu Pai e que faço o que meu Pai me ordena.” (S. João,
14:30 e 31.)
“Se guardardes os
meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu, que tenho
guardado os mandamentos de meu Pai, permaneço no seu amor.” (S.
João, 15:10.)
“Então, soltando
grande brado, Jesus disse: Meu
Pai, às tuas mãos entrego o meu ser. E, tendo pronunciado estas
palavras, expirou.” (S. Lucas, 23:46.)
Se Jesus, ao morrer,
entrega sua alma nas mãos de Deus, é porque ele tinha uma alma distinta de
Deus, submissa a Deus. Logo, ele não era Deus.
As palavras que se
seguem indiciam, da parte de Jesus, certa fraqueza humana,
certa apreensão quanto aos sofrimentos e à morte que lhe iam ser infligidos, o
que contrasta com a
natureza divina que lhe atribuem. Elas, porém, demonstram, ao mesmo tempo, uma
submissão de inferior para superior.
“Então,
chegou Jesus a um lugar
chamado Getsêmani e disse a seus discípulos: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou ali
orar.’ — E, tendo levado consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou
a entristecer-se e a estar em grande aflição. — Disse-lhes então: Minha
alma se encontra em tristeza mortal; ficai aqui e velai comigo. —
E, indo para um pouco mais longe, prosternou-se com o rosto
na terra e orou dizendo: Meu Pai, se for possível, faze de
mim se afaste este cálice; entretanto, não seja como eu quero, mas como
tu queiras. — Veio em seguida ter com os seus discípulos e,
encontrando-os adormecidos, disse a Pedro: Pois quê! não pudestes
velar uma hora comigo? — Vigiai e orai, a fim de não cairdes em tentação.
O Espírito é pronto, mas a carne é fraca. — Foi-se de novo, para orar segunda
vez, dizendo: Meu Pai, se este cálice não pode passar, sem
que eu o beba, faça-se a tua vontade.” (S. Mateus, 26:36 a
42. Jesus no Jardim das Oliveiras.)
“Então,
disse-lhes: Minha alma está numa tristeza de morte; ficai aqui e
velai. — E, tendo-se afastado um pouco, prosternou-se na terra, rogando que, se
fosse possível, aquela hora se afastasse dele. — Dizia:
Abba, meu Pai, tudo te é possível, transporta para longe de mim
este cálice; mas, que se faça a tua vontade e não a minha.” (S. Marcos,
14:34 a 36.)
“Em chegando
àquele lugar, disse-lhes: Orai, a fim de não sucumbirdes à tentação.
— E, tendo-se afastado deles junto de um monte de pedra, ajoelhou-se, dizendo:
Meu Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice;
entretanto, não se faça a minha vontade, mas a tua. —
Então, apareceu-lhe um anjo do céu a fortalecê-lo. — Havendo entrado em agonia,
redobrava as suas preces. — Veio-lhe um suor de gotas de sangue, que corria até
ao chão.” (S. Lucas, 22:40 a 44.)
“Pela hora nona,
soltou Jesus um grande
brado, dizendo: Eli! Eli! Lamma Sabachtani? que quer dizer: Meu Deus!
Meu Deus! por que me abandonaste?” (S. Mateus, 27:46.)
“E, pela hora
nona, lançou Jesus um grande
brado, dizendo: Meu Deus, Meu Deus! por que me abandonaste?”
(S. Marcos, 15:34.)
As passagens que
vamos transcrever poderiam deixar alguma dúvida e dar ensejo a acreditar-se
numa identificação de Deus com a pessoa de Jesus; mas, além de que
não poderiam prevalecer contra os termos precisos das que precedem, trazem
consigo a devida rectificação.
“Perguntaram-lhe:
Quem és tu então? Jesus lhes
respondeu: Sou o princípio de todas as coisas, eu que vos falo.
— Tenho muitas coisas a dizer-vos; mas, aquele que me enviou é
verdadeiro e eu não digo senão o que dele aprendi.” (S. João, 8:25 e 26.)
“O que meu Pai me deu
é maior do que todas as coisas e ninguém o pode arrebatar das mãos de meu Pai.
Meu Pai e eu somos um.” (S. João, 10:29 e 30.)
Quer isto dizer
que seu Pai e ele são um pelo pensamento, pois que ele
exprime o pensamento de Deus, pois que tem a
palavra de Deus.
“Então, os judeus
tomaram de pedras para lapidá-lo. — Jesus lhes disse:
Muitas obras boas tenho feito diante de vós, pelo poder de meu
Pai. Por qual delas quereis lapidar-me? — Os judeus lhe responderam: Não é
por nenhuma boa obra que te lapidamos; mas, por causa da tua blasfémia, porque,
sendo homem, tu te fazes Deus. — Jesus lhes replicou: Não está escrito na vossa
lei: Tenho dito que sois Deuses? — Ora, se ela chama deuses àqueles a
quem a palavra de Deus era dirigida e não podendo a Escritura ser destruída,
como dizeis que blasfemo, eu a quem meu Pai santificou e enviou ao mundo,
porque disse que sou filho de Deus? —
Se não faço as obras de meu Pai, não me creiais; se, porém, as faço, quando não
queirais crer em mim, crede nas minhas obras, a fim de
saberdes e crerdes que meu Pai está em mim e eu nele.” (S. João, 10:31 a 38.)
Noutro
capítulo, dirigindo-se a seus discípulos, diz: “Nesse dia, reconhecereis
que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós.” (S.
João, 14:20.)
Destas
palavras, não há concluir-se que Deus e Jesus são
uma única entidade, pois, de outro modo, também se teria de
concluir, das mesmas palavras, que os apóstolos e Deus eram um.
/...
(i)
Allan Kardec, escrevia na segunda metade do século XIX. Nota de publicação.
(ii)
Para completo desenvolvimento da questão dos milagres, veja-se A Génese segundo
o Espiritismo, caps. XIII e seguintes, onde se encontram explicados, por meio
das leis naturais, todos os milagres do Evangelho.
ALLAN
KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Estudo Sobre a Natureza do Cristo; I – FONTES DAS PROVAS SOBRE A NATUREZA DO
CRISTO / II – OS MILAGRES PROVAM A DIVINDADE DO CRISTO? / III – AS PALAVRAS DE
JESUS PROVAM A SUA DIVINDADE? (1 de 6), 18º fragmento desta obra.
(imagem
de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela,
de Noêmia Guerra)
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