Três são os elementos fundamentais de que o Espiritismo se
serve para transformar o nosso mundo num mundo melhor e mais belo:
a) O Amor,
b) O Trabalho,
c) A Solidariedade.
[...]
(III de III)
III – A Solidariedade
A solidariedade espírita manifesta-se particularmente no
campo da assistência à pobreza, aos doentes e desvalidos. O grande impulso
nesse sentido foi dado, desde o início do movimento doutrinário na França, pelo
livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec (i), que
trabalhou em silêncio na elaboração dessa obra, sem nada dizer a ninguém.
Seleccionou numerosas mensagens psicografadas, procedentes de diversos países
em que o Espiritismo já florescia. A sua intenção era oferecer aos espíritas um
roteiro para a prática religiosa, baseado no que ele chamava de essência
do ensino moral do Cristo. Conhecendo profundamente a História do
Cristianismo e as dificuldades com que os originais do Evangelho haviam sido
escritos, em épocas e locais diferentes, bem como o problema dos evangelhos
apócrifos e das interferências mitológicas nos textos canónicos e as
interpolações ocorridas nestes, afastou todos esses elementos espúrios para
oferecer aos espíritas uma obra pura, despojada de todos os acessórios
comprometedores. O seu trabalho solitário e abnegado deu-nos uma obra-prima,
que conta com milhões de exemplares incessantemente reeditados no mundo. Essa
obra foi ameaçada com a tentativa de adulteração. Foi o maior atentado
que a obra de Kardec já sofreu no mundo, pior que a queima dos seus livros em
Barcelona pela Inquisição Espanhola. Muito pior, porque foi um atentado
provindo dos próprios espíritas, através de uma instituição doutrinária que
tem, por obrigação estatutária, defender, preservar e divulgar a Doutrina
Espírita codificada por Kardec. A consequência mais grave desse facto
lamentável foi a quebra da solidariedade espírita, a desconfiança e a mágoa
provocadas entre velhos companheiros. O ataque das Trevas à vaidade e à
ignorância de alguns espíritas invigilantes produziu os efeitos necessários. Sirva
o exemplo doloroso para todos os que assumem encargos doutrinários, julgando
receber prebendas e consagração. A vaidade excitada leva monges de pedra a se
julgarem poderosos na aridez e na solidão dos desertos.
A solidariedade espírita não é apenas
interna, entre os adeptos e companheiros. Projecta-se pelo menos em três
dimensões:
a) no plano social geral da comunidade
espírita, além dos grupos domésticos e das instituições fechadas;
b) envolve todas as criaturas vivas,
protegendo-as, amparando-as, estimulando-as nas suas lutas pela transcendência,
procurando ajudá-las sem nada pedir em troca, nem mesmo a simpatia doutrinária,
pois quem ajuda não tem o direito de impor coisa alguma;
c) eleva-se aos planos superiores para
ligar-se a Kardec (i) e à sua obra, a todos os espíritos esclarecidos
que lutam pela propagação do Espiritismo no mundo e a Deus e a Jesus na Solidariedade
cósmica dos mundos solidários.
Nessas três dimensões a Solidariedade Espírita realiza, como
que apoiada em três poderosas alavancas, o esforço supremo de elevação do
mundo, estimulando a transcendência humana. As mentes que
ainda não atingiram a compreensão desse processo podem fechar-se em grupos e
instituições de tipo igrejeiro, isolando-se nos seus ambientes de furna, onde os
espíritos mistificadores (i) e
embusteiros se acoitam facilmente. Mas na proporção em que os adeptos
assim isolados, ou pelo menos alguns deles, procurarem realmente compreender a
doutrina, a situação modifica-se, despertando os indolentes para actividades
maiores.
Todo o trabalho espírita é exigente e penoso, porque faz
parte de uma grande batalha – a da Redenção do Mundo, iniciada pelo
jovem carpinteiro Jesus, filho de Maria e José. Essa batalha não é a
de Deus contra o Diabo, o estranho anjo de luz que se revoltou para fundar o
Inferno. Essa ingénua concepção das civilizações agrárias e pastoris teve o seu
tempo e a sua função, o seu efeito de controlo em fases de barbárie, mas não
passa de uma alegoria inadequada ao nosso tempo. Tudo no Evangelho,
como Kardec demonstrou, desde que afastado do clima mitológico, se torna claro
e demonstra a posição evidentemente racional do Cristo. O
jovem carpinteiro não pertencia à Era Mitológica e encerrou essa era com a sua
passagem pela Terra e a propagação dos seus ensinos. O mito vingou-se dele,
pois transformou-o também num mito. Por muito tempo, até aos nossos dias, a
figura humana de Jesus figurou na nova mitologia, na fase romana do
Renascimento Mitológico, em que se destacou a figura do Imperador Juliano,
o Apóstata, que depois de aceitar o Cristianismo se apostatou e se empenhou na
salvação dos seus deuses antigos. Os resíduos da mentalidade mitológica
das civilizações arcaicas, particularmente a Grega e a Romana, reagiram, como
era natural, contra o racionalismo cristão. Dessa maneira, na mente
das populações bárbaras do Império Romano decadente, Jesus foi
transformado num mito da Era Agrária. Os padres e bispos do
Cristianismo nascente, todos impregnados pela carga mitológica de um longo
passado de ignorância e superstições, não foram capazes de compreender o
racionalismo (i) das proposições cristãs. Pelo contrário, cheios
de medo e de espanto, contribuíram para a deformação do Cristianismo. Antes
e depois da queda do Império, os cristãos fizeram concessões necessárias aos
povos bárbaros para absorvê-los no seio da Religião Redentora. Onde quer que os
cristãos se impusessem pela força do número e das armas, as igrejas pagãs eram
transformadas em templos cristãos, conservando-se cautelosamente as tradições
mitológicas mais arraigadas. O exemplo clássico e mais conhecido dessa
táctica romana é a Catedral de Notre Dame, em Paris, que ainda guarda nos seus
subterrâneos os restos do templo pagão da Deusa Lutécia (i). A Deusa pagã foi conservada no
templo, mas com o nome de Nossa Senhora, para que o povo ingénuo aceitasse
assim o culto cristão a Maria sob o prestígio secular da deusa pagã. Blavatsky (i) lembra
que a Deusa Céres (i),
divindade da fecundação e em muitas regiões, mais especificamente, deusa dos
cereais, forneceu ao Cristianismo nascente uma das mais conhecidas imagens de
Nossa Senhora, em que ela é representada com o manto estrelado do Céu, em pé
sobre o globo terreno: Céres cobrindo a Terra com o seu manto celeste para
fecundá-la. Esse mesmo processo de transposição acontece hoje no Sincretismo
Religioso Afro-Brasileiro e nas formas de sincretismo (i) de
outros países da América, onde os ritos e as figuras dos deuses ou santos
católicos são absorvidos pelas religiões africanas transladadas pelo tráfico
negreiro de escravos para o novo continente. Jesus (virou) Oxalá, Nossa Senhora
passou a ser Iemanjá, São Jorge passou a chamar-se Ogum (deus da guerra), São
Sebastião passou a chamar-se Oxum (deus da caça e, assim por diante).
Basta lermos o Livro de Actos dos Apóstolos, no
Evangelho e, as epístolas de Paulo (anteriores
aos Evangelhos) para termos a confirmação dessa verdade histórica. Na primeira
epístola de Paulo aos Coríntios, no tópico referente aos Dons Espirituais,
temos uma descrição viva do chamado culto pneumático (do
Grego: Pneuma, sopro, espírito), as sessões mediúnicas realizadas pelos primeiros cristãos e nas
quais, segundo as pesquisas históricas modernas, que confirmam os dados da
Tradição, manifestavam-se espíritos inferiores cheios de ódio a Cristo. Essas
manifestações assustadoras foram consideradas como diabólicas, reforçando a
imagem tradicional do Diabo na mente ingénua dos adeptos.
A luta entre o Bem e o Mal é simplesmente o processo
dialéctico da evolução. O Mal é a ignorância, o atraso, a superstição.
O Bem é o conhecimento, o progresso, a adequação da mente à realidade. Essa é a
grande luta das coisas e dos seres, figurada na revolta absurda de Luzbel, o
anjo de luz que se entregou à inveja e se converteu em adversário de Deus.
Esses símbolos de um passado bárbaro e longínquo ainda prevalecem na Terra como
resíduos míticos que o tempo desgasta na proporção em que a Cultura se
desenvolve. A Ciência incumbiu-se de ajustar a mente humana à realidade terrena, mas
os homens envaideceram-se e negaram-se a si mesmos nas ideias materialistas,
colocando-se abaixo de tudo quanto existe. Duro castigo que o orgulho
humano ainda não reconheceu. A Ciência afirma que nada se perde na Natureza,
tudo se transforma. O homem aprova isso com entusiasmo e ri de si mesmo (sem
perceber), pois só ele não subsiste, só ele é pó que reverte ao
pó. Essa é a verdadeira queda do homem, que se rebaixa ao pó num
mundo em que tudo se eleva incessantemente na direcção dos planos superiores. A
tentação simbólica de Jesus no deserto assemelha-se à tentação de Buda na
floresta. É a tentação dos homens pelas fascinações dos bens terrenos. Quando
o homem se apega à terra (com t minúsculo, porque a terra que pisamos e não o
Globo Terreno), ele se nega evoluir e é castigado pelas forças da evolução, que
o impelem a sair da sua toca de bicho para atingir a condição existencial da
espécie. A lei da existência não é o pó, mas a transcendência.
Pode o homem andar de joelhos pelas ruas e as estradas, jejuar, mortificar-se,
ciliciar-se quanto quiser, mas com isso não se tornará melhor. Voltará
às reencarnações (i) difíceis
e dolorosas para aprender, no sofrimento e na decepção, que não se busca Deus
rastejando, mas elevando-se no amor e na dedicação aos outros. As
práticas religiosas de purificação são egoístas, aumentam a miséria humana e o
apego do homem a si mesmo. As tentações que sofremos não vêm do Diabo,
mas de nós mesmos, da nossa ignorância e do nosso apego hipnótico aos bens
perecíveis da vida terrena. O Diabo é o Bicho-Papão dos adultos, o
espantalho dos supersticiosos. Giovanni
Papini, escritor católico italiano, contemporâneo, no seu livro Il
Diavolo, escandalizou o Vaticano, pregando a conversão do Diabo. Não
conseguia admitir esse mito impiedoso na sua teologia. O Padre
Teilhard de Chardin, nos seus estudos teológicos, negou a condenação eterna
do Diabo. O Espiritismo limita-se a mostrar a natureza mitológica do
Diabo e a demonstrar, prática e logicamente, a impossibilidade da queda do Anjo
Luzbel. A evolução espiritual é irreversível. O espírito que se elevou
ao plano angélico não pode regredir, não pode ter inveja e outros sentimentos
humanos. O anjo-mau é uma contradição em si mesmo, pois a Angelitude é a
condição divina que o espírito busca e atinge na existência. A luta do homem
para transformar o mundo é a luta do homem consigo mesmo, pois é ele quem faz o
mundo e, o faz à sua imagem e semelhança. Deus criou a Terra e todos os
mundos do espaço, mas deu cada mundo aos homens que os habitam, para que eles aprendam
o seu ofício paterno de Criador, tentando criar o mundo humano que lhes
compete. É evidente que existe o mundo físico, material, em que
nascemos, vivemos e morremos. E é também inegável que, sobre esse mundo físico
com os seus materiais, os homens construíram um mundo diferente, feito de
artifícios humanos. O mundo material e a sua contraparte espiritual (que os
cientistas começam a descobrir como antimatéria) constituem o mundo natural.
Mas sobre ambas as partes desse mundo natural os homens constroem os seus
mundos factícios. Cada Civilização é um mundo imaginário que o homem constrói
com o seu trabalho, modelando com a argila e a pedra os seus sonhos e as suas
ilusões. Esses mundos artificiais são o reflexo das ideações humanas na
matéria. Nós os criamos, alimentamos, desenvolvemos, dirigimos e
matamos. Os mundos bárbaros criados na Terra eram ingénuos; os mundos
civilizados apresentam uma gradação que reflecte a evolução humana, indo das
civilizações agrárias, fantasiosas e alegóricas até às grandes civilizações
orientais, massivas e arrogantes e às Civilizações Teocráticas, míticas e
supersticiosas; chegando às Civilizações Científicas, politeístas e
pretensiosas, que se transformam em Civilizações Tecnológicas, materialistas e
conflituais, que morrerão para dar lugar à Civilização do Espírito, na busca
cultural da Transcendência. Segundo Toynbee,
mais de vinte grandes civilizações já existiram na Terra. Agora está a surgir aos
nossos olhos e sob os nossos pés uma Nova Civilização – a do Espírito
– que podemos chamar de Cósmica ou Espiritual. É para preparar o advento
dessa Civilização do Espírito que o Espiritismo surgiu. Não adianta querermos
fazer do Espiritismo uma religião dogmática, carregada de misticismo tolo ou de
materialismo alienante. As novas gerações que se encarnam para realizá-la não
temem Deus nem o Diabo, simplesmente confiam nos planos irreversíveis de Deus,
que se executam segundo as leis da consciência humana em relação telepática
permanente com as entidades angélicas ao serviço de Deus. O Espiritismo é a
Plataforma de Deus, aprovada pelos Espíritos Superiores para a transformação e
elevação da Terra.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
XVII – Acção Espírita na Transformação do Mundo, (III de
III) – A Solidariedade, 19º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)
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