Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 14 de março de 2016

Inquietações Primaveris ~


os amantes | da morte

A teoria psico-fisiológica de que a dor é o exagero do prazer, tem a sua confirmação social, na existência universal, das comunidades dos amantes da morte. Desde todos os tempos, essas comunidades, se desenvolvem no seio ambivalente das religiões, onde se nutrem dos desesperos e das angústias, dos sacrifícios, das autoflagelações, dos cilícios e dos conformismos piedosos, torturando-se para as delícias do Paraíso. A ambivalência dessa situação, é evidente. Desejam e temem o prazer na Terra, onde tudo passa depressa, e escapam do impasse pela porta das promessas divinas que lhes oferecem o prazer eterno. Jogam na lotaria do Além a fortuna da saúde e as moedas doiradas da alegria, cobrindo-se de cinzas e farrapos, como faziam os judeus antigos, ou mergulhando na sujeira, no desinteresse pela comodidade e limpeza, como o faziam os frades penitentes, para morrerem com cheiro a santidade. O fedor da sujeira garantiria a participação nos banquetes da Eternidade. Os frades dos conventos isolados, dos desertos, permaneciam analfabetos para não caírem nas armadilhas do Diabo, cheias de petiscos intelectuais perigosos. As mais perigosas dessas privações sagradas eram benéficas, pois, trocando os prazeres carnais pelos prazeres ideais do outro mundo, desencadeavam nas criaturas ingénuas os delírios do misticismo lúbrico, evitados pelos espíritos de íncubos e súcubos, activíssimos na idade Média. Deus entregava os seus servos interesseiros e egoístas às tentações fatais desses demónios insaciáveis. Mas a lição não produziu efeitos, a não ser à dos expedientes da hipocrisia, com que os mais espertos conseguiam passar por santos prematuros, cujos deslizes ocasionais eram cobertos, piedosamente, por taxas escusas de indulgência. Até mesmo o Apóstolo Paulo, vibrante e culto, mas arcando com o peso do remorso pelas perseguições aos cristãos e pela lapidação de Estêvão, recomendava aos cristãos que não se casassem e aos casados que não praticassem relações sexuais. Mas bem cedo teve de recriminar os santos da Igreja de Corinto, que se tornavam piores do que os pecadores pagãos. Como ainda não havia a pílula anticoncepcional, cresciam os chifres do Diabo nas comunidades dos santos e algumas santas apareciam engravidadas. O culto da nudez, como estado de graça, proveniente do Éden, ainda nos tempos medievais, precisou ser reprimido por medidas enérgicas. Até hoje perduram no mundo cristão os resíduos desses tempos, em que os servos de Deus desobedeciam à lei bíblica; do multiplicai-vos, que não trazia nenhuma recomendação matrimonial, como se vê na Bíblia.

Os amantes da morte foram sempre muito práticos no trato com a vida. O celibato dos padres e das freiras foi sempre furado por medidas de excepção e até mesmo pela criação de taxas especiais de licença, como no caso referido por Aldous Huxley em Os Demónios de Ludan. No esforço para sufocar a vida em favor da morte, as igrejas sempre fracassaram e fracassarão, a menos que Deus permita a produção em massa da nova bomba de Neutrões, para poupar-se ao terrorismo de um novo dilúvio.

Jesus não violou as leis naturais criadas por Deus; aumentou o vinho que alegrava as Bodas de Caná, livrou a mulher adúltera da sanha feroz dos seus lapidadores, não escolheu celibatários para seus discípulos, aceitou Pedro com a família, como seu apóstolo, recebeu Madalena como discípula e foi a ela que apareceu na ressurreição. Apesar de tudo isso, o fermento velho dos rabinos, do Templo, ainda hoje leveda massas impuras no meio cristão. O Espiritismo não se organizou em igreja para evitar os prejuízos dessa hipocrisia contrária à lei de amor do Evangelho. Mesmo assim, aparecem ainda agora no meio espírita os pregadores da santidade hipócrita. São pregadores angélicos que semeiam essas ideias na ingenuidade pretensiosa das massas espíritas, talvez interessados nos chifres do Diabo ou no restabelecimento dos costumes de Sodoma, tão fartamente restabelecidos no nosso tempo. É inacreditável que isso possa acontecer no meio espírita, contrariando os princípios racionais e científicos da doutrina. Mas tudo pode acontecer, num período de transição como este, que estamos vivendo. Espíritas dizendo-se abstémios, de mãos postas e olhos voltados para o Além, tentando negar a sua condição humana para alcançar o Céu, é o que de mais ridículo e absurdo se possa imaginar. As funções normais da espécie, não podem ser suprimidas num organismo humano, sem causar desequilíbrios perigosos. A função sexual não tem por objecto o gozo sensual, mas a reprodução da espécie. Não obstante, o prazer sexual natural, na ligação normal e afectiva de duas criaturas que se amam, é também importante elemento de equilíbrio orgânico, psicofísico. A condenação do sexo é estúpida manifestação de hipocrisia. Os que tentam agora introduzi-la no meio espírita, só podem ser indivíduos frustrados ou, lamentavelmente desviados das suas funções normais. Esses indivíduos servem aos desequilíbrios dos espíritos vampirescos que se banqueteiam nos vícios inconfessáveis das criaturas humanas por eles subjugadas.

Recentemente tivemos a oportunidade de ver e ouvir, num programa de televisão, em que falavam representantes de várias religiões, um representante de uma casa espírita, declarar que precisamos sofrer intensamente na Terra, para chegarmos aos planos espirituais superiores. Era um amante da morte, e respondendo à pergunta do apresentador: “Como o senhor deseja passar para o outro lado?” disse: “Definhando bem lentamente no leito.” As palavras foram acompanhadas de uma gesticulação padresca e uma expressão fisionómica de delírio imbecil. Uma triste amostra de falta de conhecimento espírita e de tendência masoquista delirante. Aquele pobre homem aprendera o Espiritismo às avessas e sonhava com a morte, pelo definhamento, como se agradasse a Deus a tortura diabólica de uma morte nessas condições de miserabilidade total. Que Deus seria esse, algum Moloch acostumado a alimentar-se de crianças vivas assadas nas suas brasas? E que imagem da doutrina apresentava esse homem aos telespectadores? Seria um dos anjos da casa por ele representada que lhe sugerira essa demonstração de mentalidade masoquista?

Nem mesmo um frade trapaceiro, com cheiro a santidade, trazido como múmia egípcia, da era faraónica, faria com tanta perfeição a mais deturpada e triste figura de um masoquista delirante. O pobre homem parecia saborear, em êxtase, as delícias do seu definhamento no leito, à espera do Paraíso. O masoquista é um esquizofrénico de sensibilidade invertida. A esquizofrenia afasta-o da realidade imediata e envolve-o no delírio dos prazeres futuros que ele transforma em satisfações subjectivas no processo das transposições alienantes. Naquele breve instante de televisão, sob as luzes das lâmpadas atordoantes, o pobre homem sentia-se definhar diante das câmaras e do mundo, na plenitude dos gozos da morte lenta, inversão espasmódica de sensações ancestrais arquivadas no mundo mágico do inconsciente. Era doloroso vê-lo assim, naquela bem-aventurança da frustração.

A dor, o sofrimento e a morte não têm, na concepção espírita, esse sentido delirante que ele lhes dava. Pelo contrário, tudo no Espiritismo se define como articulações do processo único e universal da evolução. E esta não é milagrosa ou sobrenatural, pois é o desenvolvimento das potencialidades das coisas e dos seres no desenrolar histórico, no plano temporal, como no caso da Razão em Hegel. Tudo é teleológico, tem uma finalidade que se entrosa na engrenagem espantosa da teleologia universal. A dor – dizia Léon Denis – é a lei de equilíbrio e de educação. Nessa concepção não há lugar para a dor punitiva, castigo divino ou maldição. A dor é o efeito intrínseco das actividades evolutivas, como o prazer. Por isso a dor e o prazer, são verso e reverso de determinada acção, do ser na existência.

Da mesma maneira, a morte, sendo o limite extremo do processo existencial, liga-se a todo o processo vivencial do desenvolvimento humano. A lei de unidade encadeia a realidade, na direcção única do ser, do que resulta que o espírito, na sua expressão humana superior, reflecte a unidade total do cosmos na sua unidade ôntica. Deus cria e sustenta o real, mas os seres trabalham para si mesmos e para os outros, na facticidade de cada um e de todos. O Cosmos é a Colmeia geral em que cada abelha tem a sua missão, a tarefa vital e espiritual específica e entrosada no programa da espécie ou da raça. A consciência, trás em si, o esquema geral do Sistema, desde o esboço inconsciente dos planos inferiores, até ao desenho nítido e cada vez mais vivo, dos planos super-postos, entrosados e interpenetrados, segundo a visão das hipóstases, de Plotino. Por isso podemos abranger, no nosso microcosmos individual, como ideia geral, imanente em nós, toda a complexidade infinita do Sistema. Dessa maneira, somos também responsáveis pela Criação e, sofremos as consequências das nossas actividades conscienciais, vitais e existenciais, bem como as materiais, sem que nenhuma autoridade externa nos condene ou nos aprove. Assim compreendida, a realidade, podemos também compreender a total liberdade do ser, como decorrência natural da sua responsabilidade total. Somos aquilo que fazemos em nós e por nós no lugar que nos compete.

A morte marca o limite da tarefa que nos foi confiada e, nos transfere para o plano de avaliação de nós mesmos e, do que fizemos. O renascimento resulta desse balanço final, de uma existência e, nos prepara para a seguinte. Os méritos e os deméritos, de tudo quanto fizermos, são exclusivamente nossos, pois o objectivo do Todo é a formação de todos e de cada um, para as actividades futuras no desenvolvimento de toda a perfectibilidade possível, em tudo, em todos e no Todo.

As preparações religiosas para a morte e, os sacramentos extremos, não oferecem ao homem, os dados necessários à compreensão de todo esse processo. Simplesmente reforçam, no espírito do moribundo, as vagas esperanças do perdão e das terríveis ameaças do castigo. Os familiares, podem orar pelos que participam, mas nunca sabem para onde partiram e o que realmente acontece nessa viagem misteriosa. A Educação para a Morte é um curso de bem viver para bem morrer, com plena consciência do sentido e da significação da morte e da sua importância para a vida. Os amantes da morte, não a conhecem, como não conhecem os mortos, dos quais só vêem os cadáveres. A Espiritualidade actual, do mundo, é uma a-espiritualidade, como a definiu Kierkeggard. Se não tratarmos da Educação para a morte, não sairemos do círculo vicioso em que entramos, sem ter vivido.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 16 – Os Amantes da Morte, 21º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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