~~ O JULGAMENTO SOB O AÇODAR* DA CONSCIÊNCIA
(I)
No ergástulo nefário onde se contorcia na abjecção do odioso
crime, o suicida acompanhava toda a extensão do atentado praticado contra o
corpo que lhe deveria servir de barco para atravessar o mar das vicissitudes, na
busca do porto seguro do progresso.
Emparedado no estreito jazigo em que se via obrigado a permanecer,
não poderia sopesar qual o infortúnio maior a que estava submetido: se o pútrido
exalar da carne em demorada decomposição, se as sensações que lhe penetravam
oriundas da invasão dos vermes a desagregarem as moléculas, se a asfixia do laço poderoso que continuava constringindo-lhe
as carnes e impossibilitando a circulação, causando sensações impossíveis de
descrever, se toda a cabeça, sempre prestes a explodir, se o deslocamento da
medula… ou as angústias morais decorrentes da zombaria das turbas e turbas que,
sucessivamente, se acercavam do sombrio local para chasquearem, atirando-se em
incessantes alcateias sobre as últimas exteriorizações fluídicas, agora
pardo-escuras nauseantes e viscosas, ou se, finalmente, o medo do que o
aguardava…
Os usurpadores da sua vitalidade pareciam obedecer a
diferentes classes: a princípio, eram determinados sugadores que, após algum
tempo, debandaram em alacridade, embriagados, e, assim, em continuação, as
faces das sórdidas entidades chegavam a aparências grosseiras, incomparáveis,
mesmo, às mais exageradas fantasias monstruosas, culminando pela apresentação
dos últimos visitantes, que haviam perdido totalmente a forma humana e se rastejavam dolorosamente, coleantes… Eram mil mortes e mil renascimentos na
sepultura húmida e fria. Não havia espaço mental para o raciocínio nem e a
reflexão, porque tudo prosseguia no mesmo ritmo de alucinação e desdita, como
razão humana alguma, enquanto na carne, poderia entender.
Transcorrida uma eternidade,
naquele sem-fim onde os dias e as noites não se sucediam, demorando-se apenas
uma longa e tenebrosa treva, Girólamo viu, estarrecido, chegar um estranho grupo,
trazido por Dom Giovanni.
– Eis aí – disse o antigo duque – o nefasto criminoso, cujas aberrações eu denunciei às
Autoridades.
O aspecto feroz dos estranhos e as suas roupagens levaram a
mente do amargurado suicida à lembrança das óleo-gravuras católicas, não tendo
dúvida em reconhecer naqueles seres os sequazes do Demónio. (i)
Um deles aproximou-se, examinou detidamente os despojos consumidos
na sua quase totalidade e, após demorada quanto complexa operação, desligou os últimos
liames perispituais do desencarnado libertando-o das vísceras e dos ossos
remanescentes.
Um outro pegou uma corda e atou as mãos do infeliz,
segurando a outra extremidade de modo a retê-lo preso.
– Saiamos daqui, – disse o que parecia o chefe e, de todos
os mais hediondo.
A imensa fraqueza não permitia ao desditoso manter-se sobre
as pernas, que se negavam ao movimento. Todo ele era um trapo em convulsão,
cuja aparência humana estava reduzida a destroços vergonhosos.
Incapaz de reagir, deixou-se arrastar pela indiferença dos
algozes, que agora o defendiam dos bandos de vagabundos que antes o exploravam.
Rumando por caminhos sombrios, em que emanações sulfúricas, desagradáveis, se faziam
cada vez mais fortes, foi conduzido a um profundo vale, sofrendo as pedras e a
lama da vereda.
Na paisagem morta e gelada podia ver, entre as
nuvens-chumbo, as encostas de penedias altas que formavam intransponível
muralha naquele país donde ninguém podia
escapar, senão à tutela da Divina Misericórdia.
O pavor em crescendo, na mente em frangalhos, fê-lo perder a
noção de tudo.
Quando despertou, estava numa prisão muito semelhante às da
Terra, com a única diferença da aparência sórdida e da podridão reinante. Ao lado,
outro infeliz algemado mergulhara totalmente na demência, repetindo sem cessar
a mesma sílaba, fazendo recordar o célebre Tan,
do antigo Asilo de Bicêtre. (ii)
As dificuldades respiratórias, a sensação no peito e na cabeça
eram, no superlativo das dores, os destaques mais afligentes.
Impossibilitado de falar e gritar, como se assim procedendo
lhe diminuísse o desespero, o sentenciado àquela impérvia situação se pôs a
ulular em grunhidos animais que lhe escapavam dos refolhos da alma, agitando o tórax
comprimido e favorecendo-se, ao menos, com a satisfação de exteriorizar todo o
horror que o dominava.
Enquanto assim procedia, outros seres, possivelmente na
mesma situação, soltaram bramidos e gritos, lancinantes apelos espocaram de
todos os lados.
Simultaneamente, ladridos
de cães, misturados a vozes que bradavam silêncio, faziam-se acompanhar do
som da chibata descarregada no dorso dos prisioneiros da misérrima prisão
desconhecida.
O choro convulso tomou conta das celas e a algazarra, eram
as exclamações de horror e desesperança dos presidiários.
Com o tempo, o antigo jovem senense passou a experimentar as
necessidades fisiológicas e, reduzido à condição animal, adicionou a fome e a
sede ao tormento que não cessava…
Por fim, abriram a porta da cela e dois guardas
arrancaram-no impiedosamente, açoitando-o, lhe impuseram o rastejar macabro
até ao imenso salão, que parecia situado abaixo da superfície ou numa profunda
furna. Tochas resinosas ardiam e a fumaça asfixiava.
O absurdo julgamento teve início.
O suicida, quase nas raias da loucura plena e total, foi
arrojado a um assento brutesco e, sem a possibilidade de entender quanto se
desenrolava ao seu redor e sobre o seu espírito, passou a ouvir, com inaudito
esforço, as acusações terrificantes.
Muitos eram os julgados do dia. Na sua vez, um ser infernal,
de aparência chocante, arengou algumas palavras em latim, como se houvera
pertencido a alguma organização religiosa da Terra, depois do que foram chamadas as testemunhas de acusação.
O primeiro a apresentar-se foi Dom Giovanni, que se transfigurara
em horrendo como impiedoso algoz.
– Eu acuso Girólamo dos crimes…
E passou a citar, minuciosamente, todas as maquinações que
culminaram nas contínuas tragédias perpetradas pelo acusado. Referiu-se às
constantes interferências da duquesa,
que, inclusive, lhe suplicara, a ele, ora acusador, abandonasse os seus
intentos de vingança; que retornara também, do Além-túmulo, para impedir que o
bandido continuasse a dar curso à longa loucura de destrui vidas, inutilmente. Nada
o detinha; nem as incursões que ele próprio, senhor da herdade di Bicci,
fizera, utilizando-se de um sensitivo
grego para lhe falar… Sustentou que já não o deixou desde aquele momento,
sitiando-lhe a mente nefária e insinuando que ele deveria pagar através da
loucura e do suicídio os crimes cometidos, a fim de surpreendê-lo com as armas
da justiça que naquela casa se ofereciam aos lesados, para punir os que
os exploravam. Agora, solicitava permissão para apropriar-se do seu sicário e
nele aplicar os correctivos que merecia, aplacando a sede que o devorava no ódio
irrefreável.
/…
* açodar
(i) Obviamente,
não se trata dos satanases ou diabos da Mitologia religiosa, que seriam aqueles
anjos caídos e perdidos por toda a Eternidade. Acontece que os Espíritos maus
assumem tal aparência, contando apavorar os que lhes caem nas mãos, sitiando-os
com maior impiedade, por encontrar-lhes o campo mental explorado pela ignorância
e pela astúcia religiosa que lhes inculcou as falsas ideias de um inferno
impossível. O fenómeno da ideoplastia na mente em desregramento ajuda a feição
e a aparente realidade de tais seres.
(ii) Paciente estudado
pelo Dr. Paulo Broca, fundador da Escola de Antropologia, que foi pesquisado
vivo e depois teve estudado o seu cérebro morto, identificando nele a “terceira
circunvolução frontal esquerda” como o centro da fala, também chamado de “centro
de Broca”.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (1 de 3), 37º
fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO
PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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