Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 13 de outubro de 2019

~~~Párias em Redenção~~~


~~ O JULGAMENTO SOB O AÇODAR* DA CONSCIÊNCIA
(I)

No ergástulo nefário onde se contorcia na abjecção do odioso crime, o suicida acompanhava toda a extensão do atentado praticado contra o corpo que lhe deveria servir de barco para atravessar o mar das vicissitudes, na busca do porto seguro do progresso.

Emparedado no estreito jazigo em que se via obrigado a permanecer, não poderia sopesar qual o infortúnio maior a que estava submetido: se o pútrido exalar da carne em demorada decomposição, se as sensações que lhe penetravam oriundas da invasão dos vermes a desagregarem as moléculas, se a asfixia do laço poderoso que continuava constringindo-lhe as carnes e impossibilitando a circulação, causando sensações impossíveis de descrever, se toda a cabeça, sempre prestes a explodir, se o deslocamento da medula… ou as angústias morais decorrentes da zombaria das turbas e turbas que, sucessivamente, se acercavam do sombrio local para chasquearem, atirando-se em incessantes alcateias sobre as últimas exteriorizações fluídicas, agora pardo-escuras nauseantes e viscosas, ou se, finalmente, o medo do que o aguardava…

Os usurpadores da sua vitalidade pareciam obedecer a diferentes classes: a princípio, eram determinados sugadores que, após algum tempo, debandaram em alacridade, embriagados, e, assim, em continuação, as faces das sórdidas entidades chegavam a aparências grosseiras, incomparáveis, mesmo, às mais exageradas fantasias monstruosas, culminando pela apresentação dos últimos visitantes, que haviam perdido totalmente a forma humana e se rastejavam dolorosamente, coleantes… Eram mil mortes e mil renascimentos na sepultura húmida e fria. Não havia espaço mental para o raciocínio nem e a reflexão, porque tudo prosseguia no mesmo ritmo de alucinação e desdita, como razão humana alguma, enquanto na carne, poderia entender.

Transcorrida uma eternidade, naquele sem-fim onde os dias e as noites não se sucediam, demorando-se apenas uma longa e tenebrosa treva, Girólamo viu, estarrecido, chegar um estranho grupo, trazido por Dom Giovanni.

– Eis aí – disse o antigo duque – o nefasto criminoso, cujas aberrações eu denunciei às Autoridades.

O aspecto feroz dos estranhos e as suas roupagens levaram a mente do amargurado suicida à lembrança das óleo-gravuras católicas, não tendo dúvida em reconhecer naqueles seres os sequazes do Demónio. (i)

Um deles aproximou-se, examinou detidamente os despojos consumidos na sua quase totalidade e, após demorada quanto complexa operação, desligou os últimos liames perispituais do desencarnado libertando-o das vísceras e dos ossos remanescentes.

Um outro pegou uma corda e atou as mãos do infeliz, segurando a outra extremidade de modo a retê-lo preso.

– Saiamos daqui, – disse o que parecia o chefe e, de todos os mais hediondo.

A imensa fraqueza não permitia ao desditoso manter-se sobre as pernas, que se negavam ao movimento. Todo ele era um trapo em convulsão, cuja aparência humana estava reduzida a destroços vergonhosos.

Incapaz de reagir, deixou-se arrastar pela indiferença dos algozes, que agora o defendiam dos bandos de vagabundos que antes o exploravam. Rumando por caminhos sombrios, em que emanações sulfúricas, desagradáveis, se faziam cada vez mais fortes, foi conduzido a um profundo vale, sofrendo as pedras e a lama da vereda.

Na paisagem morta e gelada podia ver, entre as nuvens-chumbo, as encostas de penedias altas que formavam intransponível muralha naquele país donde ninguém podia escapar, senão à tutela da Divina Misericórdia.

O pavor em crescendo, na mente em frangalhos, fê-lo perder a noção de tudo.

Quando despertou, estava numa prisão muito semelhante às da Terra, com a única diferença da aparência sórdida e da podridão reinante. Ao lado, outro infeliz algemado mergulhara totalmente na demência, repetindo sem cessar a mesma sílaba, fazendo recordar o célebre Tan, do antigo Asilo de Bicêtre. (ii)

As dificuldades respiratórias, a sensação no peito e na cabeça eram, no superlativo das dores, os destaques mais afligentes.

Impossibilitado de falar e gritar, como se assim procedendo lhe diminuísse o desespero, o sentenciado àquela impérvia situação se pôs a ulular em grunhidos animais que lhe escapavam dos refolhos da alma, agitando o tórax comprimido e favorecendo-se, ao menos, com a satisfação de exteriorizar todo o horror que o dominava.

Enquanto assim procedia, outros seres, possivelmente na mesma situação, soltaram bramidos e gritos, lancinantes apelos espocaram de todos os lados.

Simultaneamente, ladridos de cães, misturados a vozes que bradavam silêncio, faziam-se acompanhar do som da chibata descarregada no dorso dos prisioneiros da misérrima prisão desconhecida.

O choro convulso tomou conta das celas e a algazarra, eram as exclamações de horror e desesperança dos presidiários.

Com o tempo, o antigo jovem senense passou a experimentar as necessidades fisiológicas e, reduzido à condição animal, adicionou a fome e a sede ao tormento que não cessava…

Por fim, abriram a porta da cela e dois guardas arrancaram-no impiedosamente, açoitando-o, lhe impuseram o rastejar macabro até ao imenso salão, que parecia situado abaixo da superfície ou numa profunda furna. Tochas resinosas ardiam e a fumaça asfixiava.

O absurdo julgamento teve início.

O suicida, quase nas raias da loucura plena e total, foi arrojado a um assento brutesco e, sem a possibilidade de entender quanto se desenrolava ao seu redor e sobre o seu espírito, passou a ouvir, com inaudito esforço, as acusações terrificantes.

Muitos eram os julgados do dia. Na sua vez, um ser infernal, de aparência chocante, arengou algumas palavras em latim, como se houvera pertencido a alguma organização religiosa da Terra, depois do que foram chamadas as testemunhas de acusação.

O primeiro a apresentar-se foi Dom Giovanni, que se transfigurara em horrendo como impiedoso algoz.

– Eu acuso Girólamo dos crimes…

E passou a citar, minuciosamente, todas as maquinações que culminaram nas contínuas tragédias perpetradas pelo acusado. Referiu-se às constantes interferências da duquesa, que, inclusive, lhe suplicara, a ele, ora acusador, abandonasse os seus intentos de vingança; que retornara também, do Além-túmulo, para impedir que o bandido continuasse a dar curso à longa loucura de destrui vidas, inutilmente. Nada o detinha; nem as incursões que ele próprio, senhor da herdade di Bicci, fizera, utilizando-se de um sensitivo grego para lhe falar… Sustentou que já não o deixou desde aquele momento, sitiando-lhe a mente nefária e insinuando que ele deveria pagar através da loucura e do suicídio os crimes cometidos, a fim de surpreendê-lo com as armas da justiça que naquela casa se ofereciam aos lesados, para punir os que os exploravam. Agora, solicitava permissão para apropriar-se do seu sicário e nele aplicar os correctivos que merecia, aplacando a sede que o devorava no ódio irrefreável.

/…

(i) Obviamente, não se trata dos satanases ou diabos da Mitologia religiosa, que seriam aqueles anjos caídos e perdidos por toda a Eternidade. Acontece que os Espíritos maus assumem tal aparência, contando apavorar os que lhes caem nas mãos, sitiando-os com maior impiedade, por encontrar-lhes o campo mental explorado pela ignorância e pela astúcia religiosa que lhes inculcou as falsas ideias de um inferno impossível. O fenómeno da ideoplastia na mente em desregramento ajuda a feição e a aparente realidade de tais seres.
(ii) Paciente estudado pelo Dr. Paulo Broca, fundador da Escola de Antropologia, que foi pesquisado vivo e depois teve estudado o seu cérebro morto, identificando nele a “terceira circunvolução frontal esquerda” como o centro da fala, também chamado de “centro de Broca”.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (1 de 3), 37º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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